A herança do velho Benedito.

Após 1h17min o voo vindo de Guarulhos pousou no Aeroporto de Campo Grande. Um jovem de boa pinta, usando calça jeans, botina, cinturão de prata e chapéu de cowboy aguardava Francisco, Maria Vitória e sua filha Mariana.
- Bom dia, primo Elias. Não precisava nos buscar, mas já que está aqui, obrigado.
- Imagina, primo. Se não viesse, D. Ana arrancaria meu couro. Ela está esperando para o almoço. Levaremos umas três horas até o sítio, então chegaremos lá por volta de meio-dia e meia.
Elias tem o “pé pesado” e, a bordo de uma picape imensa, chegaram em Bonito antes das três horas previstas. Ainda assim, tempo suficiente para atualizar Francisco dos assuntos da família. D. Ana, mãe de Elias, foi para o sítio cuidar de vô Benedito. Elias cuidava do sítio e Aureliano, filho de Benedito, pai de Elias e tio de Francisco, ficara em Bonito para cuidar dos negócios.
A estrada para o sítio, de terra batida, com o tempo seco estava firme e empoeirada. O nível do rio que a margeia se apresentava bem abaixo do normal. Era início de outubro e já deveria estar chovendo, mas o tempo anda totalmente imprevisível.
Muitas flores guardavam a entrada do sítio, estando os ipês brancos no máximo do seu esplendor. A casa possuía uma ampla entrada principal e vários janelões, cercada em todo o seu entorno por uma varanda coberta. A construção, antiga, apresentava uma conservação impecável. D. Ana os esperava à entrada tendo ao lado Isaura, fiel empregada do vô Benedito. Todos se uniram em um abraço caloroso e algumas lágrimas.
Tudo na casa era muito rústico, com poucos móveis e muito espaço. De frente à entrada, um oratório com a imagem de N. Sra. Aparecida e vários santos. As portas estavam guardadas por pequenas cruzes feitas de galhos de madeira. Acomodaram-se em torno de uma grande mesa de madeira maciça e Isaura trouxe uma jarra com suco de guavira para aliviar o calor intenso. Após breve descanso, D. Ana sugeriu visitar o avô que estava ansioso por vê-los.
O velho Benedito descansava em sua cama encostado em um grande travesseiro. Não conseguia mais se levantar. Estava muito magro e pálido, mas não perdera a sua altivez. O amplo quarto possuía um janelão voltado para um pomar que garantia uma luz abundante. Além da cama, um guarda-roupa e um móvel baixo de gavetas. Nas paredes apenas uma das pequenas cruzes. Sobre o móvel, outra imagem da Aparecida sobre um pano branco, tendo ao lado um castiçal com uma vela.
A saúde de Benedito piorara de repente. O funcionamento do seu organismo começou a diminuir. Respiração e batimentos cardíacos foram cedendo, a digestão cada vez mais difícil, parou de andar e, por fim, de falar. Ele não tinha doença alguma, não havia o que tratar. Um médico sugeriu transferi-lo para um hospital, o que foi rejeitado de pronto; o velho simplesmente morreria se afastado do sítio. Oficialmente possuía 102 anos, mas, vá saber, antigamente as famílias custavam a registrar seus filhos. Poderia ter mais alguns meses ou, quem sabe, mais três, quatro ou cinco anos.
O avô, plenamente consciente, observou a todos até descansar o olhar no neto. Este, que se sentara em uma cadeira ao lado da cama, beijou carinhosamente sua mão. Maria Vitória seguiu o gesto e Mariana se sentou na outra borda da cama. Assim ficaram até D. Ana avisar que o almoço estava pronto.
A mesa foi coberta por uma toalha de linho de um branco absoluto. Sobre ela um tacho de arroz carreteiro, acompanhado de pacu assado, macarrão de comitiva, farofa de banana da terra e sopa paraguaia. De sobremesa um doce de jaracatiá e sorvete de bocaiuva. Depois do cafezinho, Isaura avisou que os quartos deles estavam prontos. Dormiram a tarde toda.
Um alvoroço nos fundos da casa acordou Francisco. Era tio Aureliano. Os dois trocaram um abraço demorado.
- Seu avô deve estar muito contente em vê-lo. Muito obrigado.
- Também estou muito feliz, tio.
Perto dali, Elias e dois ajudantes preparavam uma churrascada. Sobre dois estrados de madeira, a carne, fincada em espetos, assava lentamente sobre o fogo de chão aceso em um buraco. O cheiro era maravilhoso.
- Elias só pensa nesse churrasco desde o dia que confirmaram sua vinda. Ainda se lembra do gosto da carne do Pantanal? A melhor do Brasil?
- Como esquecer?
- Então, Francisco, você já decidiu o que fará com a casa?
Para surpresa geral, vô Benedito transferira a propriedade do sítio e da casa para Francisco sem maiores esclarecimentos. Ninguém entendeu, muito menos o beneficiário.
- Não sei, tio. Fiquei muito contente com o gesto do avô, mas minha vida em São Paulo é muito ocupada e não conheço nada de propriedades rurais. Por isso decidi vir logo. Queria agradecer o avô e esclarecer tudo isso, pena que ele se debilitou tão rapidamente.
- Bem, eu tenho um bom projeto para o sítio. Essa região é ótima para o turismo rural. Hospedagem, passeios, pesca e muito mais. Mas, seu avô nunca quis saber disso.
E prosseguiu:
