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Uma luz que veio de longe.
Osvaldo parou sob a arcada da entrada da faculdade para observar o movimento na enorme praça à sua frente. Sem ânimo, sentou-se no degrau mais elevado da escadaria, colocou a bolsa de couro de lado e ficou ali, aguardando as energias necessárias para continuar no caminho. Ao meio da tarde, a praça estava lotada de pessoas vindas de todos os cantos, indo em todas as direções. Formavam uma trama complexa onde, curiosamente e contra todas as probabilidades, ninguém se chocava. Seguiam apressadas em busca do transporte para casa antes que o trânsito complicasse. Osvaldo não tinha um destino certo naquele momento.
Não demorou muito e surgiu Helena. Loura, alta, magra com um olhar vivo e decidido. Olhou de soslaio para Osvaldo. Quando este decidiu que seria de bom alvitre cumprimentá-la ela já havia desaparecido no meio da multidão.
A conversa que tivera com Helena minutos antes não fora nada boa. Apresentara a versão mais recente de sua proposta de trabalho, sabe-se lá quantas já havia apresentado, e a orientadora praticamente destruíra suas pretensões. Quando queria, Helena beirava a crueldade em seus comentários. Os mestrandos em Literatura Portuguesa viviam reclamando do jeito de Helena, mas a procuravam por saber que, se conseguissem agradar a megera, não havia banca capaz de esculachar o seu trabalho. Por outro lado, Osvaldo reconhecia que passava por um daqueles momentos em que a criatividade desaparece, o que é normal, mas o tempo se esgotava rapidamente.
Afinal, Osvaldo reuniu forças, se levantou, perambulou um pouco pela praça, comeu um sanduiche no bar do Geraldo e voltou à faculdade, se dirigindo à biblioteca.
O prédio da biblioteca chamava atenção. Erigido em estilo gótico, era ao mesmo tempo solene e leve com seu exterior revestido de mármore cinza claro. Possuía grandes janelas com vitrais, arcadas, esculturas e cruzes para recordar os feitos dos navegadores portugueses. O interior, em formato octogonal era bastante espaçoso. Em cada um dos lados se erguiam três andares de estantes acessadas por corredores como se fossem varandas. Sobre a cabeça dos visitantes um lustre, de grande beleza e proporções, preso à abóboda feita de vitrais. As mesas de leitura, distribuídas no térreo, eram sóbrias de madeira escura. Visto pelo lado de fora, o prédio parecia muito maior, dando uma aura de mistério ao edifício, pois ninguém sabia ao certo o que havia por trás das estantes já que apenas dois ou três funcionários tinham acesso à pequena porta situada no canto oposto ao da entrada que dava acesso ao interior do edifício. Todo o conjunto era deslumbrante e atraia muitos visitantes tanto de dentro como de fora da faculdade. Os leitores estavam cada vez mais escassos, mas admiradores não faltavam.
Algumas mesas ficavam escondidas em nichos que se situavam sob as estantes. Foi em uma dessas que Osvaldo se isolou após pedir alguns livros de poesia ao bibliotecário. Não estava disposto a estudar nada, queria apenas relaxar. Ao final de algum tempo acabou adormecendo.
- Senhor! Senhor!
O homem, que Osvaldo nunca tinha visto ali, era de baixa estatura e ar cansado, com grandes olheiras e cara de poucos amigos. Sua figura ficava ainda mais sinistra ao refletir a luz verde que vazava através da cúpula da pequena luminária sobre a mesa onde Osvaldo se encontrava.
- Desculpe – disse Osvaldo tentando dissipar o sono – não lhe conheço, como o senhor disse que se chama?
- Eu não disse – refutou o homenzinho de modo grosseiro. Aliás, eu é que não lhe conheço, já que eu trabalho aqui. A biblioteca já está fechada, o senhor precisa se retirar.
- Que horas são?
- Tarde!
