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E Estância não caiu



E Estância não caiu

A cidade de Estância, em Sergipe, fica há 70 quilômetros de Aracaju por estrada pavimentada. É cercada por dois rios importantes – o Piauí e o Piauitinga, além de outros menores como o Fundo e o Maculanduba, o Biriba, o Cassunguê e o Rosentina. A cidade tem uma história antiga que remonta ao século 17. Pedro Homem da Costa recebeu a concessão territorial do território de Estância em 1621, e ali edificou uma igreja dedicada à Nossa Senhora de Guadalupe, que, por coincidência, também era padroeira do México. Como estância é o nome de uma propriedade de criação de gados no México, talvez tenha sido essa a razão que Pedro Homem escolheu este nome para chamar a cidade que naquele momento estava sendo criada.

Essa história que agora vou contar se passou em Estância no final da década de vinte, ou talvez no início da década de trinta, e envolveu os meus avós e minha mãe e seu irmão.

Nelly estava brincando no piso de terra batida que havia em frente a sua casa com o seu irmão Edson, quando viu passar aquele homem cavalgando na rua em frente a sua casa.
Lembrou-se da descrição detalhada que sua mãe Laura costumava fazer dos cangaceiros:
Segundo ela, eles costumavam vestir roupas de tecidos resistentes, onde predominavam o brim cáqui e o mescla azul. Gostavam de usar camisas de manga comprida e chapéu de couro, com aba larga. Calçavam alpercatas. Em geral, tinham por baixo das blusas cartucheiras das armas curtas: pistolas ou revólveres. Alguns deles que carregavam duas cartucheiras duplas na cintura e mais duas atravessadas no peito. Sobre a calça tinha uma cobertura de couro. Desta forma eles se protegiam contra os espinhos comuns na vegetação de caatinga que predominava no Nordeste brasileiro.
- Mamãe! Mamãe! – entrou correndo em casa – Tem um cangaceiro passando na rua!
Laura largou os seus afazeres na cozinha e foi até a janela da sala. Ela própria só tinha visto um cangaceiro uma vez na vida. O homem olhou para a janela onde ela estava, pois, a sua atenção tinha sido chamada pela gritaria da garota de quatro anos. Deu um sorriso para Laura e seguiu em frente.
Laura não tinha dúvidas era realmente um cangaceiro.
- Edson, meu filho, venha para dentro de casa – gritou assustada.
Quinta-Feira, o cangaceiro que poucos anos depois iria morrer junto com Lampião e Maria Bonita era o homem que estava passando naquele momento na rua principal de Estância. A história conta que quando Lampião foi tocaiado e morto pelas tropas comandadas por João Bezerra, Quinta-Feira foi um daqueles cangaceiros que tiveram a sua cabeça decepada e depois salgada. Essas cabeças foram exibidas numa imensa peregrinação macabra que chegou a passar pela capital da república, no caso o Rio de Janeiro.
A imagem de Quinta-feira causava temor e apreensão. Seguiu em trote lento até as proximidades da Igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, aquela que inspirou o nome da cidade, se benzeu como todo bom católico, e seguiu para a prefeitura. Ali, tirou uma das espingardas e deu um tiro para o alto. Quando o primeiro rosto apareceu numa das janelas da prefeitura ele falou:
- Eu tenho um recado para o prefeito.
- Eu sou o prefeito de Estância – respondeu um homem que estava em outra janela.
- Eu tenho um recado do Capitão Virgulino para o povo de Estância – comunicou.
O prefeito engoliu em seco mas se conteve.
- Pode falar.
- Amanhã, ao meio dia, o capitão e todo o seu bando estará aqui para um banquete que lhe será oferecido pela cidade de Estância. O capítão pede que o senhor tome as providências cabíveis para que tudo corra bem.
Tendo dito isso, guardou o rifle e tomou o caminho de volta.
Começava naquele momento um pandemônio que iria tomar conta de Estância durante os próximos dias, e, como veremos, iria mudar a vida de muitos dos seus moradores, dentre eles Fernando, Laura e seus filhos Nelly e Edson.

- Fernando! O que você está fazendo em casa esta hora? – quis saber Laura.
- Todos os empregados da fábrica foram liberados. Será feita uma convocação para que todos os homens se reunam daqui a pouco na igreja para discutir uma questão muito importante.
- Que questão?
- Lampião mandou preparar um banquete para ele e seus homens. Ele vai entrar na cidade amanhã.
- Mas o bando de Lampião são mais de cinquenta cangaceiros.
- Isso mesmo. Vamos ter que fazer uma festa para esses bandidos.
- Acho que em toda cidade não tem alimento para todo esse pessoal. A maioria não tem comida nem para a sua própria família.
- Essas e outras questões deverão ser discutidas.
Nesse momento o sino da igreja começa a tocar.

