Pessoas que nadam no mar

Pessoas que nadam no mar




Você não vai acreditar no que me aconteceu hoje.
Sei que há muito não te mando notícias, mas essa não pude deixar passar. Claro que antes de contar o que aconteceu hoje, sinto que devo voltar um pouco ao início e te dizer das coisas que para cá me trouxeram. Ao mesmo tempo que preciso fazer isso, sinto uma incontrolável pressa de dizer de hoje o que me aconteceu, de tão extasiada que estou. Mas vamos com calma. Não pretendo contar tudo, todos os acontecimentos um por um, porque você está a par deles, da superfície deles, pelo menos. O que você não sabe, o que trago nas profundezas, é porque não disse para onde partia, quando vim me esconder.
Precisava de solidão. Depois do susto, do medo, precisava não ter em volta de mim nenhum de vocês sentindo pena, dor, sentindo-se insuficientes para me consolar. A ninguém cabe essa medida. Quando o pior acontece somos todos insuficientes uns aos outros. Eu o seria para vocês que sentiam dor equivalente. Não queria compaixões paliativas e nem estava disposta a oferecê-las.
Talvez você esteja pensando que vou pedir perdão nesta carta que nem sei se chega a tuas mãos. Desculpe, mas não vou. Não sinto que tenha pelo que pedir perdão e essa deve ser umas das primeiras vezes que assim me sinto. Estou adorando. Sem pedidos de desculpa. De fato, vim só para contar o que me aconteceu hoje, mas para isso preciso localizá-lo nas angústias que me guiaram até aqui onde agora estou, até onde você não sabe, não faz a menor ideia de onde eu esteja. Nem imagina. Já chego lá (aqui).
Assim falando pareço exagerada como costumava ser: “as angústias que me guiaram até aqui...” mas, acredite, tentei de outras maneiras e não encontrei nada que melhor o dissesse. Além disso não queria perder mais tempo a dar voltas sem chegar ao que anseio por narrar.
Angustiada eu estava quando saí daí, quando deixei para trás tantas pessoas, minha casa, minhas coisas, meu telefone e desapareci, incomunicável.
O que você não sabe a meu respeito é que me canso. Me esgotam as coisas de tempos em tempos e como não podia deixar de ser, exauri-me da angústia. Da que estava sentindo e da que antevia assomar-se a ela, infinitamente, agigantando-se feito bola de neve que se avoluma descendo montanha abaixo, e que me tinha bem no meio. Cansei. Do gelo de viver dentro daquela bola de neve, do peso que se ia aumentando ao meu redor. Precisava tomar distância da angústia, estava exausta dela. Assim que, muito cansada, decidi que sairia da inércia, do sofrimento desmedido e prolongado. Engendrei o silêncio e a solidão desejando descobrir de mim outra estrutura que pudesse compor. Fugi da cidade, de vocês, de tanta coisa, para aportar longe, me encontrar com alguém que fazia tempos vinha querendo ser. Uma outra de mim. Acho que pela primeira vez também, não considerei o que vocês pensariam. Saí e estava feito. Foi a melhor coisa que fiz.
Talvez ainda, se eu fosse diferente, se não fosse eu, teria sido mais difícil, mais doloroso, ou talvez tivesse piorado muito antes de melhorar. Outro talvez tivesse emburacado, bebido sem moderação nenhuma ou feito sexo irresponsável e punitivo, cavando mais fundo o poço em que se afundava, para, só depois de perder as forças, começar sua reconstrução. Não é o que sou.
Outra coisa que você não sabe de mim, é que quando me canso, minha cabeça já está a dar voltas, arquitetando o próximo passo, os próximos rumos. Te disse que saí exausta e então, quando por fim deixei para trás o que havia para deixar, já tinha por dentro tudo organizado. Você ficaria surpreso... planejei até pequenos detalhes como decidir deixar de beber café, para beber chá. Eu seria a partir dali a pessoa que bebe chá, dentre outras coisas, todas elas mapeadas. Tamanha foi minha precisão e antecipação, que antes de embarcar fui a uma loja de artigos esportivos e comprei os suprimentos necessários para o que queria. Cheguei aqui, já com apartamento alugado e mobília comprada por entregar. Era tudo ou nada.
