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Agulhas de tricô

Agulhas de tricô

Vocês já perceberam como é difícil acreditar que um adulto já foi criança? Acho bem complicado e, quanto mais adulto, menos criançando imaginamos a pessoa.
Na minha família tem muita gente grande. Meus pais, que trabalham de montão; minhas avós, que amam passear no shopping; e os vovôs, que gostam de churrasquear no clube.
Quando, entre uma brincadeira e outra, eu e minha irmã nos damos ao trabalho de observar os mais velhos, nada vemos de criançante... nada.
Um dia, mamãe nos informou que ela e o papai não tirariam férias e que nós, as crianças da família, iríamos passar um tempo com nossos bisavôs.
- Manhê! O Biso e a Bisa ficam sentados no sofá, ficam com aqueles pauzinhos e ... e... - disse o menino gesticulando exageradamente - ficam tricoisando e tricoisando e ...
-TRICOTANDO. A mãe estava irredutível. Vão viajar, sim, e tratem de aproveitar para aprender a tricotar.
Ela saiu do quarto e me deixou pensando “se é pouco brincante viver com adultos e com adultos muito adultos, como serão as férias com adultos muito muito adultos?”
Eu, Mano, e Mana - minha mana - nos preparamos para arrumar as malas. Pegamos o que considerávamos básico: Videogame, joguinhos, celular, baterias para o celular e fones de ouvido. Então mamãe comunicou que “o básico” era pijama, meias, escova de dente... bla... blabla... blablabla.
Enfim chegou o dia da viagem. Embarcamos para nossas férias, cada um com um baita crachá pendurado no pescoço e um aviso: “não se separem por nada.”
Carro. Avião. Ônibus. Carro ... Barco.
Deixamos para trás uma metrópole de imensos espigões de cimento e vidro e ferro para desembarcar num sítio no meio de uma ilha com espigões brotando em meio a girassóis e amores-perfeitos e bocas-de-leão e montanhas de areia.
O casal de adultos muito muito adultos aproximou-se devagarinho. Ela, a Bisa, com os cabelos lilases esvoaçando rebeldes e enfrentando as turbulências do vento; o Biso, com um par de óculos na frente dos olhos e, outro, aconchegado na lustrosa careca e, mais outro, pendurado por uma cordinha no pescoço.
Depois de abraços, beijos e apertões nas bochechas, todos entraram na pequena casa, sentaram-se ao redor de uma mesa com toalha xadrez e calorosas canecas de chá e perfumosos biscoitos de polvilho. As novidades foram contadas e, em seguida, todos foram dormir com as galinhas. Ops! Só explicando, dormir com as galinhas não quer dizer dormir no galinheiro e com as penadas, não, significa dormir cedo... bem bem cedo!
- Mana... Maaana, tá acordada? Você viu alguma TV, videogame ou notebook?
A menina, tentando responder entre bocejos e mais bocejos, balbuciou: nãuaaah!
- Mana, eu não quero passar as férias tricoisando, não quero.
- Nãuuuaaaaaah! E Mana adormeceu.
Mano demorou mais tempo para pegar no sono e, assim, ouviu sons que nunca tinha ouvido na cidade. Riiinch! Buzzz Buzzz! Óinc Óinc! Cricri Cricri! Com medo, cobriu a cabeça com as cobertas e assim o sono o encontrou.
Mano e Mana não perceberam que os Bisos haviam escutado a conversa e que ficaram preocupados com a lamúria do bisneto: “eu não quero passar as férias tricoisando”.
CocoricÓÓÓ CocoricÓ
CocoricÓ
CocoricÓÓÓ CocoricÓ
O galo acordado acordou acordando todo mundo.
Depois de saborearem um café da manhã sem cereais de caixinha e suco de garrafinha, no qual se empanturraram com pão quentinho, geleia de amora do quintal e ovos catados do galinheiro naquela manhã, as crianças, preocupadas, cochicharam uma para a outra:
- O que faremos?
- Mano, como eles são adultos muito muito adultos, não podem brincar.
- Mana, nossos pais são adultos e nossos avós são adultos muito adultos e não brincam, imagina se os bisos que são adultos muito muito adultos sabem brincar.
E, juntos, retrucaram mais uma vez, bem baixinho: “O que faremos?”
Nesse momento, os bisos apareceram empunhando, cada um deles, um par de agulhas de tricô.
- Hoje vamos TRICOISAR!
As crianças se olharam sem entender o entusiasmo do casal de velhinhos.
Com animação juvenil, o Biso entregou uma agulha para cada criança, dizendo: “Vamos todos tricoisar na praia.” Mal terminou a frase já foi puxando as crianças pelo braço não dando tempo para elas retrucarem.
A cada passo dado em meio às plantas rasteiras que coloriam a brancura da areia da praia, os adultos muito muito adultos remoçavam a olhos vistos.
Com as agulhas de tricô, desenharam imagens que a água do mar desdesenhava com magia. A bisavó, com letras redondinhas como caramujos, escreveu um hai-kai que as ondas desmancharam ponto por ponto ... sílaba por sílaba...

