Talentos

O homem mínimo

Era um péssimo administrador. Não velava pelos órgãos do qual era responsável, e em consequência de tanto descuidados, estes vivam constantemente à beira da falência. Não raro, interferências externas eram obrigadas a serem tomadas para evitar a bancarrota total. E ai, endividamentos, descontrole de tal monta que geravam valores impagáveis, eternamente rolados; calotes. Comentava-se: Como pode ser assim! A natureza extremamente generosa, ofereceu as melhores condições e tal estrutura, se bem cuidada, viveria com grande tranquilidade. Mas para ele, a vida era uma farra.

Diante das pressões e questionamentos, constantemente transferia responsabilidades: “Não posso ser culpado por problemas que não se iniciaram comigo. Tudo isso acontece por herança! Todos esses problemas são crônicos e hereditários!” E nada fazia para mudar, ou bem pouco fazia.

Iniciaram-se os protestos, primeiro internamente. O mal estar era abafado com medidas de efeitos temporários, remédios e soluções que não iam ao cerne dos problemas. E o quadro foi piorando, a ponto dele perder o controle e por diversas vezes ser obrigado à humilhante situação de gestão externa. Como agravante, tais interferências não buscavam a melhoria. Era cercado de exploradores, que retiravam todos os seus recursos.

Diante de quadro tão grave, somente medidas extremas.

Foi quando todos os Órgãos então se reuniram para discussão do problema. Alguma coisa necessitava ser feita, pois o caos era eminente. O descaso administrativo iria matar a todos. Não foi fácil chegar a um consenso, diversos setores protestaram contra as ideias apresentadas, capitaneadas pelo cérebro, mas a minoria resistente foi vencida. A venda de alguns setores era a única saída. Alguns protestaram com veemência e com argumentação óbvia. Não tinham valia no mercado externo, embora de vital importância para funcionamento da máquina. Porem, foram convencidos, e outros vencidos, diante do exposto de que a venda de alguns seria suficiente para a garantia de qualidade dos que permaneceriam. Claro que seriam necessários ajustes, enxugamentos, cortes dos excessos; mas isso permitiria uma longevidade a todos. Foram então ao mercado.

Os primeiros a serem vendidos foram os que tinha estrutura em duplicidade. A ideia era de se enxugar a máquina, mas conservando todos os órgãos. Obviamente que todos que apresentaram resistência e oposição, com influência negativa sobre as ideias de privatização foram os primeiros. O rim da esquerda e o pulmão da esquerda foram leiloados e conseguiram bons preços no mercado.

Com isso, houve no primeiro momento uma melhora na administração. Dinheiro em caixa, menos descuidos com o próprio patrimônio. Vida mais regrada, e cuidados necessários na adaptação a nova realidade. Porem, passados alguns meses, já adaptado à nova condição, voltaram os problemas. O dinheiro já estava escasso e a economia externa agora pedia mais. Nova rodada de negociações entre os órgãos para resolver o problema. Pâncreas sofreu um corte de 50% e o fígado em torno de 70%. De acordo com os especialistas, mesmo com a redução, os dois órgãos continuariam operantes.

Agora era tempo de controle. Com recursos, mas com poderes restritos, o Administrador vivia em rígido regime. Várias atividades já não podiam ser realizadas, mesmo as que geravam rendas, como a doação de sangue e de medula óssea. Os Órgãos agora, em tempos austeros, e sucateados, dependiam constantemente de suplementos que na maioria das vezes eram negados pela gestão.

Iniciaram-se as greves. Alguns dentes fugiram, o estômago provocava refluxos, o intestino se recusava a trabalhar, o coração alterava a velocidade dos batimentos, os corpos cavernosos não absorviam sangue. Com o organismo beirando o caos, o cérebro então tomou pulso forte. Com enorme influência sobre vários outros órgãos, marketing, e com forte trabalho psicológico que chegava a doer, conduziu um processo que drasticamente seria a solução do problema. Era urgente a privatização.

Partiram então para os órgãos do segundo escalação. O Baço foi arrematado em valores bem superiores ao previsto. Além disso, a garantia de eventuais hemodiálises por um período de 20 anos, pois rim e fígado, já combalidos, trabalhavam duramente. Foi constatado também que o pênis estava subutilizado. Foi a maior negociação realizada até então, com valores que garantiriam 15 anos de manutenção do organismo restante. Estava bem mais organizado e bem cuidado. Não retirava do rosto o charmoso óculos escuros que recebeu de presente do senhor que recebeu suas córneas. Corpo esbelto, bem cuidado.

A estabilidade total foi conseguida com a substituição do coração por uma máquina moderna, fabricação americana. Podia-se observar através dos aparelhos instalados, a completo equilíbrio atingido, e por tanto tempo desejado.

Estava estabelecido o Homem mínimo.

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Inspiração

Estava sem uma ideia exata sobre o que escrever, liguei o rádio e estava tocando o Bonde do Tigrão, a composição "Tchuchuca treme o bumbum". Me veio a inspiração de falar sobre o descartável em uma economia neoliberal.

Sobre a obra

Uma ideia sobre o neo liberalismo em um texto surreal

Sobre o autor

Transpiração de modo obsessivo, e na maioria das vezes achando que a fonte secou.

Autor(a): PAULO ROBERTO PEREIRA DE ARAUJO (Paulo Araujo)

APCEF/CE