Talentos

OS BEM-CASADOS

Arabella e Belarmino. Feitos um para o outro. Vê só: os nomes até soam como um só. Complementares, metades da laranja, uma banda de uma concha que se está ligada a outra e que no meio daqueles dois se formou uma bela pérola, que é o Amor.

Antes que você, caro leitor, imagine que vamos contar uma melosa história de amor, de matrimônio, de juras eternas, alto lá – quem cá escreve somos nós, o espírito do bem-casado! E estou pouco me lixando se doravante ou para trás me tratarei ou me referi na primeira pessoa do singular ou do plural. Se “eu” ou “nós”, como verás, pouco importa – não me dou com a gramática e nem preciso de intimidade com essa senhora que ora reivindica ser nova. A prosa é sobre a gente, sobre o bem-casado. Ou os bem-casados.

Falando em novidade, de uns anos pra cá, convenhamos, nos banalizaram. Não o casamento, pois afinal, pouco me importa se depois da cerimônia algum dos noivos quis pular fora ou arranjar algum bote salva-vidas para seguir seu rumo: fizemos a nossa parte de unir os dois, consumar o casamento e deixar os convidados mais felizes. Estamos falando do pouco caso e dos plágios que trataram de inventar. Usando nossa mesma receita e conceito, agora é moda: bem-nascidos, bem-vividos, bem batizados, bem-formados, bem-promovidos – ora tenha a Santa Paciência e sejam mais criativos! Falta de criatividade, nem a receita mudam – alteram um nome e acham que está tudo resolvido?

Diz a tradição antiga que nós, nossas duas partes, representamos a união dos noivos, selando a cumplicidade, união, alegria, compromisso e respeito mútuo. Daí pra se ter muita sorte nessa novela, tem que ser distribuído um bem casado para cada convidado. Mas ainda bem que a tradição está se reinventando, e a fartura do povo do lugar refez isso: são dois bem-casados para cada convidado.

Mas me deixa voltar para o começo, Arabella e Belarmino. A tia-avó de Belarmino era uma doceira renomada da cidade, inclusive foi o presente dela para o querido neto-sobrinho: nós, os bem-casados. Na verdade, somos ovos, farinha, açúcar, leite condensado, manteiga, fermento e outros segredos. Um doce qualquer. Até que nos transformamos no bem-casado no justo e exato momento que um convidado nos leva da festa – só aí que os dois pequenos doces suaves e delicados e suas metades se transformam em um, o espírito do bem casado.

O casamento de Arabella e Belarmino foi lindo! Lindo sim, mas lá com seus dramas e clímax. Vou contar o que aconteceu. Preste atenção nessas duas: Verônica, a mãe de Arabella, ex-esposa do Dr. Raul, pai de Arabella. Magnólia, atual esposa do Dr. Raul. O casamento se realizaria no Clube da alta sociedade da cidade cujo fundador e presidente emérito era justamente o pai de Dona Magnólia, e ela, a madrasta de Arabella, ocupava o cargo de tesoureira do Clube. Para Dona Verônica, um despautério, uma verdadeira afronta – não bastava Magnólia ir ao casamento de sua única filha, agora ainda seria no “covil” dela? Bateu o pé e disse que filha se casaria sem a sua benção. Daí foi Magnólia que, ungida de um falso constrangimento, disse que não queria causar e não iria ao casamento para evitar problemas.

Após muita discussão, choro e desistências, Arabella ultimou: “ou vão as duas, ou ambas estão desconvidadas”. Blefou e ganhou, no dia, lá estavam lá as duas – com o vestido na mesma tonalidade vermelha cor de carne. Tenho cá pra nós que compraram na mesma loja.

Tudo transcorria bem: marcha nupcial, altar, sim, valsa, buquê, brindes e homenagens. Já era quase fim da festa e as moças do cerimonial já davam graças aos céus por mais um evento chegar ao fim. A mesa de doces era cenário de guerra: terra arrasada – sobravam duas dúzias de brigadeiros, poucos doces de ameixa e apenas um chocolate, que pendia no canto da mesa. E ao lado, a mesa dos bem-casados, já sem a sentinela do cerimonial que vigilante pastorava para que nem um convidado enchesse a sacola – dois bem-casados por convidados, não mais.

Sobravam apenas dois bem-casados na extensa mesa. O pano dourado nos destacava na bela bandeja de prata. Saindo do banheiro, vinha a mãe da noiva, a Dona Verônica, que foi retocar o visual para sair nas últimas fotos. Vindo do salão principal, desfilava cheia de si a Dona Magnólia, a madrasta. Em rotas perpendiculares. O ponto de encontro você já sabe: a mesa de bem-casados, e o objetivo era um só – comer os bem-casados. Os últimos. O problema era que só existiam dois de nós. E como já disse, a boa tradição e os costumes atuais prezam: dois bem-casados por pessoa. Uma percebeu a presença e a intenção da outra – acho que notei que Dona Magnólia apertou o passo. Chegam ao mesmo e exato momento à mesa – nem tira-teima diria quem ali chegou primeiro, empate técnico. Entreolham-se, nada falam. Face a face. Dona Verônica esboçou um gesto com as mãos, mas logo reteve o impulso quando viu que Dona Magnólia também mexeu os ombros e pareceu abrir a boca e balbuciar algo.
A saída mais prudente parece ser a Salomônica. Como duas senhoras distintas que são, cada uma ficará com um bem-casado. Mas naquela guerra, que não começa ali e sim há dez anos, nenhuma delas queria propor armistício.
Nisso, de súbito, esbarra em ambas a prima de Belarmino, Dara, que de pileque, sem cerimônias ou licença, pega os dois bem-casados e de mãos dadas segue em direção à saída com um convidado que acabara de conhecer na festa. É nesses dois que vamos despejar o espírito do bem-casado, para abençoar com a mesma sorte e felicidade dos noivos.

Já não temos tempo para velhos rancores e amargos sabores.

Compartilhe essa obra

Share Share Share Share Share
Inspiração

Uma cena real?

Sobre a obra

Vi uma cena, imaginei o resto.

Sobre o autor

Escrevo porque leio. Porque o peito grita.

Autor(a): FAUSTO DE ARAUJO NETO (Fausto de Araújo Neto)

APCEF/RN