Talentos

E a vida disse sim.


Deveria ser um dia como qualquer outro para Teodoro. Mas não foi.
Por volta das 11h30min desceu os vinte e sete andares do edifício onde está localizado seu escritório. Atravessou a avenida rumo ao restaurante onde almoça todo os dias, cumprindo um ritual que se repete já faz mais de dez anos. Naquele dia estava sozinho. Almoçou rápido e tomou o rumo de volta para o escritório. Após dar uma olhada na capa dos jornais, se dirigiu à avenida.
Parou para aguardar o fim do trânsito. Foi quando começou a sentir algo esquisito. A princípio, apenas um desconforto. Quando chegou ao canteiro central o desconforto aumentou. Faltou a respiração. Pressão no peito. Paralisou. Com grande esforço, encostou em uma árvore e aguardou alguns instantes, ignorado pelos transeuntes. Forçou a respiração para conseguir caminhar de volta ao escritório.
Diante do arranha-céu o desconforto se tornou pavor; alguma coisa muito séria acontecia. Ao se aproximar do elevador ficou paralisado totalmente. Pediu para Hannah, a recepcionista, chamar Benjamim, seu sócio no escritório. Benjamim, assustado com o estado do amigo, pediu para Hannah chamar uma ambulância. Teodoro apagou.
Acordou no CTI. Diante dele Dr. Frederico:
- Está se sentindo melhor?
- Sim, doutor, o que houve?
- Só um susto. Crise de ansiedade. Isso é cada vez mais comum. Está pronto pra outra?
- Sim, doutor.
- Não deveria. Dá próxima vez pode ser mais que um susto. Seus colegas deram toda a sua ficha: viciado em trabalho, fumante e sedentário. Ainda mais que é obeso e com a glicose acima do normal... É um verdadeiro suicídio.
- Sei.
- Ainda não está diabético, mas está a caminho. Sabe qual a melhor maneira de não se tornar diabético?
O próprio Dr. Frederico responde.
- Agir como diabético fosse. Porém, é o sedentarismo a causa principal de tudo isso.