- Ele sempre foi um homem de visão para os negócios. Ganhou muito dinheiro com o desenvolvimento de Bonito. Acreditava que dava para investir e conservar. Mas com relação a esta região sempre pensou diferente. Não só ele, mas todo esse povo daqui. Parecem viver como cem anos atrás. Acreditam em benzeduras, curandeiros, serpentes encantadas, poder mágico das ervas... Sabia que seu avô nunca consultou um médico por vontade própria?
- Sempre soube que possuía uma saúde de ferro.
- Bem, isso é verdade. O único médico que esse povo procura é o Dr. Inácio. Inácio cuida das pessoas com ervas, rezas, simpatias... É um bom médico, mas pensa que nem o povo daqui. Ir a um hospital só quando quebra a perna e olhe lá.
- Seu avô, continuou, tem uma grande influência sobre esse povo. Acredita que tem gente por aqui que diz que se o pai está tão velho é porque não vai morrer mais?
Francisco não conteve o riso.
- A questão é que Benedito disse para essa gente deixar as coisas como estão por aqui e todos fazem o que ele manda, disse um tanto irritado.
- Entendi.
- Nosso projeto traria mais emprego, renda, escolas, médicos de verdade...
A conversa foi suspensa com a chegada de Maria Vitória e Mariana e o início do serviço de churrasco.
Francisco foi até o quarto do avô. Em meio ao cheiro de churrasco, Isaura tentava fazer Benedito comer uma canja. Os dois, avô e neto, se olharam. As intenções do velho não estavam claras, mas parecia certo o que ele, Benedito, não queria que fizessem.
Isaura começou a rezar o terço. Francisco, com reforço de Maria Vitória e Mariana, tentavam acompanhar do jeito que sabiam.
Na manhã seguinte, bem cedo, o choro de Isaura acordou a todos. Benedito não respirava mais; tinha se desligado por completo.
O velório se deu ali mesmo, no quarto, logo após o almoço. Muita gente foi dar seu último adeus. Benedito não era apenas querido e respeitado, era mesmo venerado pelas pessoas do lugar. Seu corpo foi enterrado em um pequeno cemitério nos fundos de uma antiga capela não muito longe dali.
Ao alvorecer do dia seguinte, Francisco acordou com uma gritaria na frente da casa. Foi até a entrada e encontrou Elias trazendo Mariana nos braços desfalecida. Um agricultor vizinho encontrara a menina na beira do rio.
- Parece que se afogou, mas está respirando.
Tentaram acordá-la sem sucesso. Levaram-na ao hospital mais próximo.
- A menina bebeu um pouco de água, disse o médico que a atendeu. Já está acordada, mas não fala em razão do choque. Creio que logo, logo estará bem.
Mariana ficou de cama. Não falava e nem comia. Chamaram Dr. Inácio. O médico era uma pessoa muito simpática e humilde. Procurou tranquilizar a família.
- Fisicamente ela está bem, mas pode ter visto alguma coisa que a assustou. Se ainda estiver com a imagem na memória poderá continuar sem falar.
- Alguém pode ter tentado machucá-la?
- Não me parece ser isso. Afinal, ela não tem marcas. Nesses matos tem uma porção de coisas, animadas ou não, que mal conhecemos. Não quer dizer que queiram nos fazer mal, ao contrário, mas o desconhecido e o diferente sempre assustam.
E prosseguiu.
- Orientei que Isaura faça um chá de tipi que vai ajudá-la a relaxar. Não sei se vocês acreditam, mas rezar um rosário ajudará a se sentirem melhor. Isaura pode ajudar nisso também.
O dia não trouxe mais novidades. Francisco adormeceu no banco próximo da entrada do quarto de Mariana. Maria Vitória e Isaura permaneceram com a menina no quarto.
O sol ainda não nascera totalmente para um novo dia e o balido de ovelhas levou Francisco à entrada para dar de cara com um ancião em frente ao alpendre.
A intensa palidez de sua pele refletia a luz da aurora. Cabelos e barba, igualmente brancos, desciam até o meio do peito. Olhos muito claros, vítreos. Difícil estimar sua idade; poderia ter uns sessenta ou muito mais. Vestia-se de forma muito simples com uma túnica marrom de tecido grosseiro ao modo franciscano. Levava uma bolsa de couro e duas cabaças presas por cordões cruzados sobre o peito. À mão uma pesada cruz de madeira e sobre o peito um rosário com uma das pequenas cruzes de madeira que pareciam estar em todos os lugares. As ovelhas que o seguiam, umas quinze, se refestelavam com as plantas do jardim.
- Bom dia, posso ajudá-lo em alguma coisa?
Sem emitir qualquer palavra, o homem ergueu a mão direita deixando-a suspensa no vazio como que apoiada sobre um mourão invisível. Francisco entendeu que ele se referia à Mariana e se pôs de lado para que o velho passasse. Já no quarto, tirou algumas ervas da bolsa e as misturou com um líquido espesso, seria mel?, que tirou de uma das cabaças. Untou o peito de Mariana e depois colocou a cruz sobre sua cabeça enquanto Isaura rezava acompanhada de Maria Vitória. O homem, seguido pelas mulheres, benzeu a menina, depois o quarto, as portas da casa. Por fim, benzeu a porta de entrada, tangeu as ovelhas e foi embora sem emitir uma só palavra.
- Isaura, quem é esse homem?
