Talentos

AO OLHAR PARA TRÁS

São poucos os motivos fortes o suficiente para fazer alguém perder a vida por outra pessoa. Partindo do princípio de que todos somos seres formados pela união de uma porção carnal e outra parte imaterial, combinação de sentimentos, alma e coração, talvez o amor seja o mais forte de todos.
Ainda assim, talvez o único tipo de amor capaz de atingir tamanha força seja aquele que transcende o espírito e entra fundo na carne, o sentimento que corre nas veias e nos faz ser quem somos pelo simples motivo de termos em nossa história a soma das histórias de várias outras pessoas. Refiro-me, nesse caso, não ao amor platônico, nem àquele tão romantizado em nossas artes, nos livros, nas músicas e em cada respiro de Shakespeare. Falo do amor verdadeiro, puro, sincero e visceral, aquele que nos tira a noção de nossas limitações físicas e nos faz invencíveis. É o amor de um filho pelos pais, o amor de um pai pelos filhos. É o amor atemporal, que vence todas as barreiras do tempo, que é mais perene do que nossa própria existência.
Além dele, qual outro motivo? Será que existe outro motivo? Uma soma impensável de dinheiro? O saldo gordo da conta no banco? A certeza de viver uma vida tranquila para sempre, mesmo sabendo que, em se tratando do princípio de morrer por alguém, a vida será algo de que você não irá dispor dali em diante? Ou então a efêmera oportunidade de se consagrar, transformar-se num herói? De repente, a possibilidade de receber em seu túmulo coroas de flores enviadas por tantos desconhecidos, buquês de gerânios, rosas, margaridas e lírios deixados pelas mãos trêmulas e os olhos emocionados de quem acompanhou seu ato de coragem pelos noticiários? Talvez a chave da cidade, entregue em cerimônia solene na Câmara de Vereadores a algum representante seu, porque, obviamente, você não estará ali, nem nesse mundo mais, para agradecer pelos louros com um discurso humilde, no qual diria coisas bonitas como: "Só fiz o que qualquer um no meu lugar faria" ou "Se tivesse que repetir, faria tudo da mesma forma" – ainda que soubesse tratarem-se essas de duas mentiras monstruosas? E ter uma praça batizada com seu nome? Uma creche nomeada em sua homenagem? Um obelisco, que poderia bem ser uma estátua de mármore branco de forma indefinida, lapidado em lembrança à sua memória? Algum desses motivos seria forte o suficiente?
Geralmente o nível de heroísmo do ser humano se liga diretamente a dois fatores: de forma diretamente proporcional à sua capacidade para enfrentar o perigo e, ao contrário, de um jeito inversamente proporcional à força de sua razão. No primeiro caso, existe a mistura de vários outros elementos: habilidade, perícia, técnica, treinamento. É o caso dos super-heróis do dia-a-dia, daqueles que não usam capa nem têm super poderes, mas que trabalham constantemente pondo a vida em risco para contribuir com o bem-estar e a segurança dos demais. No segundo caso, encontram-se as pessoas normais, seres cotidianos, que, quando postos frente a frente com as dificuldades, se jogam de cabeça em ajuda ao próximo, sem medir os riscos, sem reconhecer suas limitações. É o caso do nativo que vê um turista se afogando nas águas turbulentas de um mar agitado e se lança ao resgate com braçadas seguras e vigorosas, apenas para, segundos antes de também ele ser envolvido pela fúria do oceano, perceber que não sabe nadar tão bem. E ali, onde antes havia um, agora permanecem dois corpos afogados.

Apesar da pouca luz vinda do único poste acesso, não posso dizer que ela tenha passado despercebida.
Estávamos em uma pequena praça, uma ilha artificial de natureza incrustada a certa altura do caminho entre minha casa e o trabalho. Não sei dizer se já era noite ou se ainda estávamos no final da tarde. Mas era certo que o frio começava a castigar com mais intensidade, as pessoas caminhavam com mais celeridade e os poucos pássaros que ainda cruzavam o céu seguiam na mesma direção. Naquele dia resolvi cancelar todos os meus compromissos da noite de quinta-feira. Não me sentia bem. Provavelmente a mudança do clima, uma frente fria vinda do oceano, uma massa de ar polar enviada diretamente da Argentina ou outra desculpa qualquer tenha desestruturado meu sistema imunológico. Eu sentia a presença cada vez mais concreta de um resfriado. A garganta já começara a arranhar. Eu tossia de vez em quando. Pelo corpo já sentia dores que não eram aquelas naturais do cansaço de todo dia. Ao sair do trabalho, fui direto para casa. Eram apenas quinze minutos de caminhada, em meio aos quais se encontrava aquela praça.