Osvaldo começou a recolher os livros sobre a mesa, mas o sujeito petulante voltou a interromper:
- Pode deixar que eu recolho os livros. Saia, por favor.
Osvaldo preferiu não criar caso. Quando já estava próximo da saída, voltou-se:
- E a moça?
- Moça!? Que moça?
- A de vestido verde ali em cima.
Em um dos corredores do segundo andar uma jovem loura de cabelos cacheados e vestido verde olhava para a estante, encarando os livros como se estivesse em outro universo. O homenzinho perdeu a calma quando vislumbrou a jovem.
- A senhora novamente, D. Leonor?
- Boa noite para o senhor também, senhor Luís.
- Já lhe falei que o diretor não quer que a senhora entre na biblioteca. Assim a senhora me prejudica. Ainda mais pesquisando leituras inadequadas para uma senhora de sua origem e temente a Deus. Por mim, já teria desaparecido com esses franceses faz tempo.
- Sr. Luís, nem o senhor, nem D. Raimundo e nem mesmo o Patriarca me impedirão de entrar. Se dependesse da boa vontade dos bibliotecários uma mulher jamais entraria em uma biblioteca.
- Ora bolas!!! Só me faltava uma “philosophe”.
Sabendo que não havia nada a fazer, Luís saiu pelo corredor dos fundos.
Leonor desceu a escadaria e veio juntar-se a Osvaldo:
- Estava procurando a “Encyclopédie”, dizem que aqui tem uma excelente edição. Acabei achando este exemplar de “Émile” – em suas mãos um original da obra de Jean-Jacques Rousseau.
- A Enciclopédia de Diderot e D’Alembert? E também Rousseau? Agora entendi por que o Luís insinuou que a senhora não é uma mulher temente a Deus - disse Osvaldo em tom de ironia e refletindo consigo mesmo qual a razão de chamar uma mulher tão jovem de senhora.
- O Luís é um pobre coitado e só faz o que lhe mandam. É claro que sou uma mulher temente a Deus. Não é por isso que tenho que aceitar esse pensamento retrógado de que uma mulher só serve para criar filhos ou ir para o convento. Aliás, se uma coisa aprendi no convento foi pensar por mim mesma.
- Quer dizer que a senhora já esteve em um convento?
- Por dezenove anos, toda a minha juventude - Leonor usou um tom entre resignado e revoltado. E continuou - não tenho nada contra os conventos, mas apenas quando servem para enterrar pessoas que não convém à sociedade, aos pais, aos maridos...
Toda aquela história parecia muito estranha para Osvaldo, mas este estava completamente envolvido por aquela bela mulher inteligente, culta e determinada.
- Mas, me diga, o que tem em mãos?
- Bem, entre outras coisas, um exemplar das “Novas Cartas Portuguesas”, a senhora já leu?
- Não sabia que haviam escrito outras.
- A senhora gosta de poesia? Ouça essa de Maria Teresa Horta.
“Abrigo-me de ti
de mim não sei
há dias em que fujo
e que me evado.
Há horas em que a raiva
não sequei
nem a inveja rasguei
ou a desfaço
Há dias em que nego
E outros onde nasço
há dias só de fogo
e outros tão rasgados
Aqueles onde habito com tantos
dias vagos.”
- É lindo. É a primeira vez que ouço, mas me parece extremamente familiar. Então o senhor gosta de poesia, posso lhe mostrar algumas que fiz?
- A senhora é poetisa? Adoraria ouvi-la.
Osvaldo estava completamente envolvido.
“Esperanças de um vão contentamento,
por meu mal tantos anos conservadas,
é tempo de perder-vos, já que ousadas
abusastes de um longo sofrimento.
Fugi; cá ficará meu pensamento
meditando nas horas malogradas,
e das tristes, presentes e passadas,
farei para as futuras argumento”.
Já não me iludirá um doce engano,
que trocarei ligeiras fantasias
em pesadas razões do desengano.