- É um homem santo da região, Sr. Francisco, o povo chama de Sinhozinho. Socorre toda a gente em caso de necessidade, até mesmo quando dizem que não tem mais jeito. Alguém deve ter falado pra ele da menina e veio ajudar.
Antes do almoço, Francisco e Maria Vitória estavam na varanda quando foram surpreendidos pela voz de Isaura que os chamava ao quarto de Mariana. Lá chegando, encontraram a menina sentada ao pé da cama, comendo e bebendo como se nada fosse. Abraçaram-se emocionados.
Mariana, surpresa, não entendia o que estava acontecendo. Só lembrava do enterro do avô e de ter ido dormir “ontem”, como se os dois últimos dias tivessem desaparecido por encanto.
Francisco mandou chamar Dr. Inácio. O médico virou Mariana de ponta-cabeça. Estava tudo normal, a menina voltara do transe bem e alegre, sem qualquer sinal de doença.
- Dr. Inácio, gostaria de agradecer e pedir desculpas pela minha desconfiança.
- Não se preocupe, já estou acostumado com o jeito do povo da cidade.
A conversa os levou ao falecido Benedito.
- Seu Benedito, já faz tempo, acreditava que o neto de São Paulo era a pessoa certa para cuidar de tudo por aqui.
- Não entendo o que seja “cuidar de tudo”.
O médico, entre enigmático e divertido, tergiversou:
- Você já está descobrindo e ainda descobrirá muito mais.
Sobre Sinhozinho, Francisco disse que gostaria de agradecê-lo pelo que fez, embora nem mesmo soubesse ao certo o que acontecera. Ignácio sugeriu:
- Amanhã é dia da Aparecida. Vamos até a capela da santa. Quem sabe encontramos o Sinhozinho por lá.
Assim que raiou o feriado, Francisco pegou a picape de Elias, juntou Maria Vitória, Mariana e Isaura, foi até a casa de Dr. Inácio e rumou com todo o povo para a capela. No caminho, foram passando por um mundaréu de gente: alguns carregavam flores nas mãos, outros carregavam muletas; crianças vestidas de anjo, cadeirantes... Quase todos portavam as pequenas cruzes feitas de madeira, entre eles, Isaura e o médico.
Depois de rodarem alguns quilômetros em terra batida pararam diante de um cruzeiro.
- De agora em diante seguimos a pé, disse Dr. Inácio.
Andaram mais dois quilômetros em uma trilha até chegarem à capela. Esta era rústica, feita toda de madeira e com aparência de muito antiga. Dr. Inácio acreditava ter mais de século. Chamava atenção o perfeito estado de conservação. Alguém cuidava para que estivesse sempre limpa, pintada e com todo o madeirame conservado. No terreno ao redor havia uma horta de espécies variadas que eram tratados, terreno e horta, com esmero. O responsável seguia o preceito de que “a ordem leva a Deus”.
A capela era pequena e a gente muita, mas todos esperavam com paciência para entrar no santuário. Não existiam bancos e as pessoas se ajoelhavam “umas sobre as outras” diante da imagem negra da Aparecida com seu manto azul. O calor era intenso. Francisco e sua trupe fizeram como todo mundo. O Sinhozinho não apareceu.
- Na verdade, não é comum que apareça como no sítio, disse Dr. Inácio. Normalmente, as pessoas vêm procurá-lo aqui na capela, mas nem sempre encontram. O que não significa que suas necessidades não sejam atendidas.
Segundo se conta, Sinhozinho chegou àquela região quando Benedito ainda era muito jovem. Construiu a capela e começou a cuidar das pessoas com rezas, benzeduras e ervas. Acabou por criar uma aura de santo junto ao povo. Isso desagradou as autoridades do lugar. Os médicos perderam seus pacientes, as farmácias não vendiam mais remédios e muitos trabalhadores largaram seus afazeres para seguir o santo. Acabaram por assassinar o homem, despedaçaram seu corpo e jogaram no Corguinho junto à uma fonte bem perto do sítio. O povo diz que ele se “encantou” nas criaturas da região e continuou ajudando o povo pobre. Por isso, creem que esses lugares são sagrados.
- Eu não sei bem no que acreditar, disse Francisco.
- Seu avô era um grande amigo e devoto do Sinhozinho, disse Dr. Inácio. Ele tinha a convicção que o neto que fora para São Paulo também acreditaria.
A emoção tomara conta de todos. Maria Vitória e Isaura não tinham dúvida que o que acontecera com Mariana fora algo fora do comum. Francisco, apesar de “durão”, reconhecia que aquele lugar e aquela gente tinham algo de muito especial.
Aureliano foi ao sítio ver como estava Mariana. Já fora informado de tudo: a visita de Dr. Inácio, a aparição de Sinhozinho e a romaria à capela de N. Sra. Aparecida. Por tudo isso, ficou incrédulo ao ouvir que Francisco queria vender a propriedade.
- Tio, eu não tenho explicação para tudo que aconteceu. Mas o que eu vi foi um povo pobre e atrasado que vive na superstição. Sou um homem que acredita no progresso. As pessoas não devem continuar dependendo de curandeiros, rezas e ervas, com medo de assombração e serpentes encantadas. Precisam de boas escolas, postos de saúde e médicos de verdade.
E continuou:
- Voltamos amanhã para São Paulo. Farei uma procuração em seu favor para conduzir as coisas da melhor maneira que lhe aprouver.

