Crônica para mulheres de 59 anos (e para quem convive com elas).

Crônica para mulheres de 59 anos (ou para quem convive com elas).
Com um mero tique-taque deixei de ser uma mulher madura para fazer parte de uma nova categoria – idosa. Segundo o dicionário on-line, a palavra categoria significa “1. Conjunto de pessoas ou coisas que podem ser abrangidas ou referidas por um conceito ou concepção genérica; classe. 2. Grau negativo ou positivo de excelência; qualidade.” Depois de muito pensar, tenho uma dúvida: ao me tornar idosa, passei também a ser genérica e de grau negativo de excelência?
O dia 8 começou como tantos outros de quando eu tinha 59 anos… 58 anos… 57 anos… Olhei no espelho para me dar bom dia. Foi neste cotidiano movimento que percebi que as rugas ao redor dos meus olhos e lábios estavam mais marcantes e minha papadinha se mostrava mais solta. Me distanciei 3 ou 4 passos, voltei 3 ou 4 passos, me aproximei do espelho até a ponta do meu nariz tocar o vidro. Não acreditei. Como que, após poucas horas de completar 60 anos, o estrago poderia ser tão evidente?
Ponderei por alguns minutos e concluí que a culpa era da luz. A troca da lâmpada pelo led não foi um bom negócio. O eletricista (homem) não me contou as contraindicações do led. Apaguei a luz e me distanciei de vez do espelho.
Liguei o computador e, antes mesmo de consultar meu horóscopo e os matches no meu Tinder, me peguei imprimindo a credencial para estacionamento em vaga para idosos. Bem, pensei com racionalidade, direito é direito e vou usufruir do meu. Ainda no computador, pois no celular não enxergo as letrinhas, busquei meu direito de usar o transporte coletivo da minha cidade para passear, mas descobri que apenas com 65 anos seria possível desfrutar de tão importante direito. Sacanagem!
Tentei continuar com meu cotidiano de mulher de 59, pois 60 é apenas um número e número é apenas “a representação gráfica de uma quantidade e/ou a soma de unidades”, ou seja, não é nada que interesse a uma mulher de 60 anos.
Quando trabalhava como bancária, os números até tinham significado: o número de Deltas a receber ao final da avaliação de mérito, o número de senhas nas mãos dos clientes que observavam indiscretos minha falta de agilidade no caixa, o número de minutos que ultrapassei ao lançar minha saída no SIPON.
Outros números também rondavam meu cotidiano na época, em especial a numeração das minhas roupas. Com 20 anos eu vestia 36, com 30 anos passei para a medida 40, ao chegar nos 40 minhas roupas chegaram aos 44, com 50 me transformei em 48 e, se a matemática for real, com 60 visto… (prefiro não comentar).
Ao me aposentar e engordar, resolvi banir os números. Bani sem dó.
Tentando entrar no ritmo de vida dos 60 anos, é cada vez mais comum a obrigatoriedade em provar que estou viva, fui ao banco. A fila para retirar a senha estava longa e era única. Ciente dos meus direitos de sexagenária, mas um pouco envergonhada por usar tal subterfúgio já no primeiro dia de prerrogativa, me aproximei da atendente e informei minha nova situação, o que me permitiu receber a senha preferencial. O pessoal na fila reclamou, mas direito é direito. Me provei viva.


(Nesta altura do texto, talvez pensem se tratar de um conto, não, não pensem que isto é um conto, não! Nada aqui é ficção. Se fosse ficção, o final da história seria:
Numa noite de violentos relâmpagos e fosforescentes raios, zapeando pelo Tinder, com uma taça de “Pera Manca” nas mãos, a palpitante idosa deu match na foto de um homem comum – meio careca, óculos de grossas lentes de grau, pançudo e com um sorriso aparvalhado –. As conversas progrediram até chegar ao intenso desejo de estar cara a cara, mão na mão, e assim aconteceu. Ela atendeu a porta ao primeiro toque da campainha. Sorriu incrédula e fagueira. Com as sobrancelhas arqueadas, tornando seu olhar mais viril, ele se aproximou, balançando os longos e cacheados cabelos e se apresenta: – Oi, sou Jason Momoa, me chame apenas a-Moreco. E, a partir daquele match, a sessentona foi feliz para sempre.)


Estando comprovadamente viva, me dirigi à farmácia com uma listinha básica de comprar. Sinvastatina. Fluoxetina. Simeticona. Maracujina. A atendente, nada discreta, usando o microfone da loja, chama a gerente para atualizar meu cadastro e se mostra muito prestativa.
– A partir de 60 anos, a senhora passa a ter 5% de desconto nos produtos para a terceira idade. A senhora quer uma cadeira? “Gerente, por favor, dirija-se ao caixa, cliente idosa aguardando.” A senhora quer que eu lhe apresente aos prod…
Por sorte, a chegada da gerente interrompeu a obsequiosa tagarelice da jovem atendente e pude deixar o recinto de cabeça erguida, mesmo estando com minha autoestima em crise existencial.
No carro, sem perceber, passei a recitar baixinho: Corega Tabs, Fraldas Tena e uma extensa lista de produtos dedicados à terceira idade cujos nomes ouvi enquanto aguardava a gerente da farmácia. Ao me dar conta do flagelo mental que me abalava, liguei na Rádio Rock e cantei Kiss (com direito à língua de fora) e Zepellin e Ramones. Cantei aos berros e sacudi a cabeça como rockstar. Ao chegar em casa, tomei 2 comprimidos de relaxante muscular e colei 1 Emplastro Sabiá no pescoço.

Dormi.

Na manhã seguinte, com 60 anos e 1 dia, percebi que as rugas e a papadinha permaneciam lá, que a categoria que me cabe é das mulheres empoderadas (indiferente se acompanhada do 59 ou 60 anos), que é bom poder estacionar o carro na vaga especial nos meus passeios, que os números um dia ainda serão meus amigos (basta escolher os números certos para apostar na Mega Sena), que minha elegância se aprimorou com o passar dos anos (indiferente ao tamanho), que todo mundo um dia vai recorrer à mais que sexagenária Maracujina, que é melhor saber cantar os rock da década de 70 do que o sertanejo universitário ou o funk de 2024.
Posso estar confusa se este texto é uma crônica, mas, sem dó ou dúvida, assumo ser uma senhora de 60 anos.

Compartilhe essa obra

Inspiração

Minha inspiração? Sou uma mulher de 60 anos. Lembrei como foi estranho acordar no dia do meu aniversário de 60 anos e ao mesmo tempo como foi libertador. É um tema atual e que precisa ser apresentado sem preconceito, de maneira leve e, se possível, divertida.

Sobre a obra

Trabalhei a metaliteratura, ou seja, a literatura tratando de questões da literatura, no caso, as diferenças e senelhanças em crônica e conto. Tema sempre debatido nas rodas de literatura. Usei parênteses em um trecho do texto para apresentar um microconto e ressaltar o que é ficção e não ficção. O texto é em linguagem denotativa e em conotativa.

Sobre o autor

Desde minha aposentadoria, tenho me dedicado à escrita e aos estudos que envolvam literatura. Com ajuda dos cursos da Rede de Conhecimento /FENAE aprimorei em muitos sentidos minha escrita e me sinto motivada e valorizada no meu novo caminho pós-Caixa.

Autor(a): LILIAN DEISE DE ANDRADE GUINSKI (Lilian Guinski)

APCEF/PR