Talentos

A Alma de um país

Alma de um país
Neusa Tolfo
"Negros escravos depositavam na Caixa Econômica seus poucos tostões, à espera de acumular o suficiente para compra de alforria ao senhor seu amo, conforme o aceno da legislação'.
Livro CEF, o Banco Social, 1982 pág 8.

É madrugada. Precisa ser cauteloso e pegar a estrada o mais rápido possível. Antes de fechar a porta do galpão, vê a mulher acordada e sente a cumplicidade de seu olhar; os filhos e os demais ainda dormem. Respira fundo, o assobio do vento faz carícias nos ouvidos de Dodô. Monta no cavalo emprestado às escondidas, passa por entre os jardins da fazenda e aumenta o trote na medida em que se afasta da Casa Grande. A plantação de café iluminada pelo brilho das estrelas parece não ter fim. Sabe que nela está o suor do seu trabalho. O sinhô Cerqueira fala que no princípio era apenas a Província do Rio de Janeiro que produzia café; agora também tem em São Paulo, mas aqui ainda está oitenta por cento da produção do país. O dia amanhece e a paisagem muda; a mata úmida e fresca exala perfumes e os sons são feito sinfonia. Seu corpo responde aos estímulos com prazer; é um momento sagrado para a alma sofrida e inquieta de Dodô.
A estrada vai se desenhando como serpente no horizonte e uma sensação de liberdade lhe tira a respiração por um instante. De imediato vem o medo de sua aventura ser descoberta. Uns dias atrás, ao fazer as compras para a sinhá, ele soube da novidade: será aberta uma espécie de banco, uma Caixa Econômica, onde as pessoas poderão guardar suas economias; o valor aumenta e tem segurança. Esta notícia lhe tira o sono e a tranquilidade. Um sonho insistente adquire vida própria; murmura ao pé do ouvido, deixa os olhos brilhantes e o coração acelerado; faz nascer a coragem para sair sorrateiro na escuridão da noite.
Chega na cidade que, além de sediar a corte, é a maior, mais bonita, rica, e conhecida da nação. Embora a vista seja deslumbrante, a pobreza entristece quem ali aporta. As escadas que ligam o mar à terra são podres e rotas. Além do mais, tem o cheiro nauseante que vêm dos barris que acondicionam os detritos domésticos. Dodô observa os escravos despejarem de qualquer jeito os dejetos ao mar. Em sua memória, fica gravada a imagem dos negros carregando os barretes, como símbolo da cidade.
Dodô encontra o endereço da sala na Câmara dos Deputados, prédio da Cadeia Velha, na Rua da Misericórdia. São nove horas da manhã e ele acompanha de longe um pequeno tumulto em frente ao prédio que conta com a presença de um padre e outras pessoas ilustres. Não sabe quanto tempo permanece parado e amedrontado; faltam-lhe forças para prosseguir. A lembrança de que deve estar de volta antes do anoitecer move seu passo inseguro. Entra e admira o ambiente, que talvez não combine com suas roupas sujas e os pés descalços. Engole a vergonha e aproxima-se do guichê onde o jovem atende com sorriso amigável. Mãos trêmulas e olhar baixo, Dodô entrega um punhado de notas enrolado num lenço, junto com o papel do filho José. Ele mal ouve as palavras do atendente que faz anotações num caderno; também não identifica o que está escrito, não sabe ler. As notas, depois de contadas, são deixadas numa arca de madeira maciça e nobre com alças de metal. Satisfeito, pensa que suas economias ficarão seguras naquela caixa. Pega o recibo e olha para o moço que, percebendo a súplica silenciosa, fala de forma quase solene, em voz clara e em bom tom:
- O depósito no valor de dois mil réis está em nome de José Souza e Silva e foi realizado nesta data, quatro de novembro de 1861, pelo pai, Antonio Souza e Silva, escravo, cujo proprietário é o senhor Aloísio Cerqueira.
O agradecimento aparece no tímido sorriso e no brilho do semblante queimado de sol. Dodô segura de encontro ao peito o papel que pode ser o futuro do menino. Pensa que no seu tempo já não há de acontecer, se resigna em ser escravo, mas pede ao Nosso Senhor, na reza de todas as noites, que não tarde a liberdade para o filho.
Na saída, esbarra no homem bem vestido, altivo e de bons modos; seus olhares se cruzam e há uma troca intensa entre eles. Alguém chama o nome de Antônio Álvares Pereira Coruja; ambos se viram; um funcionário vem ao encontro do senhor distinto e entrega um papel cuidadosamente enrolado e preso por uma fita azul; explica tratar-se do certificado ao primeiro depositante da Caixa Econômica; selam o ritual com um caloroso aperto de mãos e despedem-se. Dodô, que permanece no mesmo lugar, assiste à cena com admiração e respeito. Talvez pressentindo o momento histórico. Emociona-se com a consideração do doutor que, antes de colocar o chapéu e seguir o caminho com vagar, lhe faz um breve aceno de cabeça. Sente a profundidade da contemplação, como se fosse ler sua alma e decifrar enigmas, cuja tristeza e humildade aparente, contrastam com o brilho da fé.
Dodô sente o calor intenso do sol e do verão tropical. Está sem pressa; quer prolongar a sensação de bem-estar que toma conta do peito. Gosta do sentimento nobre que escorre pela pele, no sangue e faz morada no coração; poderia acreditar que o nome disso é dignidade.
Os dois Antonios se afastam. Um é Antonio, o Coruja, revolucionário farroupilha que saiu do Rio grande do Sul e mudou-se para o Rio de Janeiro para estudar; sonha com a política, em escrever livros, dar aulas de História e com novos negócios. O outro é o Dodô, arrancado de suas raízes, escravizado numa terra desconhecida; leva uma vida difícil e tem os direitos humanos mais elementares suprimidos; sonha com a liberdade e com um novo futuro para os negros. Ambos são depositantes da Caixa da Corte, que guarda e cuida dos sonhos e das transformações sociais. Cada qual com seus anseios e esperanças, eles carregam a alma de um país; eles são representantes do Brasil, marcado desde esse tempo pela concentração de renda e pela exclusão social.

Compartilhe essa obra

Share Share Share Share Share
Inspiração

Escrevi um conto sobre o início da atividade da Caixa Econômica e sua relação com o país e a sociedade. Baseado em pesquisa, o conto se dá no dia da inauguração da primeira agência do país. Entendo ser relevante relembrar o papel da Caixa num momento em que tememos a privatização.

Sobre a obra

Apliquei as técnicas que aprendi em oficina literária, com um personagem fictício, ambientado nos anos 1861. Fiz uma pesquisa sobre o fato, quem foi o primeiro depositante, mas a ênfase é no papel da Caixa junto aos escravos na época que sonhavam comprar a carta de alforria.

Sobre o autor

Depois de aposentada, participo de oficinas literárias para aprender as técnicas da escrita. Já participei de dois livros de contos: Mulheres extraordinárias, em 2016 e gaia: a mãe terra, em 2017. Estou escrevendo contos para o próximo livro, cujo projeto é Caixa do povo. Estou bem feliz nesta nova atividade que acalenta um pouco minha inquietação.

Autor(a): NEUSA MARIA TOLFO ()

APCEF/RS