Talentos

Café

Eu odiava ela. Ah, como odiava. Só tinha 48 horas para curtir meu apartamento, minha cama, meu ar-condicionado, quem sabe uma cerveja enquanto lia um livro fácil ou assistia algo na TV. Mas ela não me deixava relaxar... estava sempre gritando. E quanto mais ela gritava, mais aquele bebê irritante chorava. Tinha a impressão que ela sabia, sabia que eu estava em casa curtindo meu merecido descanso. Eu nunca soube ao certo o que diabos aquela criança fazia para desestruturá-la ao ponto de tantos berros. E tenho convicção: ela faz algo para a criança chorar (e chorar alto!).

Tenho um prazer sórdido. Levanto de mal humor e com vontade de dormir mais e desejo a ela engasgar-se com os próprios gritos. Aí, banho-me, pego meu carro e vou curtir um café na minha padaria favorita, afinal, dinheiro é pra gastar, não é?!

Fico me questionando o porquê alguns se reproduzem, afinal, depois de todo esse tempo ela não entendeu a ineficácia disso?!

Só que hoje, bem, hoje eu não pude sair de casa. E acordei com o tradicional “Cale a boca”. Minha padaria favorita não podia me satisfazer. Meu carro ficou parado no estacionamento do condomínio. Sobrou tomar café com a orquestra do buá...

Pela primeira vez eu sentei na varanda. Como ela é quente! Ainda assim, olhei para a janela da frente. Um senhor bonito, de rosto simpático, folheava um livro, enquanto sorria constrangido de volta, com uma expressão de “Sinto muito!”.

Quando se mora em condomínio, chega um dia que você percebe: alguém vai te flagrar trocando de roupa. A privacidade vendida “esquece” de informar: a janela do vizinho é de frente para sua varanda. E a única coisa que nos protege dos outros é, bem, são os outros.

Mas se você for um sociopata, um fofoqueiro ou simplesmente alguém que não tem aonde tomar café, você vê.

Aquela criança vai chorar. A mãe vai berrar. E eu? Bom, eu quero voltar a tomar café na padaria.

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Inspiração

A ideia veio da necessidade de falar da inercia diante da violência, o cinismo com o qual enxergamos a vida, nosso conceito de privacidade, individualismo e falta de compaixão.

Sobre a obra

Trata-se de uma narrativa simples em tempo cronológico.

Sobre o autor

Sou extremamente reservada, motivo pelo qual é a primeira vez que publico um conto, pois gosto da ideia de anonimato. Não sou escritora, simplesmente tive a ideia e resolvi expor em papel.

Autor(a): NATHALEE BRUSACA ABREU (Pietra de Luh)

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