Calção, tênis, camiseta, boné... coisas comuns para a maioria das pessoas. Mas não para quem vive sentado à frente de um computador em torno de 12 horas por dia. Comprou tudo novo. Comprar... É a atividade favorita para a maioria das pessoas. Quase tão gostosa quanto comer. Para um sedentário mais ainda. Talvez uma das poucas alegrias para pessoas como Teodoro. Nem precisava de nada novo, mas foi o jeito que encontrou para relaxar as tensões dos últimos dias.
Pôr em prática é o mais difícil.
Campo Grande é uma cidade que oferece várias opções de lazer ao ar livre. Vários parques e inúmeras praças bem conservadas. Especialmente nos bairros mais antigos, como aquele onde Teodoro mora. Entretanto, caminhar pelas ruas exige alguns cuidados. E quanto a isso a situação se inverte. Nos bairros mais novos, onde moram as pessoas de condição de vida mais simples, os passeios são melhores para caminhar. Nos bairros mais antigos a cultura do carro é predominante. Caminhar nas calçadas é um verdadeiro rali. Os quinhentos metros até a praça mais próxima são mais extenuantes que o próprio exercício. Calçadas quebradas ou com enormes desníveis, árvores fora do lugar, cestos de lixo no meio do caminho... melhor é caminhar pelo meio da rua. Chama a atenção de Teodoro uma babá que circula com carrinho de gêmeos pelo meio da rua até chegar à praça. É um ato de coragem, perseverança e falta de juízo.
A praça escolhida por Teodoro é grande e cuidada com zelo. Possui um passeio bem conservado com uma volta fechada de aproximadamente quinhentos metros. Excelente para caminhar.
Começa a jornada de Teodoro. Como seria o normal, lá vai ele a contragosto, mas vai. Luta contra o peso e o peso da falta de ânimo. Também é preciso vencer o peso do seu próprio peso.
Aos poucos, Teodoro vai conhecendo a praça. Muita gente ao mesmo tempo. Chama-lhe atenção os inúmeros idosos. Em um dos cotovelos da praça existe uma academia ao ar livre na qual muitos deles se reúnem. Mais para conversar do que se exercitar. São divertidos, conversam acaloradamente, caminham como que sem rumo, às vezes aos encontrões, porque a maioria coloca as amizades à frente do exercício. Alguns caminham com dificuldade, amparados por muletas e andadores. Quem sabe os percalços que os trouxeram até aqui? Em alguns dias da semana, um professor de educação física reúne o grupo para dar, digamos assim, uma orientação científica a tudo isso.
Outro cotovelo da praça faz frente à uma creche. Muitas vezes os andarilhos precisam parar para dar passagem a trinta ou quarenta crianças em fila indiana. Alguns dos mais dispostos caminham em círculos para não perder o aquecimento. A maioria simplesmente para e fica conversando. Toda essa confusão não ajuda Teodoro a manter a concentração e o ânimo.
Teodoro não é simplesmente um sedentário. Ele é um recluso. Entre conhecer um museu e ler um catálogo, prefere o último. Entre assistir um show ao vivo ou pela TV, prefere a TV. Apesar disso é uma pessoa simpática, educada e agradável. É querido pelos colegas do escritório, desde o advogado mais ilustre até a copeira.
Pessoas como Teodoro acabam por criar estratégias para não interagir mais que o necessário. A dele é uma das mais manjadas. Enquanto caminha olha para o chão e finge estar concentrado. Outros usam fones nos ouvidos. Outros mais, fixam um ponto no horizonte e forçam a respiração, fingindo que estão em uma maratona. E por aí vai.
O chão é um mundo a ser explorado. É o universo das falhas no asfalto e das pedras do meio-fio. O chão da praça é também um mundo de grande vivacidade. Ervas pequenas e suas minúsculas flores coloridas. Muitos pássaros fazem seus ninhos em meio as ervas. Existem ainda as coloridas orelhas de pau. Tudo prende a atenção de Teodoro. Porém, os passantes não se deixam intimidar. Cada encantamento com uma flor de trevo é interrompido por um “bom dia”. E são tantos que a vocação de Teodoro para as ciências naturais termina nos primeiros quinhentos metros.
No início tenta ignorar. Logo percebe que a estratégia de ignorar também não dará certo ao cruzar pela primeira vez com o “General”. General é a alcunha criada por Teodoro para identificar um senhor que é pura disposição. Jeitão largado, bermuda abaixo do joelho, caminhando em um ritmo frenético, o General cumprimenta todo mundo. E o faz de tal forma que é impossível não retribuir. É capaz de dar umas trinta voltas em torno da praça todos os dias. Vai no sentido horário, quando encontra alguém conhecido, e ele conhece praticamente todo mundo, troca de mão para conversar. Assim, você nunca sabe onde e quando encontrará o General.
Já que ignorar é impossível, Teodoro muda de estratégia. Para evitar o incômodo de retribuir o cumprimento de dois em dois minutos, assume a iniciativa de oferecer o bom-dia e passa a cumprimentar todos com quem cruza. A mudança de estratégia gera o efeito imediato de mudar a perspectiva de Teodoro. Adeus às ervas. Do mundo biológico passa ao mundo antropológico. A praça se torna um universo bem mais amplo. Observa as pessoas se exercitando na mini academia; o professor de ginástica dando ordens de ir e voltar, correr e parar, alongar e relaxar; o vai e vem das crianças na escola; pessoas esperando pacientemente o próximo ônibus; ciclistas ignorando os transeuntes; donos e seus cachorros passeando; um casal de jovens sentados em um dos bancos, esticando a noite que se recusa a terminar.
Dia desses, depois de 15 voltas na praça, Teodoro se senta em um banco próximo donde o professor bota o pessoal para malhar. Sente o cansaço do corpo e a satisfação gostosa que vem da glicose baixando. Deita-se no banco e olha para o céu, agradecendo a sombra de um enorme jequitibá. Eles são muitos. Em meio aos jequitibás, aroeiras e cedros tentam um lugar ao sol. Aqui e ali, fícus e ingazeiros, talvez descendentes dos que vieram do Rio de Janeiro para cobrir de verde a recém fundada Campo Grande. No meio da praça um Pau-Brasil e um Jacarandá-Mimoso. E, coroando todo esse espetáculo, os Ipês que, para não gerar ciúme, florescem um de cada vez. Olha para a imensidão do azul, refletindo o brilho de um sol surgindo lentamente no seu horizonte.
Fica alguns minutos em transe. É interrompido pela chegada do General que se senta no banco ao lado.
- Ufa!!! Hoje fará um dia quente, hein!? Meu nome é Eriberto.
- Oi, Eriberto. Sou o Teodoro.
FIM

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Inspiração

Campo Grande é uma cidade verde. Os parques e as praças resistem bravamente ao avanço do mundo cinza. Os campo-grandenses têm deles um grande orgulho. Este conto é um modesto manifesto pela preservação das praças, da natureza como um todo e da qualidade de vida das nossas cidades.

Sobre a obra

Trata-se de uma narrativa hipotética onde acompanharemos a mudança na vida de Teodoro. Uma crise de ansiedade o coloca em uma encruzilhada. A trajetória de Teodoro, em busca da saúde perdida, ajuda a compreender a importância das praças na vida dos campo-grandenses. Elas oferecem um mundo vivo, cheio de beleza e pessoas interessantes.

Sobre o autor

Tenho 59 anos e vivo em Campo Grande. Nasci no Rio de Janeiro onde morei até 2015. Sou casado e tenho dois enteados. O conto é meu gênero literário favorito e o Brasil possui grandes mestres. Como o que não falta no mundo é inspiração, sem pretender ser um escritor, por vezes ouso transferir para o papel as impressões sobre as pessoas e as coisas.

Autor(a): PAULO ROBERTO ALVES MOREIRA DA CONCEICAO (Paulo Conceição)

APCEF/MS