Talentos

Em busca da canção

Em busca da Canção
Acordei hoje com um dia sem sol, respirando lento, desses apaziguados, mas com ares de lamento. Gosto de dias assim, contritos, e está mesmo difícil ser feliz.
Cheguei na varanda e me deparei com um toca-discos de vinil, daqueles portáteis, uma pequena caixa cuja tampa era a "caixa de som". Muitos dos meus amigos hão de lembrar, tenho certeza. Peguei um disco, abracei entre o peito e a mão e comecei a limpá-lo. Minha memória vai acompanhando, um a um, os movimentos de um antigo ritual: o lencinho improvisado de algodão deslizando sobre o disco, movimentos em círculo, bem lento, girando, girando, bem de leve pra não arranhar. Cada círculo um retorno, um reencontro, um lampejo de antigos afetos. Depois, pegar levemente o braço da agulha, um pequeno sopro na ponta e, delicadamente, como num balé, colocá-la sobre o disco. Um mínimo chiado de praxe como abertura e a voz grave de Geraldo Vandré me invade, rouca, dolorida, quase fúnebre. O Maracanãzinho inteiro aos gritos, em vaias, em protesto, renitente... “Gente! Gente!” Aquele sotaque nordestino, meio doce, meio agreste, bem brasileiro... "Por favor! Por favor!" Mais vaias, mais gritos. Ele argumenta, ele pede em nome das flores, mas as vaias, mas as flores, ninguém ouve, nem a raiva, nem as vozes, nem as flores.
Foi então que as notas de um violão seguidas aquele lamento sertanejo histórico começam a se espraiar: lálárárá, lararárá. Bastou! Tudo ali se encanta: as flores, as vozes, as dores, num canto de amores, de raiva, de flores. O ginásio agora é um Templo, um santuário numa ode ao insubmisso, à indignação, a todo ato de sobrevivência, a toda promessa de não sucumbir. Era o réquiem de um funeral que se negava consumar.
Um canto rebelde, potente, faro de vida e cheiro de morte. Resistência havia. Canção e poesia. Deixei-me invadir por esse passado e cantei junto. Aquelas flores, as mesmas lágrimas, senti a mesma raiva, todas as dores. E chorei. Eu e minha tristeza, confinadas, imobilizadas, sem lugar. Sem resistência, sem voz e sem funeral.
Lembrei-me da morte, aquelas de lá, essas aqui. Pulmões em transe, o ar negado, a cova comum, a solidão da morte me comprime o peito, o luto proibido, a vida como um número. A dor sem um abraço. A máscara desenhada em cada rosto me angustia, seu vinco ardido, a tensão e o cansaço pelos corredores dos hospitais. Afronta-me a razão, o ônibus lotado, o delivery desesperado pelas portas, o submundo do trabalho, a falta dele. A criança sem merenda e sem a praça e a indiferença passeando pelas ruas da cidade. Embrulham-me as vísceras o desdém, o escárnio, o desrespeito, a falta de amor, o presságio criminoso da morte.
A indignação me trouxe ao presente, lugar do esquecimento? Talvez. Eu me procuro. Quero de novo aquela canção, o mesmo enlevo, o elã por agora tão disperso. Olhei minhas mãos gastas pelo tempo, trabalho, frustrações, hoje o álcool em gel. Procurei meu acervo de combate, minhas memórias, minhas promessas, a história.
Mais uma vez a História se impõe. Sedenta de novos ares, novos laços, reflexões, reformulações, mais inclusiva. Pesada. Embora em transe, a história está sempre prenhe. Carregada de nossos vícios, é bem verdade, mas também de novos pensares. Ela nos cobra um presente, exige diálogo, mais respeito à diferença, o contraponto, acolhimento, reparação. E nessa difícil tarefa de interpretá-la, é impossível tomar distância. Tudo é tão perto, tão íntimo, tão nosso. Nossa é a História, com nossos acertos, erros, limites, nossos sonhos e canções.
Marco zero? Ele não existe. Somos nossa memória, e com muito orgulho. Apesar de nossos segredos, nossas certezas tão incertas, graças aos nossos mistérios. A vida e seus paradoxos. A tristeza que se aquieta a meu lado e me faz pensar, quiçá me sacudir.
Felizmente não dispenso ruminar minha tristeza. Ela me constitui e me potencializa quando me remete à minha humanidade, minhas carências, quando evoca meu lado mais generoso, empático, analítico e paciente. É aqui, nesse centro de mim, que o mundo vem bater e me abre para o Outro, tão Outro e tão em si como eu. É a partir desses encontros que me situo e me reconheço, que me potencializo e saio do lugar, tanto pra reagir como para aceitar as coisas que não dou conta, os percalços pelo caminho. E alto lá! Não aceito rendição. Reconheço que fraquejar é do humano, aprendi que duvidar é saber-se pequeno diante da grandeza da qual somos parte. Eu faço ressignificação. Na vida não há nada dado ou pronto, não há nada óbvio. Nada é definitivo e não há nada que não tenha sentido.
Sentido – sentir – ter compaixão. Viver é ser afetado e hoje o dia, esse triste dia, me abriu a janela. Saberei aceitar essa espera, posso ouvir aquela canção, celebrar meu réquiem. Láráláiá, láráláiá.
Repito, pois sei que sou meu primeiro ouvinte: vivemos um tempo de extrema fragilidade humana e a História parece nos cobrar desesperadamente um pouco mais de humanidade, mais fé no futuro, o encantamento que procuro.
Não. Não negarei minhas saudades. Dignificarei todas as ausências, cada uma dessas mortes. Serei renitente. Toda uma vida pela frente não será suficiente para nos refazermos, e é bom que seja assim. Toda Vida é uma Vida pra sempre.
Sim. Cantarei com a tristeza, cantarei com a alegria. Saberei me esperançar.
Lárárárá, láráláiá.
Viver é somar travessias.

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Inspiração

O momento trágico pelo qual passamos, o assombro dante dos fatos, o confinamento, a impossibilidade de reação, as ruas vazias de luta, tudo isso acaba trazendo angustias, desespero quase. precisava falar da tristeza e da busca por um fundamento, uma razão, um lampejo de esperança. Foi muito bom falar disso.

Sobre a obra

não conseguia arranjar outro tema e o coração parece que não se animava a se abrir. Mesmo assim, a "técnica" aqui aplicada foi o coração, a tristeza, o desânimo. Precisava dialogar com tudo isso e o dia me abriu a possibilidade. Foi tudo muito real pois vivi a tristeza, o luto, minha busca por respostas. Consegui vestir essa roupa e me assentei.

Sobre o autor

Gosto muito de fotografar, diminuir o olhar para os detalhes, entrar em determinado espaço, dialogar com ele e seus objetos, trocando entre nós, um diálogo, e uma dose de pertencimento

Escrever nesse momento me ajuda encontrar respostas, reconquistar meus afetos, acalmar o espirito.

Autor(a): ANGELA MARIA FASSINA BARONE THEBALDI (angela barone)

APCEF/ES