O Chiru

Era manhã bem cedo quando o guardião acordou e foi até o córrego próximo, admirando ao longe a beleza do rio que os brancos chamam de Amambaí. Ao retornar o que viu lhe deixou aterrorizado. A casa de reza estava em chamas. Começou a gritar e o povo acudiu, mas foi inútil. Rapidamente o fogo tomou conta de tudo, deixando apenas cinzas.
Repetiu-se o que já ocorrera em diversas aldeias Guarani-Kaiowá dos arredores. E o mais grave, o chiru que mantinham sob seus cuidados havia desaparecido. O sumiço do objeto, dádiva dos deuses, colocava toda a gente, os animais, as plantas e tudo mais em perigo. Toda a aldeia se reuniu em torno do que restara da casa de reza. Entoando orações, cantando e dançando, pediram para que o objeto sagrado fosse encontrado.
Adriana chegou exatamente às 07h30 ao seu laboratório no Museu Nacional do Rio do Janeiro, fugindo do trânsito infernal de todas as manhãs. Bandejas e bandejas com conchas e ossos lhe aguardavam. Recentemente descobriram um novo sambaqui em uma praia isolada perto de Araruama. Um sambaqui é um depósito feito por populações pré-históricas comuns ao litoral do Rio de Janeiro. A dieta dessas populações era basicamente constituída de frutos do mar: daí as conchas. A sobrevivência dessas populações dependia tanto desses alimentos que os lugares onde os restos eram depositados eram considerados sagrados. Tanto assim que era onde sepultavam seus mortos: daí os ossos. Nesse dia, antes de preparar o café, o telefone tocou:
- Bom dia, Dra. Adriana. É o inspetor Oswaldo da Federal.
- Bom dia, Oswaldo. Faz tempo que não liga.
- É verdade! Preciso de sua ajuda mais uma vez. Hoje prendemos um traficante de animais silvestres tentando embarcar pra Europa com um carregamento de ovos de tartaruga e outros objetos: algumas penas, hastes de bambu e uma cruz.
- Cruz?
- Por que não vem tomar um café conosco? Aproveita para dar uma olhada nos objetos e nos ajudar a enquadrar o traficante.
Em menos de meia hora Adriana chegou ao escritório da PF no Aeroporto do Galeão. Não quis esperar pelo café.
- Oswaldo, isso não é uma cruz. É um chiru.
- Chiru?
- Não sou uma especialista na matéria, mas é um objeto de adoração de povos originários do Centro-Oeste. A forma de cruz não é o mais importante. O que importa é o material usado, a Cabreúva Vermelha, e o processo como é feito. Um ritual bastante complexo.
Adriana mexeu daqui e dacolá, posicionou as varas formando um suporte e colocou a cruz sobre o apoio. O chiru estava montado para admiração de Oswaldo.
- Vocês sabem de onde veio esse sujeito?
- Ele disse que veio de Campo Grande. Recebeu esse material de uma pessoa que não conhece. Pegou um voo até Campinas, veio para o Rio e pretendia ir para Lisboa. O pessoal da alfândega ficou desconfiado e abriu a caixa onde encontrou o material. Tudo muito incomum, pois seria mais fácil o sujeito sair de Guarulhos ou mesmo de Campinas. Foi muita sorte prendê-lo.
- Sorte? Talvez não.
- Como assim?
- Talvez não tenha sido o homem quem escolheu fazer esse caminho. Talvez o chiru tenha decidido por ele.
- Por favor, Adriana, explique melhor.
- Segundo a tradição, o chiru tem certa vontade própria. Um indígena diria que o chiru trouxe o homem até aqui. Possivelmente para encontrar você, a mim ou mais alguém.
- Está brincando comigo? Você não acredita mesmo nisso.
- Não sei, mas tenho muito respeito pelas crenças. Precisamos ter a mente aberta para perceber a verdade onde aparentemente só há fantasia. O que posso dizer com certeza é que esse objeto está fazendo muita falta para alguém. É um objeto sagrado e sua perda pode trazer muita desgraça para aqueles que deveriam guardá-lo. É preciso devolvê-lo aos donos.
- Quem seriam?
- Alguma comunidade Guarani-Kaiowá. Provavelmente do Mato Grosso do Sul, mas também pode ter vindo do Paraguai.
- Bem, não temos como devolvê-lo. É prova de crime.
- Oswaldo, quem adquiriu esse objeto sabe bem do que se trata. É muito antigo e valioso. Com certeza, outros deles serão roubados. O que é um desastre para as comunidades que os guardam. E, talvez, uma nova modalidade de contrabando.
