Talentos

Mais um Dia

Mais Um Dia

Parecia um dia comum. E na verdade era, mas este dia me reservava uma experiência que, como quase sempre ocorre na vida, poderia passar despercebida, mas que felizmente não foi assim desta vez.
Levantei como sempre, envolvido na rotina das centenas de coisas que faço todos os dias, das quais poucas realmente relevantes, embora a maioria necessárias...
Disperso, entediado, viajei em devaneios, perdendo tempo e energia preciosos, sem a menor preocupação com isso... Estava ocupado demais com minhas preocupações, como minhas contas, as urgências do trabalho, as notas de meu filho...
Sabe, não é que essas coisas não sejam dignas de minha atenção, mas de vez em quando paro e penso se tudo isso faz sentido, pois quando resolvo uma urgência, dez novas aparecem e o mesmo acontece com as contas...
E os filhos? Esses sempre estarão em nossas mentes. Mas as preocupações, inúteis, já que, por mais que queiramos ajudá-los a trilhar o melhor caminho, essa escolha sempre será de fato deles.
Peguei minha bike e saí de casa. O dia estava lindo, um sol radiante, um céu azul, e como era primavera, muitas flores e perfumes para alegrar o caminho.
De repente, um ruído de freios um pouco à frente seguido do previsível barulho de vidro estilhaçado. Parei para ver se podia ajudar e feliz constatei que, os prejuízos eram apenas materiais.
Diferentemente do que seria o normal diante de um evento tão banal quanto indesejável, estava por conhecer um homem que iria a afetar minha vida profundamente.
Seu nome era tão simples quanto ele, João. Inabalável, saiu do carro e perguntou ao motorista do veículo que o atingira se estava tudo bem. O outro, mesmo claramente sem razão, esbravejava querendo levar vantagem na situação... Lamentável ver gente agir dessa forma, mas infelizmente é o mais comum em eventos assim.
Tive o impulso de ir embora, afinal, por que me envolver nisso? Não era problema meu... dei as costas, mas quando pus o pé no pedal, ouvi um estampido, olhei para a direção do som e vi aquele homem estendido no chão.
O seu algoz entrou no carro, transtornado, e fugiu subindo calçadas, quase causando outros acidentes.
Fui até aquele homem, o ferimento parecia grave. Olhei nos olhos dele e seu olhar, mesmo sem dizer palavra, me tocou profundamente.
Instintivamente, liguei pros bombeiros e peguei sua mão. Ele tremia, mas em seu olhar não havia medo. Parecia estar a ponto de desfalecer. E em seu tremor pude sentir um hálito frio de morte.
Quase sem conseguir abrir os olhos, num esforço supremo, ele apertou minha mão e me disse: - Obrigado meu filho!
A ambulância chegou em seguida. Os paramédicos fizeram alguns procedimentos para estancar o sangue, o colocaram em uma maca e o levaram.
Sem saber porque, acompanhei a ambulância. O hospital era bem próximo. Foi fácil segui-la.
Chegando à emergência, liguei pro trabalho e informei o ocorrido. Não tinha como trabalhar naquele dia. A única coisa que importava naquela hora era saber como estaria o meu novo amigo.
Aguardei no balcão; uma dolorosa espera... não sabia se teria outra chance de encontrar aquele pobre homem com vida.
Algum tempo depois, entrou um policial buscando informações sobre o caso. A moça do balcão logo apontou pra mim e ele me abordou cheio de perguntas. Atordoado, nem sei o que respondi. O policial então se foi, mas não sem antes me convidar a comparecer à delegacia para prestar depoimento.
Foi quando, vi a porta do centro cirúrgico se abrir. Levaram-no para uma enfermaria. A cirurgia transcorrera bem e não havia mais perigo de vida.
Fui ao refeitório comer alguma coisa decidido a ficar até que fossem liberadas as visitas.
Não tardou muito e pude então me dirigir ao seu leito. Ele estava um tanto pálido, como era de se esperar diante das circunstâncias. Assim que me viu, me olhou profundamente, havia ternura em seu semblante. Eu podia sentir a gratidão, a emoção e a placidez incomum que ele transmitia.
Passados alguns segundos, desta vez, foi ele que tomou minha mão e me perguntou:
- Qual o seu nome rapaz?
- Carlos, respondi.
- Graças a você, sou João por mais um dia.
Naquele momento, me dei conta do quão frágil é a vida, e o quanto é bela e preciosa também. Ele me agradecia, mas muito mais eu recebera. Perceber o quanto vale esse instante foi um presente enorme para mim. Afinal, de que vale ter muito tempo, se não o vivo intensamente e consciente? Eu não fizera nada mais que meu dever e recebi muito mais do que poderia imaginar.
Uma alegria imensa tomou conta de mim. Saí dali renovado, feliz, respirando vida, uma vida pulsante até então latente dentro de mim.
Aquela traumática situação me despertou de um sono profundo e me livrou de seguir uma vida sem propósito e sem sentido. Dali em diante, cada dia, cada instante, teria seu valor e sua cor.
Acordei pra vida!

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Inspiração

Comecei a escrever, despretensiosamente e a inspiração surgiu, era como se a história já existisse, dentro de mim.

Sobre a obra

Achei o texto inspirador, espero que toque as pessoas ajudando a se dar conta da fragilidade da vida, da impermanência.

Sobre o autor

Sou um músico por paixão, escrevo por consequência.

Autor(a): CARLOS EDILSON SANTOS TAVORA JUNIOR (Called)

APCEF/RJ