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A Democracia é do Polvo
Às vezes eu até tento fugir, como agora, mas aí as coisas simplesmente não rolam, sabe? Eu tentei começar a escrever e ao mesmo tempo meus cérebros confabularam entre si e pelo menos um deles decidiu procrastinar, mas a maioria decidiu que eu deveria mexer meus tentáculos e escrever.
Se você que estiver lendo o parágrafo acima não fizer parte do meu povo, provavelmente vai estar confuso, decidindo se eu sou doida ou algo assim. Se você for um bípede e integrar a espécie humana então, com certeza vai estar repleto ou repleta de sentimentos controversos e em meio a um debate de ideias protagonizadas pelo seu cérebro único. Então vou deixar as coisas mais fáceis de entender: eu sou uma C’thaliana, sou do planeta que os humanos chamam de Terra, mas eu vivo na água. Um C’thaliano é uma espécie de polvo de cerca de dois metros de altura e sete metros de diâmetro de um tentáculo a outro. Temos nove cérebros sim, da mesma forma que todos os tipos de polvos, temos um cérebro “central” e outros oito em cada tentáculo. Não nos confunda com os polvos que vocês encontram facilmente nos oceanos, estes ainda não se desenvolveram para formar uma sociedade complexa. Nós seríamos os correspondentes ao homo sapiens entre os diversos tipos polvos, dito de uma forma que os humanos compreendam melhor.
Mas talvez você esteja se perguntando por que estou escrevendo isso, e me sinto na necessidade de explicar. Eu poderia estar nadando nas profundezas do Atlântico, me fazendo passar por um polvo fêmea despreocupado e que ignora o coro dos nove cérebros ativamente opinando, mas certa feita decidi que eu seria escritora e aí dei vazão a algumas ideias que me atormentavam ou encantavam. Eu brinquei mais acima que uso meus tentáculos para escrever, mas foi só charme, na verdade uso apenas meus cérebros para registrar os pensamentos em um arquivo. Temos uma capacidade telepática que desenvolvemos naturalmente e a combinamos com nossa tecnologia para que esta receba e processe nossos comandos telepáticos. Em suma, eu tenho um computador que lê meus comandos cerebrais e processa um texto. Este em específico poderia ser um diário, uma carta aberta a outras espécies ou algo assim, mas a verdade é que estou participando de um edital que vai escolher quais textos vão compor uma obra sobre algo que nossa sociedade considera fundamental para o bem comum. Na minha concepção os C’thalianos avançaram por terem adotado a Democracia. Viu só? Já comecei a falar sobre processos de escolha e decisão em grupo. Porque tudo se resume a isso no momento que decidimos viver em sociedade (olha aí a decisão aparecendo de novo) e aparece a necessidade ou desejo de que construções colaborativas como uma casa comunal, uma usina de energia ou mesmo um edital que irá se transformar em um livro. É nesses momentos que algum tipo de decisão coletiva ou democracia irá surgir.
Outra motivação para escrever este texto é que sou uma historiadora. Acredito firmemente que um polvo é fruto do seu próprio tempo, e que precisamos entender o que nossos antepassados enfrentaram e como decidiram resolver seus problemas. É assim que poderemos vencer ciclos onde decisões foram tomadas e não foram as melhores para lidar com alguma crise, e é assim que aprendemos a reconhecer os padrões certos e eficazes. E receio ter acompanhado muitos destes ciclos, pois somos longevos. Nossa bioengenharia conseguiu incorporar melhorias baseadas nos tardígrados, aqueles seres minúsculos que são extremamente resistentes, praticamente indestrutíveis, aguentam temperaturas extremas, níveis altos de radiação, desidratação e até mesmo sobrevivem no vácuo. Possuímos tecnologia e uma certa predisposição genética que explicarei mais à frente neste relato, e estes aperfeiçoamentos permitem que a morte só venha a nós de forma prematura devido a algum tipo de trauma físico, seja ele por acidente ou assassinato.