- Bem, vamos até o delegado Paranhos e você explica para ele.
- Dra., o que está me pedindo é um tanto delicado.
- Paranhos, vocês já têm provas suficientes para trancar o sujeito. Enquanto isso, muita gente pode ser prejudicada pelo roubo dos chirus.
A contragosto, Paranhos aceitou.
- Façamos assim: Oswaldo, você acompanha a Dra. até Campo Grande. Entrarei em contato com o titular e informo que estará lá para investigar o contrabando do material silvestre. Evite falar sobre o objeto.
- Dra. Adriana, não acredito em muito do que contou. Em consideração à atenção que sempre nos dá, confiarei que resolva essa situação sem nos trazer maiores problemas.
Na manhã do dia seguinte embarcaram no avião que os levaria até Campo Grande. Para trás ficaram o laboratório, os ossos e as conchas.
- Oswaldo, precisamos ir imediatamente para Dourados.
- Dourados, como assim? O traficante recebeu a encomenda em Campo Grande. Provavelmente é de algum grupo conhecido. Precisamos falar com a autoridade para saber se já não identificaram os envolvidos.
- Acha mesmo que o Paranhos permitiu que viéssemos para procurar o delegado? Minha intuição diz que a origem desse objeto está em Dourados, a maior concentração de povos originários do planeta. Creio que sei quem poderá dizer de onde o chiru veio.
- Novamente você e sua intuição. Sabe onde está querendo nos meter? Dourados é um panelão fervente, onde não falta é encrenca, a maioria resolvida na bala.
- Por isso mesmo creio que é lá o nosso destino.
- Professora, que prazer em revê-la. Nem acreditei quando recebi sua mensagem. E, claro, fiquei muito curioso de saber qual motivo faria a respeitada Dra. Adriana largar suas conchas e se aventurar na longínqua Dourados?
Renato fora excelente aluno. Apaixonado pela cultura dos povos originários, assim que formado rumou para Mato Grosso do Sul onde construiu sua vida, trabalhando com ONGs que atuam na região.
- Deixa de bobagem, Renato. Tenho mais tempo de mato que você. Também fico contente em vê-lo. Esse é o Oswaldo.
- Tudo bem, Oswaldo? Sejam bem-vindos. Mas, diga lá Dra., em que posso ajudá-la?
- Preciso saber a procedência de um objeto. Creio que possa pertencer à alguma comunidade indígena da região.
Ao ver o chiru, Renato não escondeu sua preocupação.
- Por favor, guarde o chiru. Depois de descansarem um pouco, iremos para minha casa onde será mais seguro conversarmos.
Na casa de Renato os esperava outro sujeito. Era um indígena de aparência comum, já de uma certa idade, baixo, cabelo bem escuro e vasto, em trajes comuns e portando discretos colares de penas. Seu olhar era marcante. Vago, ao mesmo tempo profundo, de quem parece distante enquanto lhe escaneia por dentro.
- Esse é Ñanderu Inácio. Ele é xamã na Tekoha Puelito Kwe em Tacuru. Sempre colabora conosco e é de total confiança. Por favor, Dra. Adriana, mostre o que nos trouxe.
O rosto de Inácio se iluminou ao ver o chiru.
- Sabe dizer de onde é?
- Sim. Veio de uma aldeia na Tekoha Taquara em Juti. Lugar bem isolado; perigoso também. Não faz muito tempo a aldeia foi atacada. Queimaram a casa de reza e levaram o chiru. Reconstruíram a casa de reza, mas sem o chiru o lugar fica sem alma.
- Dra., disse Renato, essa região é muito violenta. O local é reconhecido como Terra Indígena não é de agora, mas é grande a presença de fazendeiros e seguranças armados. Já ocorreram muitas mortes por lá. A mais conhecida foi a do cacique Marcos Verón.
- Muitos dos fazendeiros não são nem daqui, completou Inácio. A gente nem sabe quem são, mas é só mexerem com um mourão deles e aparece polícia, guarda nacional, exército... O que pretendem fazer com o chiru?
- Devolver, respondeu Adriana.
Oswaldo, que já estava incomodado, ficou tiririca.
- Como assim devolver? Não basta deixar aqui com Renato e Inácio?
- Não! O chiru nos trouxe até aqui. Tenho certeza de que precisamos ir adiante.