Compartilhe essa obra

Inspiração

A lenda do Sinhozinho, originada na região de Bonito, MS, é exemplo das crenças populares e práticas curativas tradicionais. Fala também do encantamento do mundo e do Homem e natureza convivendo em harmonia. O limiar onde a fé completa os sentidos e o saber tradicional pode agir ao lado do saber científico e contra o negacionismo que tudo destrói.

Sobre a obra

A partir da lenda do Sinhozinho, a narrativa segue entre a realidade e a ficção para falar sobre o desencantamento do mundo. O neto recebe como herança um legado que ele não entende e não sabe como lidar. De sua decisão depende a permanência ou destruição de um mundo fantástico que ele não sabe ser real ou imaginário.

Sobre o autor

Nascido e criado no Rio de Janeiro, moro atualmente na aprazível Campo Grande, MS. Meu passatempo é a leitura, especialmente o conto, talvez o mais brasileiro dos gêneros literários. Sou um escritor de ocasião, especialmente ao tempo do Talentos FENAE, evento especialíssimo do qual sempre participo.

Autor(a): PAULO ROBERTO ALVES MOREIRA DA CONCEICAO (Paulo Conceição)

APCEF/MS


Essa obra já recebeu votos de 13 pessoas

Essa obra já recebeu 59 votos (com peso)