Aquela foi a primeira vez que a vi.
Ela lembrava minha avó. Talvez fosse alguns anos mais nova, mas os cabelos quase completamente brancos, distribuídos por toda sua cabeça em fios finos, que balançavam mesmo diante da atuação quase imperceptível da brisa soprada dos confins do mundo, passavam a clara impressão de muitos anos vividos. Era pelo menos um palmo mais baixa do que eu e alguns quilos mais pesada. Trazia suas formas acomodadas gentilmente dentro de um singelo vestido de tecido estampado – flores marrons e pretas, arabescos indefinidos e outras artes que não consegui distinguir –, transmitindo paz e serenidade. Não sei bem por que razão, mas eu tinha certeza de que, se chegasse perto dela, sentiria em seu perfume uma combinação de alfazema, lavanda e bolinho de chuva numa tarde cinza de inverno. Ou, quem sabe, o gosto de trigo e fermento misturados na massa caseira do pão recém colocado no forno. Ou do aroma do café que subia numa nuvem de fumaça reconfortante e acolhedora.
Ela deveria, assim como eu, estar voltando para casa depois do trabalho. Numa das mãos trazia uma sacola de supermercado, da qual se projetava majestosa a coroa espinhenta de um abacaxi maduro. Com a outra, segurava com firmeza uma das alças de sua bolsa.
A outra alça, logo percebi, era agarrada com vigor por um rapaz, não muito mais jovem do que eu. Poderia ser seu neto, pensei. Mas a certeza de que os netos normalmente não apontam armas para o peito das avós, nem projetam seus corpos sobre os delas de forma viril e ameaçadora, dizendo coisas do tipo "Perdeu! Perdeu, tia!" logo me fez mudar de ideia.
Aquele marginal não era neto dela, assim como eu também não o era.
Ele a estava assaltando.

O instinto de sobrevivência da raça humana certamente é o grande responsável por termos chegado até onde chegamos. Ainda assim, não há como negar que, muitas vezes, ele se mostra completamente burro. Se não formos espertos o suficiente para saber o momento em que devemos ignorá-lo, corremos sério risco de nos machucar.
Por isso eu não julgo as atitudes daquela mulher. Naturalmente, seria de se esperar que, frente à ameaça, por exposta que estava ao perigo, ela largasse logo a bolsa. Mas, no calor do momento, ela acabou confundindo seus movimentos. A mão que afrouxou a pegada não foi a que segurava a bolsa, e sim a que sustentava a sacola do mercado. Como em câmera lenta, portanto, o abacaxi portentoso se chocou contra o solo de forma lânguida, poeticamente fazendo vezes de prenúncio de alguma conseqüência desastrosa eminente.
Numa luta ferrenha contra o assombro, a velha senhora agarrou a bolsa com as duas mãos, tentando puxá-la para perto de si.