É verdade que nossa capacidade telepática é limitada quanto ao seu alcance, então a partir da distância que conseguimos nos comunicar e sentir nossos irmãos e irmãs é que organizamos nossas comunidades. Tomo minhas decisões pensando no que seria melhor para mil quinhentos e setenta e sete C’thalianos ao meu redor. Consigo sentir quando algum deles está triste ou em agonia, quando estão felizes a sua alegria me contagia e quando precisam tomar alguma decisão coletiva instantaneamente sou consultada.
Valorizamos o instinto coletivo, a necessidade de ser útil para a sociedade. Tentamos distribuir os recursos de forma igualitária e o trabalho também, atividades não faltam em todas as áreas, seja no cultivo dos vegetais que comemos, na Educação, na Ciência e Tecnologia, na Construção Civil, na Segurança, na Saúde, e em tudo o mais que for necessário, sempre há demanda. É verdade que de vez em quando alguém decide trabalhar pouco ou não contribuir em nada, mas naturalmente se apresenta um distanciamento com os demais, uma espécie de desagregação misturada com vergonha e desinteresse mútuo. Nossos especialistas em psicologia buscam ajudar, muitas vezes obtendo sucesso na reintegração daquele membro em sua comunidade de origem, mas nem sempre isso é possível.
Nestes casos a liberdade individual é respeitada, se mesmo que o C’thaliano busque se isolar e precise de ajuda os demais virão em seu socorro, mas um clima de tristeza se instaura em todos os envolvidos e é possível que o indivíduo escolha o exílio. Por algum motivo tal tristeza inibe a capacidade telepática de quem escolhe se isolar, e este naturalmente perde a capacidade de expressar seu voto e suas opiniões. Alguns voltam sozinhos para a sociedade assim que retornam a exercer atividades para o coletivo, raros são os que preferem o isolamento definitivo.
Possuímos um código de leis básicas, todas votadas e escolhidas diretamente. Quando uma destas leis é violada e um réu é condenado, este é privado da vivência com sua comunidade original e de sua liberdade de ir e vir, mas é levado para uma comunidade remota de educadores e psicólogos que investirão pesado em sua reabilitação. Nosso sistema penal e carcerário recebe ainda mais investimentos que o sistema educacional tradicional. Depois de muita leitura, trabalho e aceitação a maioria dos que cometeram crimes recebem o direito de demonstrar que podem ser reintegrados em suas comunidades. Acreditamos que o perdão é o ato mais nobre que podemos oferecer e que se estes membros da comunidade falharam em ser benéficos a ela é porque em algum momento a comunidade não investiu o suficiente em Educação.
C’thalianos são discretos, mais uma característica que precisou ser decidida não só pelos nossos nove cérebros de cada indivíduo, mas também de forma coletiva entre todo o nosso povo. Funciona assim: é uma questão de motivação que pode ser desencadeada por um conflito ou um desejo e que cria uma necessidade de decisão, mas como somos seres sociais esta tal decisão precisa ser tomada em conjunto e aí entra a necessidade de uma organização. Se você pensou em democracia, pensou certo, mas nossas capacidades telepáticas auxiliam no processo. Chamamos a nossa democracia de Democracia Total, ela é direta, todos nós votamos em plebiscitos para resolver os problemas e olha, tem dado certo. Uma de nossas decisões foi a de que nossa Educação seria priorizada e nossas crianças são instigadas a questionar e a pesquisar. Quando isso se tornou massivo é que nossas decisões em conjunto subiram de nível.
Sabendo disso, em dado momento de nossa história decidimos por não interferir na evolução dos humanos. Poderíamos nos apresentar como deuses e ensiná-los nossa tecnologia e com isso vivermos em paz e às mil maravilhas? Sim, mas tudo indicava que eles estavam em um estágio de sabedoria em que eles ou se tornariam dependentes dos C’thalianos e não compreenderiam que não queremos ser adorados como deuses, ou que alguns de nós se corromperiam com esta adoração. Ou ainda pior, que a falta de sabedoria dos humanos e o poder ganho de forma muito rápida os corromperia.