E tu, sacra Virtude, que anuncias,
a quem te logra, o gosto soberano,
vem dominar o resto dos meus dias.
E assim passaram a noite em conversa animada, não negligenciando qualquer assunto. Religião, política, arte, filosofia... tudo entremeado de poesia. Camões, Filinto Elísio, Bocage, Pessoa, Mariana Alcoforado, Mário Quintana, Rafael de Barros, Carlos Drumond de Andrade... E Vinícius de Moraes, uma paixão de Osvaldo.
“De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim que quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive);
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.”
Nesse instante os olhos dos jovens se cruzaram e suas mãos, suavemente, se tocaram.
Então, a visão se tornou turva, como se a biblioteca fosse tomada pela neblina da manhã.
- Osvaldo! Osvaldo! Você dormiu aqui?
Aos poucos, a imagem de Letícia, jovem assistente da biblioteca, tomou forma diante de Osvaldo.
- Você dormiu aqui?
- Bom dia, Letícia. Onde ela está?
- Ela quem, criatura?
- A moça loura de vestido verde.
Letícia se sentou diante da mesa de Osvaldo com o ar de quem viu um fantasma.
- D. Leonor!?
- Sim, acho que é esse o nome dela.
Várias pessoas já haviam narrado a presença de uma jovem com as mesmas características de Leonor junto à estante onde se acham os iluministas franceses. Letícia reparou que entre os livros sobre a mesa estava um de Maria Teresa Horta. D. Leonor era uma antepassada distante da poetisa portuguesa. Bem, talvez fosse apenas um sonho induzido pela leitura.
***
Helena lia com grande atenção a nova proposta que Osvaldo lhe trouxera. Este, ensimesmado, observava a semelhança entre Helena e Leonor tanto na aparência quanto na atitude.
- Então... me explique a proposta, Osvaldo.
- Como!?
- Me explique a proposta.
- Bem, Maria Teresa Horta é uma descendente de D. Leonor de Almeida, Marquesa de Alorna. Ambas são poetisas e, ao seu tempo, lutaram pela emancipação das mulheres. Pensei em compará-las quanto a sua obra e sua atuação, o que as une e o que as separa.
- Hum, hum. Parece que temos alguma coisa aqui para começar. Parabéns, Osvaldo.
***
Osvaldo continuou frequentando assiduamente a biblioteca. Leu o que pode da obra de Maria Teresa Horta e das poetisas portuguesas contemporâneas. Também o que encontrou de D. Leonor e da gente do seu tempo.
Conseguiu realizar sua obra com sucesso, mas nunca mais desfrutou da presença da jovem poetisa de cabelos louros e vestido verde. Ao final, acabou convencido que fora mesmo apenas um sonho.
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
[Vinicius de Moraes]
FIM
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Inspiração
D. Leonor de Almeida, poetisa portuguesa nascida em 1750, brigava para acessar uma biblioteca pública, vedada às mulheres. Sua trajetória foi narrada no romance "Luzes de Leonor" por Maria Teresa Horta, sua descendente e conhecida militante da emancipação feminina. Essas mulheres, sua luta e a leitura como meio de libertação inspiram esta obra.
Sobre a obra
Quase todos os escritores e acadêmicos passam por momentos de falta de criatividade. E a inspiração por vezes retorna a partir de um acontecimento insólito. Neste conto fantástico, o protagonista, na dificuldade de escrever um artigo acadêmico, busca na poesia um momento de relaxamento e energização. E nesse processo recebe uma ajuda inesperada.
Sobre o autor
Nascido e criado no Rio de Janeiro, moro atualmente na aprazível Campo Grande, MS. Meu passatempo é a leitura, especialmente o conto, talvez o mais brasileiro dos gêneros literários. Sou um escritor de ocasião, especialmente ao tempo do Talentos FENAE, evento especialíssimo do qual sempre participo.
Autor(a): PAULO ROBERTO ALVES MOREIRA DA CONCEICAO (Paulo Conceição)
APCEF/MS
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