O mar tricotou
Estrelas e corações
Na brancareia.

Naquele dia, os quatro voltaram felizes para a casa dos bisavôs, ou como preferiam ser chamados - bisos.
A partir daquele dia, todo dia era dia de tricoisar.
A imaginação infantil ora transformava as velhas agulhas de tricô em poderosos floretes e seus brincadores em habilidosos mosqueteiros; ora as agulhas disfarçavam-se em varas de pescar e seus empunhadores fantasiavam-se de pescadores em busca do peixe-espada.
Um dia até montaram uma pipa para voar nas ventanias dos ventos da ilha. O quadro dela foi feito com agulhas de tricô bem fininhas. O engraçado é que um brinquedo só ora é chamado de pandorga, ora gamelo e de vez em quando papagaio.
As agulhas também foram usadas como giz para desenhar na calçada o jogo de amarelinha do qual todos, sem limite de idade, participavam alegremente.
Nas poucas tardes chuvosas daquele verão, Mano e Mana se acomodavam nas poltronas da sala de visita da casa dos bisavôs e, empunhando as mágicas agulhas de tricô, aprenderam a tecer cachecóis coloridos e fantoches para contar historinhas.
- Passa o fio pelo dedo indicador...
- É o dedo de cutucar o nariz?
- Pesca o fio com a ponta da agulha e assim vai criar um lacinho... é um ponto!
- Para juntar os dois fios é preciso dar um nó escondidinho... bem amarradinho...
E, assim, as tardes nebulosas transformaram-se em momentos alegremente inesquecíveis.
Mas, para tristeza de todos, os dias na ilha estavam no fim e chegou, então, o dia do retorno para casa. As crianças e os adultos muito muito brincantes despediram-se com promessas de novas visitas para tricoisarem muitas aventuras juntos.
As crianças, cada uma com um desconfortável crachá e um colorido cachecol pendurado no pescoço, começaram a viagem de volta ao lar.
As malas estavam mais pesadas do que quando foram para a ilha. Além da saudade dos pais e dos avós, sentiam, agora, a tristeza de deixar os bisos na ilha.
Barco. Carro. Ônibus. Avião. Carro.
Chegando em casa, pediram para a mãe servir chá com biscoitos ao invés do fastfood de todas as noites. As novidades foram contadas, beijos e abraços partilhados, presentes distribuídos. Para espanto dos adultos e dos adultos muito adultos, Mano e Mana trouxeram agulhas de tricô para toda a família.
E os adultos da família de Mano e Mana lembraram como é criançar e assim uma linda história foi tecida, ponto por ponto, e todos descobriram que tricô não é coisa de adulto muito muito adulto, mas de gente muito muito muito do bem.

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Inspiração

Minha inspiração nasceu da lembrança de minha mãe tricotando e os filhos, ao redor, brincando e conversando.
Hoje as pessoas podem estar próximas fisicamente, mas as emoções se distanciam e se desconectam com rapidez.
Meu texto é uma brincadeira para ellaçar os adultos e crianças em um fio, o fio da história infantil.

Sobre a obra

É um conto destinado ao público familiar, adultos e crianças das mais variadas idades.
O texto é tramado a partir das palavras e neologismos que as crianças gostam de usar e de criar.
A narrativa é simples, mas ao mesmo tempo carrega muita simbologia e graus de envolvimento emocional.
Vamos juntos incentivar nossas crianças a ler literatura.

Sobre o autor

Desde minha aposentadoria, meus dias são dedicados às artes e ao apoio à ONGs de apoio aos animais carentes.
Dentro do mundo artístico gosto de tecer histórias e brincar com as palavras, ler as metáforas da natureza e transformá-las em versos ... em quadros ... em fotografias.

Autor(a): LILIAN DEISE DE ANDRADE GUINSKI (Lilian Guinski)

APCEF/PR