Nem sempre tudo sai como planejado. Quase sempre nada vai exatamente como pretendemos e comigo não foi diferente. Um ou outro pormenor se interpôs, e aqui e ali atropelei-me algumas vezes antes de encontrar os eixos.Voltei até a fumar por um tempo. Não pelo desespero ou para preencher o vazio angustiante da falta deixada pela angústia da qual me despedira, mas por admiração da solidão tamanha em que me pus. Uma Ode ao meu estar sozinha, alguma coisa como “Só porque eu posso", já que não tinha ninguém dos meus habituais a minha volta, em minha companhia.
Foi temporário e breve. Logo comecei a tomar o rumo que planejara na exaustão do meu estado anterior. Além de ser uma pessoa que toma chá, e outras miudezas de características a que me tinha proposto, tinha decidido que seria uma pessoa que nada no mar. No lugar de café eu tomaria chá e nadaria no mar, nessa minha nova pessoa.O primeiro obstáculo tomada essa decisão era a temperatura, mas tão exausta estava de mim, que comprei antes de vir duas vestes de neoprene, iguais às que usam os surfistas em mares distantes. Long jhons . Você não sabe, mas vim parar num lugar muito frio. Não tão longínquo como talvez esteja imaginando, mas muito frio e muito vazio a maior parte do ano. Perfeito.
O que você sabe de mim, talvez indicasse que eu teria ido me refugiar em paisagens campestres, mas não, eu queria ser uma pessoa que nada no mar. Assim cá estamos, estou,e é o suficiente para te situar nos acontecimentos desde que sumi, para que possas crer um pouco mais no que me aconteceu hoje. Isso basta. Querer nadar no mar foi que me trouxe até esse evento que não pude aguentar de vontade de compartilhar contigo, passado um ano de completo afastamento. Estou muito feliz hoje por ter tomado a decisão de ser alguém que nada no mar.
No começo não foi fácil e nem foi no começo que principiei a prática que almejava. Teve uma pausa de adaptação, o cigarro, o frio. Mas quando já estava por me apropriar de outras rotinas, vesti meu long John e fui.O primeiro dia foi horrível. Eu tremia, senti falta de ar, a correnteza era forte e desconhecida... Saí vencida da água. Corri para casa querendo chá e banho, quentes os dois. Queimando.
Sabe o que foi engraçado? Não quis desistir, como normalmente faria. Não estava derrotada. Era diferente.
Aos poucos fui melhorando, ficando mais atenta, passei a entender melhor as marés e as correntes, então me tornei uma pessoa que nada no mar. Senti orgulho, imagino seja inevitável quando nos esforçamos para conseguir algo e, ao contrário do que pensam, não tem conotação negativa. Mais que orgulho senti uma felicidade tão genuína que podia ser que a confundissem com a arrogância. Sinto muito pelos que assim consideram. É gostar mais de si, sem vaidade excessiva, mas não sem ela de todo. Fui preenchida por uma gratidão da melhor qualidade, não dessa que andam esvaziando por aí em compulsivas repetições. Orgulhosa, feliz, grata, arrogante para alguns, aqui me tenho, uma pessoa que nada no mar, e hoje assim o fiz, como rotineiramente.Tomei meu chá ao acordar, comi salada de frutas e tapioca com ovos, enquanto lia o jornal que o Sr. João da banca vem deixar cedinho à minha porta. É longe demais para assinaturas esse meu lugar de agora e substituem-nas os acordos apalavrados com a gente boa daqui. Vesti meu long John e desci, para vinte passos depois pisar a areia. Fiz os alongamentos que aprendi imprescindíveis depois de um dia ter sido acometida por uma violenta câimbra no meio do mar, e entrei na água.
Sabe porque queria ser uma pessoa que nada no mar? Ao certo também não sei, mas era incontrolável o desejo de sê-lo. Acho que tem a ver com o silêncio aquoso que preenche meus ouvidos embaixo d’água. Não há barulhos possíveis que não os do mar deitando-se à minha volta. Assim de silêncio tenho vivido aqui. Afora uma ou duas palavras com os locais, meus vizinhos, ou algum ruído mais elevado na alta temporada, tenho vivido tão só que não podes imaginar. Muito feliz. Hoje assim estava eu no mar, cercada de água e silêncio e dando uma depois da outra braçadas com ritimada obstinação e suavidade. Sem pressa, só eu, o mar e o dia começando a nascer.