- A Dra. tem razão, Inácio interviu. Sinto que o chiru quer que vocês o levem até a aldeia. É missão de vocês. Podemos ir de carro até Juti. Depois, seguimos de barco pelo Rio Amambaí até perto da aldeia. Ainda tem um trecho de terra que faremos a pé.
A viagem de carro ocorreu sem problemas. Em um ancoradouro escondido, perto de Juti, pegaram uma pequena lancha e seguiram rumo à aldeia. Iam apenas Adriana, Oswaldo e Inácio. Renato voltou para Dourados.
Inácio alertou que a partir daí precisavam ter muito cuidado e Oswaldo mostrou a pistola que usava. Inácio não usava arma para prevenir que alguém alegasse que estava procurando confusão. Adriana perguntou se teria mais uma arma.
- Uma espingarda debaixo da lona. A Dra. já atirou antes?
- Ainda não, mas se for preciso...
Depois de breves orientações a arma voltou para o fundo do barco.
Após navegarem uns quarenta minutos, Inácio deu o alerta. Em direção a eles se aproximava um barco com quatro homens, dois deles armados.
- Bom dia!, saudou o homem que comandava o grupo. O que os amigos estão fazendo perdidos nesse fim de mundo?
- Dando um passeio, tentando pescar alguma coisa, disse Oswaldo.
- Nessa época? Não se pesca nada por aqui.
- Mas é assim mesmo. A gente tira férias quando dá. Quem sabe os peixes nos esperaram.
- E esse bugre que está com vocês, também está de férias?
Inácio encarou os quatro com seu olhar profundo, mas permaneceu em silêncio.
- É nosso guia e nos ajuda com o barco. E os amigos? São daqui mesmo?
- Somos contratados de uma fazenda que uns índios invadiram. Estamos esperando ordem para acabar logo com essa bagunça. Mas, não estou vendo o material de pesca de vocês. Podemos subir no barco e ver se estão com o equipamento certo?
Oswaldo, já cheio daquela conversa e antes que alguém fizesse alguma graça, exibiu o distintivo da PF e colocou a mão para trás, mostrando que estava armado.
- Ô, doutor! Por que não disse logo? O senhor desculpa pelo nosso jeito. É que ficamos preocupados que alguém se perca por aqui. Aconselho que voltem, pois aqui está muito perigoso. Principalmente com esse índio aí. Esse povo é muito traiçoeiro.
Os quatro seguiram em frente. Oswaldo ficou irritado por ter se identificado. A presença de um federal na região chamava atenção, principalmente um que não se apresentara ao delegado titular.
O fim da viagem se deu sem novidades. Mais meia hora e Inácio encostou o barco em um pequeno areal. Na praia lhes esperavam um grupo de três indígenas que lhes acompanhariam até a aldeia que não estava longe.
A aldeia era formada por um grande descampado com várias construções. Uma grande oca feita de troncos e coberta de palha se destacava. Adriana confidenciou para Oswaldo que aquela deveria ser a nova casa de reza.
Muita gente estava ali reunida. Cantavam, dançavam e tomavam a chicha. Homens, mulheres e crianças. O grupo parou e os guerreiros se juntaram aos demais.
Um homem veio ao encontro dos três. Jovem ainda, forte, rosto pintado. Usava um cocar onde estavam misturadas penas verdes, amarelas e azuis. Chocalhava uma mbaraka. O choque das sementes com a cuia produzia um som ritmado e intenso.
Inácio apresentou Ñanderu Aurelino, xamã da Tekoha Taquara.
Aurelino conduziu Adriana até em frente da casa de reza e pediu que abrisse a caixa. Quando o povo viu o conteúdo, a comoção foi geral. Os cantos se intensificaram enquanto Aurelino montava o suporte onde o chiru seria colocado. Com o chiru de volta ao seu lugar, o xamã começou a cantar o mboranei puku. A reza durou horas e horas a fio. A cada frase dita, os demais repetiam. Inácio se juntara a eles.
Adriana e Oswaldo encontraram um lugar para se sentar enquanto observavam e tomavam a chicha. Estavam cansados e sonolentos quando Inácio e Aurelino vieram ter com eles. Este estava visivelmente emocionado.
- Hoje é um dia de grande alegria. Quando Inácio nos avisou de vocês, convocamos o Aty Guasu, o Grande Conselho. Vieram ñanderus de diversos tekoha, até irmãos do Paraguai. Também as guerreiras reuniram o Kuñangue Aty Gasu. Ficamos aqui rezando para que nada de mal lhes acontecesse no caminho.
