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Chegou, tá na hora da alegria
Chegou, tá na hora da alegria
Marinês Castilho Romeu
Cidade escura, ruas desertas, muita chuva. É julho de 2020 e faz muito frio em Porto Alegre. Saindo do Shopping Bourbon Wallig e ao ver o circo montado do outro lado da passarela que dá acesso ao público, muitas lembranças foram passando enquanto dirigia.
Os caminhões iam chegando, sempre ali no terreno vazio da antiga fábrica de fogões. Espalhavam as lonas, arrumavam o local para moradia temporária dos artistas e para os animais ficarem protegidos. Um colorido lindo e muitas luzes enfeitavam a Avenida Assis Brasil e, de longe, se podia avistar toda aquela estrutura.
Relembrei os momentos de alegria de minha mãe já idosa, parecendo criança quando eu chegava em sua casa dizendo que o circo estava chegando.
- Quando vamos Inês?
E eu logo respondia para tranquilizá-la:
- Amanhã mesmo passo lá e compro os ingressos para domingo à tarde.
Todos os integrantes tinham responsabilidades, vendiam pequenos artesanatos, balões e distribuíam panfletos e alguns ingressos com desconto. E a expectativa no dia da primeira apresentação crescia, as filas na calçada aumentavam enquanto os palhaços já iam divertindo as crianças.
E o domingo chegou.
- Olha Inês, vai ter elefante e veja os cavalos com sua elegância, adoro o carrossel e os artistas fazendo acrobacias.
Os olhos de minha mãe brilhavam; quantos sonhos ficaram para trás. Certamente a arte circense fica impregnada nas lembranças de uma criança. Lembrei de um poeta espanhol que escreveu: se vivia una vida en cada hora, era la infancia.
- Filha, não esquece os tickets para pipoca, quentão e o doce de abóbora e vamos logo para nossa cadeira, quero estar bem na frente para ver tudo de perto. Hoje descubro o truque do mágico.
- Mas te prepara, além dos trapezistas, palhaços, do desfile dos animais, vai ter o Globo da Morte.
- Tenho um certo receio dessa apresentação, aquele ruído das motos acelerando preocupa a gente. Acho que é truque deles. Me impressiona e são de muita coragem.
E aquela tarde passou rápido, felizes por todas as apresentações. As crianças se encantavam com os palhaços, mágicos e equilibristas.
Esta arte milenar circense, realiza os sonhos de seus artistas e do espectador. São momentos lúdicos, cheios de encanto, deixando um desejo de liberdade como o deles, que a cada temporada se despedem e vão em busca de outro local e de outros espectadores.
Mas hoje a cidade está triste, o país está desolado, o mundo chora seus mortos na pandemia. E os artistas de circo não podem apresentar sua arte. Os palcos estão montados, as lonas coloridas, mas as cadeiras que rodeiam o picadeiro estão vazias.
Os artistas estão paralisados e sem recursos, recebem ajuda da comunidade, as luzes não se acendem à noite e os carros de som que anunciam os espetáculos estão parados.
Uma lágrima desce em meu rosto, lembro de minha infância, de tantas brincadeiras que já não se vê, mas também lembro que já adulta, triste por algum acontecimento familiar e com tantos clientes para atender no trabalho, lembrava do palhaço. No picadeiro sorri e encanta a todos com seu rosto colorido e disfarça suas dores para alegrar o público. Ele não é um personagem, não interpreta, simplesmente é. Busca energia para alegrar.
Assim, muitas vezes me inspirei, não sendo como ele autentico e inocente, mas interpretando para que minhas tristezas não fossem percebidas.
E a todo dia, independente de meu sentimento ao entrar no trabalho, pensava...
Cheguei, cheguei, tá na hora da alegria.
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Inspiração
Sempre gostei de escrever e desde 2012 participo de Oficinas Literárias na Apcefrs e Agears.
Escrever é um prazer indescritível, além de proporcionar cultura e transformar lembranças e sonhos em contos.
Sobre a obra
As técnicas para contos e crônicas aprendi nas oficinas. A criação de meus contos, muitas vezes são inspiradas por autores ou nas experiências e lembranças da vida.
Sobre o autor
Sou aposentada Caixa e desde 2008 encontrei na escrita uma forma de preencher o tempo disponível, além de amenizar as dificuldades do motivo da aposentadoria precoce, que foi cuidar de minha mãe com mal de Alzheimer.
Antes das oficinas escrevia sobre o cotidiano observado de minha janela.
Autor(a): MARINES CASTILHO ROMEU (Marinês Castilho)
APCEF/RS