- Povo de Estância, eu, prefeito da cidade, os convoco para uma decisão importante que teremos que tomar nos próximos minutos – o prefeito estava em pé no púlpito da igreja cedido gentilmente pelo padre naquela hora tão importante.
Uma multidão de homens e umas poucas mulheres ocupava o salão da igreja.
- Como todos sabem acabamos de receber a visita de um dos cangaceiros do bandido Lampião. Ele trouxe um recado do seu chefe que nos intima a preparar um banquete para todos os cangaceiros amanhã ao meio-dia quando todo o bando deverá entrar na nossa cidade. Eu acho que nenhum de nós quer receber esses convidados por aqui, pois não sabemos quais as consequências dessa visita. Tratam-se de bandidos e pelos boatos que recebemos de outras cidades, poderão ocorrer estupros e outros crimes. Eu já enviei um dos dois soldados que temos aqui para a capital, Aracaju, com um pedido urgente de socorro que deverá ocorrer dentro de dois dias. A minha proposta é que montemos uma barricada na entrada de cidade e enfretemos os bandidos.
- Mas prefeito, com que armamento iremos enfrentar os cangaceiros? – perguntou um homem.
- A minha proposta é que usemos o que temos e o que não temos.
- Como assim?
- Vamos colocar na barricada todos os homens da cidade com as armas que dispomos. Quem não estiver armado precisará fingir que estar armado, usando cabos de vassoura, ou o que estiver disponível para tal. Vamos tentar enganar Lampião até que os reforços cheguem.
A proposta corajosa e ousada do prefeito pegou a todos de surpresa. Tratava-se de um risco enorme, mas por outro lado não havia nenhuma saída. Eles estavam numa situação muito difícil. Ou preparavam o banquete, o que por si só iria ser muito difícil, pois nem sabiam se tinham comida suficiente na cidade, ou fingiam estar em condições de enfrentar os bandidos.

- Laura, você vai colocar as crianças no sótão. Mande que elas não façam nenhum barulho. Os homens da cidade irão montar uma barricada para receber Lampião.
Esta decisão de colocar as crianças no sótão, por muitos anos foi motivo de reclamação de Laura. Dias depois ela descobriu que as outras mulheres levaram os seus filhos para a beira do rio Paiuitinga, onde haviam diversas canoas, e ficaram todos ali abrigados. Se Lampião invadisse a cidade eles iriam de barco em direção a foz do rio. Esta era realmente a opção mais segura, pois, como sabemos, Lampião não entrava dentro de água por nada neste mundo. Ficar trancado no sótão não era realmente a melhor opção de fuga.
- Vocês estão pensando em enfrentar esses bandidos? – perguntou Laura.
- Na verdade não vamos enfrentar, vamos fingir que estamos armados até os dentes. Vamos blefar – a palavra blefar saiu quase que como um engasgo. Um grupo de trabalhadores, sem nenhum passado de violência, iria montar um blefe para enganar um dos mairores bandidos que já tinha passado pelas terras brasileiras. A fama do chefe desses bandidos já havia ultrapassado as nossas fornteiras. E ali estava um grupo de homens inocentes se preparando para enganar os cangaceiros!
- isso é uma loucura – comentou Laura.
- Eu também acho, mas foi o que ficou decidido na reunião na igreja.
- Onde vocês vão montar essa barricada?
- Na entrada principal da cidade.
- Ele pode entrar pelo rio.
- Lampião tem verdadeiro horror à água. Isso é impossível de acontecer.