- O chiru que trouxeram é muito especial. Não foi feito pelos Kaiowá. É um dos que restaram daqueles que o grande avô Ñande Ru deixou antes de subir aos céus. Seu desaparecimento causou muita tristeza e preocupação. Um dos irmãos queimou a casa de reza e levou o chiru. Entregou a um missionário que disse que era a feitiçaria que estava causando doença na aldeia. Garantiu que ao destruir o chiru o mal acabaria.
- Tinha é vendido o objeto para um comprador no exterior, intercedeu Osvaldo.
- Os Kaiowá cuidam para que a terra não seja destruída. Os chirus ajudam na missão. Quando não são bem cuidados, o mal pode levar a muitas desgraças: queimadas, os animais e peixes desaparecem, os homens ficam violentos e as mulheres e crianças ficam doentes. Tudo isso já está acontecendo. A volta do chiru é muito importante para que os Kaiowá cumpram sua missão. Onde tem Kaiowá o mundo está em equilíbrio.
Ñandesi Alda, mulher guerreira, rezadeira e liderança no grande conselho das mulheres, veio chamar Adriana para se juntar às demais.
Oswaldo já não se aguentava em pé e Aurelino o conduziu para uma rede já preparada para que descansasse um pouco. Caiu em sono profundo.
Ao acordar se viu sozinho no meio da floresta. Uma mata densa, com árvores gigantescas, das quais não se podia ver a copa. No meio da mata, diferentes animais, enormes macacos e quatis, com olhar brilhante e atento, observavam aquele homem em meio deles. Não era um Kaiowá, quem seria? Também corujas, papagaios e araras. Estava muito escuro e Oswaldo perdeu o rumo da aldeia.
De repente, do meio da mata, surgiu uma enorme onça. O Jaguaretê-Avá, o Homem-Onça, parou desafiadoramente diante de Oswaldo. Seu corpo era vermelho e seus olhos verdes reluziam intensamente. O policial se deu conta que o incrível animal estava faminto, com fome de gente. Percebeu também que não poderia enfrentar um animal daqueles.
Sem saber de onde vinha, começou a ouvir um canto estranho. Nunca ouvira algo assim. A princípio era lento e parecia vir de muito longe. Aos poucos foi aumentando, as mbarakas tocando cada vez mais aceleradas, e as vozes dos xamãs acabaram por ocupar todo o espaço.
Os braços de Oswaldo começaram a mudar de cor. Assumiram um vermelho intenso onde se podia ver as veias pulsando forte no mesmo ritmo das mbarakas. As árvores também mudaram de cor. As veias do homem, das árvores e dos animais começam a pulsar juntas. Até que todos os seres se tornaram um só. O Homem-Onça desaparecera.
Oswaldo é um homem bom e integro, mas que foi forjado pelo medo e preocupações. Naquele momento, sozinho em meio à floresta e seus seres, se sentia tão leve como se não estivesse mais em seu próprio corpo. Seu coração foi acalmando e, relaxado, voltou a dormir. Um sono tão profundo quanto suave. Ao acordar estava novamente na aldeia junto aos Kaiowás. Uma sensação de paz plena lhe tomara inteiramente.
FIM.

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Inspiração

O Mato Grosso do Sul possui uma das maiores concentrações de povos originários. Entre eles os Guarani-Kaiowá. Povo de cultura riquíssima, vive ameaçado pela destruição dos seus territórios e a pressão do agronegócio. Muitas vezes de forma violenta. Se também é papel dos brancos denunciar pelo que passam os Kaiowá, tentei aqui fazer a minha parte.

Sobre a obra

Trata-se de obra ficcional na qual um policial e uma antropóloga tentam devolver um objeto sagrado que fora roubado. Essa missão implica em superar várias dificuldades até chegar ao seu destino. É também um processo de transformação pessoal. A obra procura ainda apresentar alguns aspectos da cultura e das condições em que vivem os Guarani-Kaiowá.

Sobre o autor

Entrei na CAIXA em 1998. Sou carioca e me mudei para Campo Grande em 2015. Procuro, com minhas obras, apresentar um pouco da vida, dos lugares e da cultura do Mato Grosso do Sul. Considero-me um escritor de ocasião. O FENAE Talentos é um grande incentivo para superar a preguiça e escrever um pouco.

Autor(a): PAULO ROBERTO ALVES MOREIRA DA CONCEICAO (Paulo Conceição)

APCEF/MS

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