O menino correu para fora do barraco com as bolinhas de gude nas mãos. Papai Noel
lembrara dele. Primeiro perfilou as bolinhas conforme o brilho e cor, depois arrumou o jogo.
Sentou-se sobre uma lata esvaziada.
– Moleque, não se suje.
– A mulher esgoelou-se enquanto cerrava a porta para atender um cliente.
A mãe não precisava gritar, ele sabia que não podia sujar a roupa de domingo e era
Natal.
Ela trabalhava muito, não tinha tempo para nada... nem mesmo para escolher o nome
dos filhos. Os irmãos ganhavam nomes quando começavam a trabalhar: Trabuco, Tresoitão,
Ponta Oca, Olhão. Jujuba, Paçoquinha, as meninas, já estavam seguindo a profissão materna.
Moleque era o mais novo... por enquanto. Pelo tamanho da barriga da mulher logo teriam outra
criança no barraco. Ninguém mais lembrava dos dois que haviam nascido depois do moleque.
A mãe trabalhava muito.
Enquanto batia na roupa para tirar a poeira, olhou para a casa desabrochada em frente à
comunidade.
O asfalto da avenida separava dois mundos.
O mundo daquela criança tinha se rompido no nada, era um emaranhado de paredes
corroídas por cupins e telhados de caixas de leite nunca por ele bebidas, de chão feito de tábuas
apodrecidas por histórias de outras gentes, esgoto escoando em veios contínuos ajuntando
terreiros e barracos na carestia e fetidez. Cães, gatos e ratos livres, inchados de pobreza.
Homens estranhos em um vai e vem frenético entre lençóis puídos e restos de outros. Famílias
de mulheres solitárias e crianças esquecidas.
O outro mundo era feito por casas com jardins, jardins com flores e borboletas, calçadas
lisas e até brilhantes, casas com janelas, janelas com cortinas esvoaçantes, escadas para cima e
para baixo, portas com chave. Famílias com pai e mãe, com filhos e cachorros com gravatas e
laçarotes.
De repente o portão se abriu.
Da casa em frente à comunidade saiu um homem carregando caixas coloridas, pareciam
leves apesar de muitas, eram enfeitadas por desenhos natalinos. Ele as amontoou debaixo do
poste ao lado da lixeira, não tinham mais serventia além do descarte. O moleque sabia que logo
não estariam mais ali. Alguém atravessaria o asfalto e as cataria como quem cata fruta madura
no pé, com avidez e fome.
O colorido e brilho dos embrulhos corrompidos fez com que brincasse de adivinhar o
antigo conteúdo. Uniforme de futebol, com chuteira e bola. Videogame. Jogos eletrônicos. O
moleque olhou para as bolinhas de gude, elas chegaram num saquinho plástico descorado e sem
brilho, desse devaneio foi resgatado do devaneio pela voz vinda do outro lado do asfalto.
– Pode andar com sua bicicleta nova na calçada. Não vai para a rua. Na calçada!
– Eu sei, pai, eu sei.
E o filho do homem da casa do outro lado do asfalto surgiu pedalando uma bicicleta
amarela e vibrante como o sol.
O moleque se esqueceu das bolinhas de gude na poeira do chão bruto. Sentou-se no
paralelepípedo e acompanhou com os olhos e com os sonhos o desfilar da bicicleta enquanto
murmurou: – Papai Noel deu minha bicicleta... minha... para ele...
– PEDRO!
Mais uma vez a voz do homem o despertou, desta vez o grito foi de terror.
O asfalto enrubesceu. Retorcida, a bicicleta já não brilhava. Um corpo contorcido
expirou a poucos metros do barraco. Gritos.
– PEDRO... PEDRO... PEDRO...
A paixão naqueles gritos, mesmo nascida da dor, hipnotizou o menino sem pai e sem
nome. Amor, ele percebeu que aquele era o som do amor do pai pelo filho. Catou as bolinhas
de gude com um sorriso entre os lábios. Não pensava mais na bicicleta, ignorava a morte. Papai
Noel o presenteara com um nome, o moleque agora era Pedro.