Foi nesse momento que nossos olhares se cruzaram.
Apenas por uma fração de segundos, tempo suficiente para que eu notasse o desespero que tomava conta dela. A súplica velada daquela mirada me atingiu como um soco no estômago. Fez minhas pernas congelarem e um incômodo calafrio nascer na base de minha espinha. "Por favor, me ajude!" – ouvi seus olhos suplicarem.
Da forma como a cena se desenrolava, não seria difícil fazer qualquer coisa. Eles estavam poucos metros à minha esquerda, talvez não mais do que dez ou doze passos. Ela estava virada para mim. Ele, de costas. Seria fácil aproximar-me por trás, atingi-lo com alguma coisa pesada – talvez uma pedra ou mesmo uma garrafa de vidro jogada no lixo –, desarmá-lo, imobilizá-lo, esperar a chegada da polícia e receber todo o carinho e os infinitos agradecimentos daquela senhora cuja gratidão eternamente eu teria. Quem sabe ela até me convidasse para ir visitá-la numa tarde de domingo para que pudéssemos comer uma fatia de bolo, tomando café e jogando conversa fora. Ou, quem sabe, fizesse o marido me chamar para a festa de aniversário de casamento deles, marcada para dali a alguns meses ("Não vai ser nada muito chique, só um churrasco lá em casa, uma reuniãozinha entre a família e os amigos mais próximos").
Mas... e se não desse certo? Havia inúmeras possibilidades de ver esse maravilhoso plano de salvação ser reduzido a pó num piscar de olhos. Ou num clique do gatilho do revólver. Ele poderia ouvir minha aproximação. Aí então se viraria na minha direção e, como reflexo automático, puxaria o gatilho. Em não mais do que três segundos, eu me veria caído no chão, com um buraco no peito, ao redor do qual a mancha obscena de meu sangue derramado cresceria num fluxo constante. Se tivesse sorte, a bala poderia me acertar na cabeça, trazendo o fim de forma mais imediata. Provavelmente, nessa situação hipotética, não me sobraria sequer a opção de fugir. Porque, ao me virar, o projétil atingiria minhas costas, causando sofrimento tão agudo que eu desistira, inclusive, de berrar de dor. Esse seria o simples resultado de uma vértebra dilacerada, da medula espinhal rompida, dos movimentos que abandonariam minhas pernas para sempre.
Confesso: nunca acreditei que algum dia pudesse despertar dentro de mim aquele heroísmo recôndito que se confunde com o perfeito altruísmo. Nem mesmo ali, passando pela praça, naquele fim de tarde/começo de noite, pensei que isso fosse capaz de acontecer. Porque, no fim das contas, sou apenas humano. Tenho inúmeras qualidades, mas reconheço meus defeitos.

Por isso, não sustentei o olhar.
Não atendi ao chamado.
Não respondi ao pedido de ajuda.
Simplesmente abaixei a cabeça e continuei andando.
A caminho da segurança.
Rumo ao conforto de minha casa.
Deixei para trás a velha senhora, quem lembrava minha avó.

Aquela foi a última vez que a vi.
Antes mesmo de virar na esquina seguinte, houve um barulho.
Um tiro.
Apenas o estampido seco de uma bala se projetando no ar.
Em seguida, passos acelerados.
O ladrão, agora assassino, passou correndo ao meu lado.
Numa mão, o revólver com o cano ainda fumegante.
Na outra, uma bolsa.
Ele não se deu ao trabalho de me olhar.
Eu também não levantei a cabeça para fitá-lo.

Em nenhum momento me virei para ver o que tinha acontecido.
De algum jeito mórbido, eu já sabia.
Assim como já sabia, ao chegar em casa, que o simples ato de fechar a porta às minhas costas não serviria para apagar o passado.

Quando, então, minhas pernas perderam as forças, minhas costas escorregaram pela porta e eu me sentei no chão, com o peito pulando em meio a um choro convulsivo, entrecortado por soluços, lamentos e culpas, eu descobri um motivo forte o suficiente para permitir a alguém dar sua própria vida por alguém. Aprendi de forma cruel naquele momento que a verdadeira força de uma pessoa não vem de si mesmo, mas dos outros.
E, com toda a força ainda presente em meu coração, desejei ser um herói, mesmo que por breves minutos, apenas para sentir no peito a satisfação de poder olhar para trás sem ser mutilado pelas garras infectas do remorso.

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Inspiração

Esse é um conto que tem como tema principal o remorso e a culpa. Sentimentos tão humanos e comuns, que por vezes crescem fortes o suficiente para nos sufocar, fazendo com que percamos as forças e nos deixando com nada além da tristeza no coração o na boca o amargo sabor de saber que determinadas atitudes poderiam ter sido tomadas de modo diferente.

Sobre a obra

Narrativa simples, que intercala a ação descritiva das cenas com o aprofundamento psicológico do personagem narrador. A combinação entre estes dois elementos é que dá a tônica da narrativa, apresentando um cenário de proximidade e naturalidade, até a chegada do desfecho.

Sobre o autor

Diego ou Ramon é desses tipos que diariamente desenvolvem seus talentos através da busca pelo autoconhecimento, numa jornada à procura da evolução pessoal. Atualmente é daqueles que gostam de juntar palavras em pequenos espaços em branco, se lançando à caça de fama e sucesso enquanto desenvolve a habilidade de falar sobre si na 3a pessoa.

Autor(a): DIEGO RAMON VALLE VITAL (d-i-e-g-o-v-i-t-a-l)

APCEF/SC