Já tinha tomado boa distância da arrebentação, estava uns 200m mar adentro, quando de repente percebi uma sombra enorme se aproximar.Senti um medo sem tamanho e paralisei. Pus a cabeça fora d’ água e foi quando a vi.
Primeiro foi sua magnífica cauda que surgiu na superfície com um movimento majestoso, cheio de graça e urgência. Tinha leveza e ao mesmo tempo força aquele balé da cauda da baleia. Sim, uma baleia. Eu hoje estava nadando no mar e me acompanhou uma baleia.
Eu disse que você não acreditaria. Eu mesma não acreditei.
Meu medo se agravou e depois se converteu numa outra coisa que não sei o que. Foi como se a princípio eu temesse morrer, com todas as minhas forças e depois desejasse, com as mesmas forças, morrer ali, naquele momento. Estava entregue, hipnotizada. De mais nada no mundo todo eu precisava, nem precisaria mais. Tendo presenciado aquilo já tinha tudo e me bastava.
Ela me rodeou umas vezes ainda, afastou-se um pouco e saltou um salto mágico que só se pode ver em grandes produções cinematográficas. A água se agitou ingovernável e choveu-me uma tempestade particular. Fiquei parada admirando, temendo, desejando, transbordando de existir. Durou para sempre minha estupefação diante do espetáculo da baleia.
Passado um tempo, retomei cautelosa minhas braçadas, no compromisso de seguir sendo uma pessoa que nada no mar. Depois de mais alguns minutos de companhia, minha nova amiga tomou distância e sumiu no infinito.Deitei-me de costas na água para boiar e admirar o céu, como faço todos os dias ao fim do meu percurso, para que relaxem os músculos. Está um dia bonito e o céu está limpo e claro, mas pareceu -me nada de especial. Imagino que nada depois da baleia por um bom tempo me há de arrebatar como ela.
Quando cheguei em casa vi no espelho do banheiro um sorriso. Fazia tempos que não o tinha assim, espontâneo.Acho que pensava justamente no inacreditável do que me aconteceu hoje, e como nunca ninguém acreditaria se contasse. Eu mesma quase não posso crer. Não tivesse estado lá, teria virado os olhos com desconfiança a outra de mim, a de antes. A de agora, essa que sou, talvez não tomasse por duvidosa a história. Não sei. Fato é que a outra que sou, a de hoje, uma pessoa que toma chá e nada no mar, não teve escolha entre crer ou desconfiar. Essa de mim lá esteve e viu acontecer.
Meu corpo todo fervilha ainda. Diversas vezes entre essa manhã e agora, repeti para mim “hoje nadei com uma baleia”. Como o mar, me insurjo em ondas de euforia para depois retomar a serenidade contemplativa da lembrança daquela cauda batendo na água, daquele monstro primoroso, acercando-se de mim no passeio matinal.
Passado tanto tempo não pude me conter ou contentar-me com a solidão que ergui de muralha. Senti vontade de contar para alguém, para você, ainda que tivesse certeza de que você não poderia acreditar no que me aconteceu hoje.


Compartilhe essa obra

Inspiração

A ideia do conto surgiu-me espontânea faz algum tempo. Gosto de nadar no mar e é uma prática que sempre desejei realizar com regularidade, mas só na história que aqui conto consegui enfeitá-la de rotineira.

Sobre a obra

A obra se constrói em estrutura que se assemelha a uma carta. O narrador dirige-se a um interlocutor específico com a intenção de contar-lhe um acontecimento que antecipa inacreditável. Antes porém de narrar o ocorrido, situa suas angústias de forma enigmática, provocando o leitor a perguntar-se o terá acontecido antes do irá contar a personagem.

Sobre o autor

Sou formada em Letras - Português e Literaturas, pela UFRJ.
Tive um conto selecionado no concurso gente de Talento em 2007 ; publiquei em 2010 a coletânea "Catalografias" e recentemente publiquei "Contos de Retrocesso (ou futuros possíveis)", pela editora da Amazon.
Sou uma leitora apaixonada e aventuro-me na escrita com alguma ousadia.

Autor(a): MARCELLA AOR DE BRITTO (Marcella Aôr)

RJ