Percebo que a democracia, embora poderosa, é um sistema frágil e delicado. Está sujeita à empatia entre os votantes, a experiência e sabedoria, a acesso a conhecimento e a verificação de fatos. Um dos episódios que mais trouxe tristezas em minha comunidade foi gerado pelo mau uso de algo que na maior parte do tempo nos beneficia. Nós, C’thalianos, assim como os demais polvos, podemos editar nosso DNA para auxiliar em nossa adaptação em diferentes ambientes aquáticos, com diferentes PHs, temperaturas e mesmo para resistir a níveis de poluição e radiação. Um de nós conseguiu uma alteração incomum em seu DNA, que o permitiu fazer sugestões telepáticas aos demais membros da comunidade. No início pensamos que era um eco telepático, ou uma interferência sem muita importância. Por muito tempo pensávamos que estávamos decidimos normalmente sobre questões comerciais e produtivas, sempre buscando concentrar os esforços para distribuir alimentos, educação, moradia, saúde e lazer de forma equânime. Anos se passaram e um entre nós se beneficiava às custas dos demais, mas isso acontecia com base nas escolhas da maioria. Recursos para o centro médico começaram a escassear e alguns de nossos anciões morreram sem o devido cuidado, antes do tempo. Alguns C’thalianos daquela comunidade já comiam menos e uma pesquisa foi iniciada para entender se algum fator ambiental havia mudado para que os alimentos não chegassem naqueles indivíduos.
Nada era conclusivo, a vida continuava naquela comunidade e os problemas já superados em geral voltavam a ocorrer. Exceto para Garrid, ele prosperava e recebia tudo de todos. Ninguém se lembrava de tê-lo elegido como líder ou representante, ele não era um herói ou alguém que trazia benefícios extras para a comunidade, ainda assim Garrid começava a ampliar seus domínios. Outros C’thalianos entregavam suas posses e faziam favores a ele sem receber algo substancial em troca.
Alguns viajantes entraram no raio de influência das emanações telepáticas de Garrid e estranharam a confusão mental que dominava aquela área, não se submetendo aos desígnios do C’thaliano que plantava mentiras nas mentes alheias. Foi quando irmãos lutaram contra irmãos depois de muito tempo de paz e colaboração entre as comunidades. Garrid convenceu sua gente a pegar em armas e eliminar os ditos estrangeiros, criou uma noção de patriotismo distorcido onde a ideia era que os membros daquela comunidade tinham mais valor que o demais C’thalianos e de que aqueles estrangeiros eram criminosos.
Os membros da outra comunidade tentaram avisar que Garrid alterava o fluxo telepático entre eles e inseria ou removia informações, influenciando nas decisões. Garrid então levou seu plano adiante sem misericórdia e os estrangeiros sumiram em sua parte do Atlântico. As incursões de outros C’thalianos ainda eram frequentes e vez ou outra um viajante mais sensível percebia a má fé de Garrid e a situação se repetia. Quando Garrid tornou-se ainda mais poderoso, convenceu sua comunidade a construir barreiras e com isso evitar a passagem de alguém de fora que o denunciasse.
O excesso de confiança de Garrid subestimou as demais comunidades, que perceberam as barreiras e organização de milícias. No início sanções comerciais foram impostas e a comunidade inteira sofreu com isso. Garrid partiu para o ataque e enviou seus asseclas patriotas para saquear outras comunidades e uma guerra se iniciou, manchando o histórico de paz de séculos entre os C’thalianos. Guerras nunca terminam bem ou tem vencedores, basta dizer que aquela comunidade lutou até o final defendendo o que pensavam ser sua superioridade, mas em realidade se tratava dos privilégios de Garrid.
O trapaceiro foi capturado e seus padrões de interferência mental foram descobertos e categorizados por cientistas. Desde então há uma disciplina obrigatória nas escolas C’thalianas que trata de como identificar e evitar a propagação destas distorções e mentiras.
