CAMINHANÇAS

CAMINHANÇAS
Os pequenos pés tocaram pela primeira vez a areia da praia. Num misto de incômodo e curiosidade, a criança começou a fazer buraquinhos com a ponta dos dedos, para em seguida enterrar os dois pés no chão areento e gargalhar alto até ser ouvida pelas gaivotas.
O sabor do sal nos lábios. O florescente insólito das escamas dos peixes. O perfume da maresia invadindo as narinas. A simpatia dos golfinhos. O leve dançar das águas vivas. Tudo era perfeição.
Ora pulando ondas do mar, ora construindo castelos magníficos, ora balançando na rede ouvindo as histórias contadas pelos pais. Em meio a brincadeiras e descobertas, passavam os primeiros anos da menina.
Um dia, os jovens pés descobriram a maciez da relva. Um tapete delicado que gerava sorrisos brejeiros ou sonhos de bem-querência, dependendo do tipo de folha que os pés roçavam.
Das flores, aspirou uma gama incontável de fragrâncias. Os olhos se deslumbraram com o matizado das paragens. Das árvores, a boca saboreou o doce das frutas. O farfalhar do vento nas folhas e nos galhos das árvores ecoava como música. Dançou. Sonhou. Amou. Daquela vivência degustou os temperos da paixão.
Tão profundo era o encantamento que a garota começou a escrever suas próprias histórias. Palavras rimadas pela cadência do amor, frases costuradas pela tênue linha dos sentimentos, relatos esboçados pelos lampejos da memória. Páginas e páginas originadas da imagem do ser amado, da energia do toque pele a pele, do arrebatamento dos beijos.
De súbito, os pés da mulher se feriram. A aspereza do solo inóspito maculava o corpo fragilizado. Era penosa a escalada. A cada passo as chagas se mostravam mais profundas e o remédio mais peçonhento. Tentou contar as histórias da sua vida, mas não tinha ninguém para ouvir.
As poucas flores que brotaram por entre as pedras logo murchavam. Apenas as aves predadoras se aventuravam nas alturas. O sal a se alojar nas ranhuras dos lábios ressequidos brotavam das próprias lágrimas.
O peito sobrecarregado de dores chorava a cada pedra pisada e a cada lembrança avivada. Para amenizar o pesar, a dona foi abandonando suas memórias pelo caminho. No terreno estéril, nenhuma história germinou e as páginas foram consumidas pelo esquecimento. Suas entranhas se esvaíram em sangue e lágrimas, deixando um rastro de solidão até o cume.
Os pés alquebrados voaram.




Num arroubo, a mulher abriu o peito e libertou as últimas histórias que ainda trazia em seu ser. Páginas brancas com marcas negras tornaram-se lindos pássaros a voejar levadas pelo vento. Algumas lembranças preferiram mergulhar no mar esverdeado e se transmutar em sereias sonhadoras. As tristezas antes choradas se perderam no ar como minúsculos ciscos.
Por deixarem de carregar o peso de uma longa história de caminhada, os pés se curaram e a mulher de longos cabelos brancos e de corpo amarfanhado pelo tempo aceitou o convite para bailar ao som doce da brisa.

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Inspiração

A VIDA!
Como mulher de sessenta anos, meus pés muito caminharam, minhas mãos de escritora, muitas histórias escreveram e meu coração muitos amores viveu.

Sobre a obra

Minhas CAMINHANÇAS foi escrito em prosa poética de modo a aliviar a apresentação deste tema tão sensível: a vida.
A personagem desprovida de nome e desnuda de características personificantes, faz com que a mulher seja qualquer uma e seja todas ao mesmo tempo.
Ao final uso uma suspensão para dar um novo ritmo ao texto, uma parada antes do final.

Sobre o autor

Sou uma mulher de 60 anos que se descobriu escritora depois dos 50 e desde então tenho me dedicado a estudar e ler muito, para assim refinar minha escrita e melhor ponderar sobra a vida.

Autor(a): LILIAN DEISE DE ANDRADE GUINSKI (Lilian Guinski)

APCEF/PR