A montagem da barricada atravessou a noite. Quando o dia nasceu aqueles homens cansados, que não tinham pregado o olho durante a noite, estavam escondidos atrás de montes de areia, pedras, móveis e tudo mais. A maioria não conseguia esconder o cansaço.
- Fernando, será que vamos enganar Lampião que estamos armados?
O vizinho de Fernando, que morava na casa ao lado da sua, era também seu vizinho na barricada.
- Zeferino, eu não tenho a menor idéia.
Eles estavam entre aqueles que não tinham em casa nenhum tipo de arma. Na verdade essa era a situação da grande maioria. Alguns poucos estavam armados. O armamento reunido eram duas espingardas, uma do soldado que tinha ficado, cinco revólveres, vários facões, e mais nada. Fernando e Zeferino estavam usando cabos de vassouras que fingiam ser espingardas, como muito dos outros homens. Vários cabos de vassoura apontaram para a estrada quando barulho do trote de vários cavalos soou na entrada da cidade. Um tiro de espingarda soou. Era o soldado que estava avisando Lampião para parar. O cangaceiro levantou o braço. Estava a poucos metros da barricada. Neste momento o prefeito gritou:
- Se vocês derem mais um passo serão passados na bala.
Lampião estava surpreso.
- Nós viemos em missão de paz. Só queremos comer e depois seguir no nosso caminho.
- Se quiserem comer devem procurar outro local para se banquetearem. Aqui não tem comida para bandido. Estamos também aguardando reforços da capital que devem chegar em poucas horas. Ou voces pulam fora ou não vão sair daqui nunca mais.
Fernando já estava quase passando mal com a ousadia do prefeito. Apontou o cabo de vassoura para Lampião.
O cangaceiro ficou parado alguns minutos examinando a barricada. Eram dezenas de homens entrincheirados. Se ele não recuasse iria ser um massacre pois a distância era muito pequena.
- Está bem. Eu não vou entrar agora, mas vou voltar muito breve e não vai sobrar uma viva alma aqui em Estância. Guardem isso na cabeça de vocês. Dito isso deu meia volta e retornou seguido pelos outros cangaceiros.
Atrás da barricada alguns homens vomitavam. Outros engoliam em seco. Não havia razão para ninguém ficar contente. Os soldados demoraram uma semana para chegar a Estância e quando entraram na cidade não acreditaram que por trás daquela barricada estavam alguns homens armados com cabos de vassoura e que desta forma tinham enfrentado o maior bandido da história do Brasil.
Lampião nunca cumpriu a sua ameaça, pois morreu poucos anos depois. Fernando não chegou a esperar que o cangaceiro cumprisse a sua promessa. Pegou a mulher, Laura, e os filhos Nelly e Edson, e foi morar em Aracaju, onde teve ainda mais uma filha, Aurora. Por ironia do destino, uma vez quando estavam indo de trem para o interior do estado de Sergipe, talvez em direção a São Cristõvão ou Larangeiras, onde tinha alguns irmãos de Fernando que por ali moravam, o trem foi parado pelo bando de Lampião. Os cangaceiros entraram nos vagões a procura de comida. Edson, irmão de Nelly, sentiu quando um homem passou as mãos pelos seus cabelos. Olhou para cima e viu o rosto de Lampião sorrindo. Naquele momento não teve medo, embora ao seu lado seu pai procurasse disfarçar o pavor. Lampião lhe fez um outro afago e seguiu adiante. Edson guardou para sempre aquela imagem que iria lhe acompanhar por tada a vida. Quando os cangaceiros desceram do trem Fernando respirou aliviado. Se Lampião soubesse que dentro ali estava um dos homens da trincheira de Estância, ele, com toda certeza, não seguiria a sua viagem.

Essa história tem sido contada para mim e meus irmãos pela minha mãe há muitos anos. Ela tanto repetiu essa história que acabamos todos decorando os seus desenlaces. Pesquisando na Internet eu descobri que Lampião realmente esteve em Estância e por lá passou na época em que minha mãe e meus avós por lá viviam. Há alguns anos eu estava em Aracaju, participando de um campeonado master de natação, e resolvi ir a Estância conhecer a cidade. A geografia da cidade era semelhante àquela da história de minha mãe, razão pela qual resolvi trancrevê-la neste conto.Cheguei a perguntar a alguns moradores sobre essa história de Lampião mas a nenhum deles soube dizer se de fato ela tinha realmente acontecido. Como minha mãe era muito nova na época, tinha entre cinco e sete anos, pode ser que a sua percepção da história tenha sido diferente da realidade. Com isso eu quero apenas afirmar que não garanto que esta narração corresponda inteiramente a realidade, porém, voces hão de concordar que se trata de uma boa história.

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Inspiração

Este conto foi baseado em histórias contadas pela minha mãe a mim e a meus irmãos, pois ela foi uma das testemunhas da presença de Lampião na cidade de Estância.

Sobre a obra

Eu apenas segui a minha inspiração e a grande vontade de escrever sobre um fato que vinha sendo a mim contado pela minha mãe e meus avós. O evento ocorreu na cidade de Estância que fica a 70 quilômetros de Aracaju. O meu bisavô veio da Itália e se estabeleceu em Aracaju onde conheceu a minha bisavô com quem teve 24 filhos.

Sobre o autor

Eu tenho atualmente 28 livros publicados sendo que a metade são de livros técnicos, pois a minha experiência profissional foi trabalhando na área de TI da Caixa.

Autor(a): EMERSON RIOS (Emerson Rios)

APCEF/RJ