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O palhaço e o carteiro

O palhaço e o carteiro

- Tio! Passa a bolsa com todas as correspondências! – falou um dos pivetes enquanto o outro apontava o revólver calibre 38.
- Não estou entendendo. Eu sou Souza, o carteiro.
- Eu não quero saber quem você é. Eu quero a bolsa.
- E também a sua carteira – completou o outro.
- Eu moro aqui na comunidade. Sou o único carteiro que entrega as correspondências de casa em casa. Eu percorro todo o Morro do Cavalão entregando correspondências. Nenhum carteiro faz isso em nenhuma comunidade.
- Pô! Eu estou perdendo a paciência – falou aquele que apontava a arma.
Souza ainda tentou uma última cartada.
- As vezes eu me fantasio de palhaço. Eu viro o palhaço Tringuilim. Aquele que alegra as crianças do morro – todos no morro conheciam o palhaço.
- Puta que o pariu! Porra! Para de falar e passa a grana.
Souza um pouco constrangido entregou a bolsa com as cartas do Morro do Cavalão e a sua carteira que continha uns poucos trocados. O pagamento não tinha ainda saído. O que mais o intrigava era o fato dos dois não saberem quem era o palhaço Tringuilim, ou pelo menos fingiam que não sabiam.
Os pivetes saíram correndo para o interior da favela, na mesma direção para onde estava indo Souza. Nas proximidades tinha o bar do Barriga. Uns duzentos metros adentro. Souza foi para lá conversar com alguém. Em quinze anos entregando correspondência no Morro do Cavalão, nunca ninguém tinha tocado um dedo nele. A comunidade o respeitava pelo seu trabalho como carteiro, aquele que ia de casa em casa, e como o palhaço que em alguns fins de semana alegrava os seus filhos e era o ídolo das crianças do morro. O Morro do Cavalão era a única favela onde o carteiro entrava, em nenhuma outra acontecia isso. As cartas eram deixadas em algum local onde os moradores procuravam aquelas que lhes pertenciam.
- O que é isso Souza? Eu não estou entendendo nada! Uns pivetes idiotas assaltaram você na entrada do morro. Isso é um absurdo – falava Barriga aos altos brados, chamando a atenção dos poucos freqüentadores do bar.
- Esse morro não é mais o mesmo – respondeu Souza enquanto tomava um gole de cerveja.
Souza era solteiro e morava sozinho. Mas não era só. A vida na comunidade preenchia toda a ausência da família. A ex-mulher morava em outra cidade com os seus dois filhos, que Souza apenas via uma vez por mês, mais exatamente num fim de semana previamente determinado. Não dava para ir para Friburgo todo fim de semana. Às vezes os filhos passavam alguns dias com ele na sua casa bem montada no Morro do Cavalão. Jogavam futebol e brincavam com as outras crianças. A mãe é que ficava atazanando a sua vida, perguntando coisas idiotas tais como balas perdidas, traficantes e outras coisas que via na televisão.
No dia seguinte Souza acordou pensando em como ia relatar o fato nos Correios. Roubos de carteiros eram comuns, mas o órgão sempre exigia detalhes. O furto tinha que ser registrado na delegacia. Vários formulários tinham que ser preenchidos. De repente alguém bateu na porta.
- O que mais vocês querem? – perguntou Souza espantado ao ver os dois pivetes que o haviam roubado no fim de tarde do dia anterior.
- Nós viemos aqui devolver tudo – um deles entregou a Souza a bolsa com as correspondências e o outro a carteira.
- Está tudo aí. Não tocamos em nada. Aliás nós compramos dois sorvetes, mas logo nós voltamos para pagar.
Souza ficou sem entender.
- Nós gostaríamos também de pedir desculpas, pois não sabíamos quem o senhor era.
- Por que vocês mudaram de opinião? – perguntou Souza.
- Bem, o chefão, o Dudu Sem Cérebro, ficou sabendo e nos deu uma tremenda bronca. Mandou devolvermos tudo e pedir desculpas.
- Tudo bem. Vocês estão desculpados – Souza estava tão contente em ter recebido as cartas que nem estava mais preocupado com a sua carteira e nem no pequeno desfalque.
- Eu vou agora mesmo correr o morro para entregar essas cartas que já estão atrasadas.
Os dois continuavam em pé na porta.
- Está tudo certo. Vocês podem ir embora.
- Tio, nós ficamos com a tarefa de durante um mês entregar a correspondência no morro. Por favor nos entregue a bolsa.
- Eu não posso fazer isso. O carteiro sou eu.
- Nós sabemos, tio. Nós respeitamos muito o senhor. Mas esse foi o castigo que Dudu Sem Cérebro nos deu. Se não fizermos a entrega durante um mês a coisa vai ficar preta para o nosso lado.
Souza conhecia o traficante. O não cumprimento de uma ordem sua poderia ter sérias implicações para os dois.
- Tudo bem. Se vocês não conseguirem entregar alguma das cartas, por favor me procurem.
- Não se preocupe tio. Nós vamos entregar todas as cartas.
Durante um mês nenhuma carta deixou de ser entregue. Os dois pivetes acabaram muito conhecidos e respeitados no morro. Eles próprios gostaram tanto do serviço que passaram a acompanhar Souza sempre que podiam. Anos depois os dois passaram num concurso de carteiro e foram trabalhar nos Correios. Muitas vezes o bem acontece por vias transversas. O mais interessante foi também que um deles virou ajudante do palhaço Tringuilim. Souza tinha arranjado substitutos nas suas duas carreiras.


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Inspiração

Eu tirei essa inspiração devido ao fato de conhecer algumas pessoas e amigos que viviam no Morro do Cavalão em Niterói.

Sobre a obra

Esse conto retrata a vida de dois pivetes do Morro do Cavalão que um dia resolvem assaltar um carteiro que fazia o trabalho de distribuir as correspondências nas casas dos moradores da comunidade. A história se passa num período anterior a existência de internet e claro celulares.

Sobre o autor

Eu tenho atualmente 28 livros publicados sendo que mais ou menos a metade são de livros técnicos sobre TI baseados na minha experiência profissional na Caixa pois sempre trabalhei nessa área.

Autor(a): EMERSON RIOS (Emerson Rios)

APCEF/RJ