Talentos

José

José
Bruno Leonardo da Fonseca
Era um José como tantos outros Josés, que acordou cedo, tomou um banho rápido, escovou os dentes, comeu às pressas um pão amanhecido com manteiga e tomou
um copo de café com leite e saiu apressado com uma mochila nas costas rumo ao ponto de ônibus, e isso porque o Sol ainda nem pensava em raiar.

Pegou uma “lotação lotada”, se apoiou em uma barra de ferro no fundo do ônibus enquanto escutava Adoniram Barbosa no seu fone de ouvido e folheava um desses folhetins populares. Era possível ver um sorriso em seus lábios, José estava feliz.

Uma hora e dezoito minutos depois desceu do ônibus assoviava uma canção alegre, andou mais uns 10 minutos em um bairro chique da cidade até chegar na obra
em que trabalhava.

Até este momento José parecia um fantasma, ninguém havia notado sua presença, era apenas mais um entre tantos Josés na multidão, então escutou uma voz conhecida:

- Bom dia, José, bom trabalho! – era Chico, o vigilante da obra que José trabalhava.

José acenou com a cabeça, deu um leve sorriso e aceno de mão e seguiu em frente.

Colocou seu uniforme, entrou no elevador com mais 5 colegas, e foi para o 27º andar (ainda faltavam mais 8 para “levantar”) colocar tijolo sobre tijolo, durante oito horas, interrompidas apenas pelo horário de almoço e uma soneca de meia hora antes do turno da tarde.

Quando o relógio marcou 17:00 pegou o elevador com mais 7 colegas, desceu até o vestiário, tomou um banho rápido cantando “hoje o samba saiu, laralaiá, procurando você”, se trocou, colocou novamente o fone no ouvido, escolheu agora
Martinho da Vila, e saiu valseando pela rua onde parecia invisível, ninguém notava aqueles pés ligeiros deslizando pelas ruas até o ponto de ônibus.

Se espremeu no ônibus para casa, o sorriso que na viagem de ida era de canto de boca, agora já mostrava um pouco os dentes, seu coração acelerado, olhar distante...

Chegou em casa, deu um beijo na sua esposa, que para José era a mulata mais linda do mundo (carinhosamente a chamava de “minha nêga”), e correu para colocar suas vestes favoritas: calça branca, sapato branco, camisa listrada de azul e branco e um chapéu Panamá também com uma fita azul.

A ansiedade tomava José!

Era lua cheia e José com sua “nêga” ao lado, de mãos dadas, começavam a ouvir e sentir aquele som mágico, que vinha de cuícas, tamborins, pandeiros, cavaquinho, tambores, violão e afins que faziam até as pedras movimentarem os quadris.

Com o coração batendo a mil de felicidade, um sorriso que mostrava todos os 80 dentes que José parecia ter, sorriso daqueles verdadeiros com os olhos também sorrindo, e tudo se transformou naquele momento, José não era apenas mais um José...

Assim que suas pernas começaram a mexer no ritmo dos tantãs, como um holofote natural, a Lua começou a iluminar José, e todos os olhares se voltaram pra ele.

Todos os homens e as loiras, morenas, mulatas, ruivas, orientais, turistas, gringas, se viravam pra José. Suas pernas pareciam não ter ossos sendo de borracha, saltava no ar com a leveza de uma pena, seus pés calçados pelos seus surrados sapatos brancos pareciam tocar as nuvens.

Diferentemente de mais cedo quando ninguém
notava José, ele agora era o centro do Universo, o Sol girava ao seu redor, os olhos de “sua nêga” brilhavam como cristais ao luar, era nítida a felicidade em seu marido.

Aquele momento era dele. Todas queriam girar como se estivessem no espaço sideral com José. Em suas veias não corriam sangue, mas notas musicais dos seus sambas favoritos. Nada podia pará-lo, nada poderia tirar aquele sorriso sincero com os olhos de sua face, o samba era sua vida, ali não passava despercebido como em todos os demais momentos de sua vida.

Ele era mais importante que o Presidente da República, mais feliz que aqueles homens engravatados em seus carros importados pretos com banco de couro e ar condicionado que tanta invejava quando se espremia por quase três horas por dia nas idas e vindas do trabalho. Era SEU momento. O samba o tornava único.

José custou a dormir, as notas musicais ainda ecoavam em seu coração enquanto olhava para o teto, como se pudesse ver além da laje e enxergar as estrelas.

Horas se passaram até que, enfim, adormeceu. Certamente sonhou com samba. 5:10 o despertador apitava como de costume.

E José como tantos outros Josés acordou cedo, tomou um banho rápido, escovou os dentes, comeu às pressas um pão amanhecido com manteiga e tomou um copo de café com leite e saiu apressado com uma mochila nas costas rumo ao ponto de ônibus, e isso porque o Sol ainda nem pensava em raiar.

Pegou uma “lotação lotada”, se apoiou em uma barra de ferro no fundo do ônibus enquanto escutava Cartola no seu fone de ouvido e folheava um desses folhetins populares.

Mas desta vez não era possível ver um sorriso em seus lábios, e mesmo com o Sol já brilhando do lado de fora o dia estava cinzento, sem graça.

Hoje José é apenas mais um José como tantos outros Josés despercebidos na multidão, como um fantasma invisível para a maioria, sem nada que o tornasse único, sem razão para que a Lua servisse de holofote.

Hoje seria um dia comum, sem graça, sem vida.

Hoje não tem samba...

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Inspiração

Sempre me inspirei em grandes cronistas, como Carlos Drummond de Andrade, Luis Fernando Veríssimo, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos...
Contar coisas do dia-a-dia.

Sobre a obra

Procuro mostrar algo que nos torna especial, o que nos faz feliz.
Não tem muita técnica, apenas contar uma história com detalhes, onde as pessoas se sintam próximas e criem empatia com o personagem.

Sobre o autor

Sempre fui bem em redação. Fiz Direito, e sempre li muito. Quando escrevo as palavras vem naturalmente.

Autor(a): BRUNO LEONARDO DA FONSECA (Bruno Leonardo)

APCEF/GO