É nas crises que aprendemos, mesmo que de forma traumática. No início do desenvolvimento de nossa tecnologia não sabíamos o que fazer com os resíduos químicos de nossas produções, ou seja, não sabíamos reciclar e viver de forma sustentável. Hoje usamos o hidrogênio como matriz energética base e esta foi uma decisão conjunta em plebiscito mental. Usamos uma rede de amplificadores de sinais telepáticos quando decisões massivas de C’thalianos são necessárias. Desde este incidente com Garrid, um movimento foi criado para trazer a conscientização de que somos uma mesma espécie e que deveríamos decidir assuntos globais de forma global, ao menos o que for de nossa alçada, e preservar os mares definitivamente é de nosso interesse.
O que me recorda em observar que se você é um humano ou humana e está lendo esta descrição sobre o meu povo e sobre os aspectos democráticos que nos acompanham, isto se deve a um de dois motivos. A Primeira hipótese recai em sua sociedade já se encontrar em um patamar de evolução organizacional e sabedoria propícios a nos mostrarmos para vocês. A segunda possibilidade é que nossas projeções mudaram drasticamente e vocês estão destruindo o planeta em um ritmo maior do que poderemos tolerar e votamos por interferir em sua evolução como espécie, sinceramente espero que a primeira opção seja verdadeira.
Como qualquer espécie que se aventura pela democracia, estivemos sujeitos a flertes e tropeços com o autoritarismo e consequentes recuos para a democracia. Sei que é uma constante na própria história dos seres humanos e ficamos sabendo que se apresenta na história de outras raças em outros planetas, por isso decidimos ficar na nossa e evitar toda uma confusão.
Hoje possuímos tecnologia suficiente para extrapolar nossas viagens até mesmo para galáxias distantes e tomamos conhecimento da existência de civilizações lá fora não só com tecnologia superior, mas com insaciável sede de conquistas. Percebemos que estabelecer um contato com os humanos no nosso planeta antes de eles resolverem suas questões mais básicas não iria dar certo. Houve um plebiscito específico para isso e embora os humanos sejam criaturas com um potencial fantástico, infelizmente ainda são muito primitivos e poluidores, destruindo seu único planeta. Depois de séculos ainda acredito que nossa decisão em conjunto foi a mais acertada. De muitas maneiras eu sou fã da cultura humana, eu gosto de jazz, de samba e de rock, alguns seriados e filmes são obras primas e isso influencia na maneira como escrevo, mas é fato que vivem por aí seres humanos muito escrotos. E é por isso que agradeço por não precisar fazer contato ainda.
Espero que um dia os seres humanos usem suas redes sociais ou algo do tipo de uma forma mais eficiente para decidir as coisas em conjunto, espalhar conhecimento e evolução de pensamento. Enquanto isso eu escrevo e decido a todo momento o que fazer com as palavras, sonhando às vezes sozinha e às vezes em sociedade.
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Inspiração
Queria escrever sobre democracia, mas de uma forma criativa e com a voz de alguma criatura não-humana mas que vivesse entre nós.
Sobre a obra
Uma reflexão sobre polvos, criaturas fascinantes com múltiplos cérebros, hábitos e inteligência intrigantes. Além de uma homenagem aos gêneros literários da ficção científica e do terror, mesclando com ideias de formas democráticas de governo.
É um conto onde as profundezas dos oceanos nos oferecem ideias profundas.
Sobre o autor
Marcelo Laserra respira tecnologia desde jovem, mas é apaixonado pelos tempos antigos. Comunga com bits e algoritmos enquanto trabalha com Tecnologia da Informação e é formado em História. Marcelo é um leitor voraz que decidiu dar um passo adiante e escrever, participa de várias coletâneas de contos e escreveu seu primeiro romance "Sob a Égide".
Autor(a): MARCELO MILTON LASERRA (Marcelo Laserra)
APCEF/SC