Tarde em Alcinópolis

A combinação de um sol abrasador com um calor sufocante pairava sobre Alcinópolis naquele domingo. Já eram 12h20 e apenas eu, Marileda, minha esposa, e um casal de amigos, Zé e Brigete, estávamos junto ao prédio da prefeitura aguardando o transporte que nos levaria para visitar a Serra de Bom Jardim. Começamos a duvidar ser o lugar certo para o encontro. Entretanto, não tínhamos com quem confirmar, pois a cidade estava completamente deserta. O horário de saída do passeio estava marcado para 12h30.
Eis que surge, por volta das 12h40, uma jovem em uma vespa. Encostou a lambreta no meio fio e ficou distraída olhando o celular. Ficamos na expectativa de algo mais acontecer. Nada. Marileda, a mais destemida, e a mais ansiosa, foi até a moça e perguntou se também aguardava o transporte.
- Sim, marcam 12h30, mas sai mesmo 13h. O pessoal já sabe e só chega em cima da hora.
Não passaram mais que cinco minutos e a praça estava lotada. Ao completar 12h55, um micro-ônibus encostou. Um ônibus escolar. Possuía pneus altos e largos, próprio para transportar estudantes na zona rural. Ainda assim, era um ônibus escolar. Uma primeira amostra de como o turismo na região, apesar dos esforços das autoridades e da população, ainda é precário. Dois guias, Nahur e Furquim, a assessora de comunicação da prefeitura e o estagiário, que acumulava o papel de fotógrafo, eram nossos anfitriões. Em prefeitura de município pequeno, os funcionários acabam por assumir diversos encargos. E esses se saem muito bem no papel de guias turísticos.
Estávamos um pouco ansiosos porque para participar da visita é preciso agendar. Não deu tempo, pois decidimos fazer o passeio na noite anterior. A assessora de comunicação era a responsável pela lista de presença. Conferiu o nome dos inscritos até completar a lista.
- E vocês, fizeram a reserva? Não estão na lista.
- Claro que fizemos.
Pura conversa.
- Não se preocupem, o que não falta é lugar. Precisamos das informações para constar nos registros da prefeitura e avaliar como está a divulgação e receptividade da comunicação.
A nossa preocupação também vinha do fato que os parques são fechados para evitar depredadores. Com cadeados mesmo. Somente alguns guias cadastrados têm as chaves de acesso. Outra demonstração da precariedade da conservação dos parques.
Furquim informou que a prefeitura decidiu programar esses passeios para conscientizar a população da beleza e importância de conservar os sítios. Porém, a iniciativa tomou um rumo inesperado. Não eram muitos cidadãos alcinopolenses que se interessavam pelo passeio. Entretanto, a programação fez sucesso com os turistas que visitam a região. Um passeio gratuito para os visitantes, com excelentes guias, simpáticos, dedicados, experientes e conhecedores da região. Um achado, sem dúvida. Quase todos os presentes eram turistas.
Então, pé na estrada!
O trajeto na cidade foi de poucos metros e o ônibus enveredou por uma estrada não asfaltada. Aproximadamente quarenta e cinco quilômetros de terra batida e mais de uma hora de viagem nos aguardavam até o destino. O forte calor, a poeira da estrada e ônibus sem ar-condicionado formavam um conjunto que transformava o passeio em esporte radical. Quilômetros e quilômetros de pastagem. Com a forte estiagem os pastos se encontram totalmente ressecados. Pouco gado e as reses que permaneceram se encontram bem magras. Com a secura, quanto mais rápido o pecuarista vender o gado, menor é o prejuízo. Porém, o pior ainda estava por vir. Logo que começamos a viagem descobrimos que estávamos sem água. Eu sou daqueles que basta ir ao centro de Campo Grande e carrego minha garrafa térmica dentro da mochila. E, simplesmente, esqueci. Só nos demos conta disso quando, apenas alguns quilômetros percorridos, Marileda pediu para pegar a garrafa com água. Que garrafa? A agonia tomou conta.
- Nessas condições não conseguiremos fazer o passeio, reclamou Marileda, a ansiedade já tomando conta.
Ainda tentei um artifício:
- Marileda, pare de pensar na água que é melhor.
Foi como se tivesse apertado um botão para Marileda não parar mais de só falar em água. O que agoniava ainda mais é que todos os demais dentro do ônibus trouxeram sua água. A ansiedade virou agonia, pois o calor estava insuportável. Quando chegamos ao Primeiro destino estávamos certos de que não poderíamos continuar. E então, surgiu em meio a agonia e perturbação, a voz de Turquim:
- Alguém quer água.
Poucas vezes um convite soou tão bem para todos os presentes. De uma caminhonete de apoio, surgiu um enorme barril de metal onde brotava água geladinha, formando uma enorme fila. Depois do desabafo, Furquim riu da gente e confirmou que já está preparado porque o que não falta é gente que esquece de trazer água. Um item básico, principalmente nas condições vigentes, que as pessoas simplesmente esquecem. Mais um ponto para os guias. E continuou:
- Fiquem tranquilos, os lugares que visitaremos possuem boa cobertura vegetal e, por ficarem no alto da serra, a temperatura é bem mais amena.
Alcinópolis possui por volta de quatro mil quilômetros quadrados onde vivem um pouco mais de cinco mil pessoas. A economia do município é voltada para a pecuária. Como dissemos antes, o percurso de mais de quarenta quilômetros do trajeto se deu, quase todo o tempo, em meio a fazendas. A economia do município vive uma contradição que se reproduz em muitos lugares. A maioria dos pecuaristas não vive na região. Sendo a grande maioria de São Paulo. Assim, da riqueza gerada com a pecuária, uma pequena parte fica no município. Assim sendo, Alcinópolis é uma cidade rica, mas a maior parte de sua renda é levada para outras regiões. Por outro lado, os empregos gerados com a pecuária não são de grande valor agregado e produzem pouca renda para a população. O desenvolvimento do turismo oferece ao município a chance de gerar uma renda maior e que permaneça na própria cidade, ao mesmo tempo que permite criar empregos mais qualificados e de maior renda. E, por fim, melhorar a economia local com o surgimento de pousadas, restaurantes etc.
Em meio uma imensidão de planícies, se eleva abruptamente a Serra de Bom Jardim, gerando uma mudança brusca na paisagem. Deixa pra trás uma vegetação mais rala, típica do serrado, mas quase toda tomada pelo pasto ressequido, para uma mata exuberante que contorna altos morros em forma de chapéu. A serra, com uma extensão de 6.121 hectares, não é tão grande assim, se comparada com outros lugares. Apesar disso, é um ambiente com flora e fauna diversificadas. Veados, tamanduás, lobinhos, antas, variadas espécies de serpentes, além de grande variedade de aves. Além disso, o lugar oferece um ambiente favorável a diversas modalidades de ecoturismo: cavalgadas, trekking, trilhas, esportes radicais e outros, tudo ainda bem selvagem. Ou seja, a potencialidade turística da região é enorme.
É bom que se diga que a Serra de Bom Jardim é apenas uma das várias opções de ecoturismo no município. Entre os mais conhecidos estão O Morro da Tijela, o Parque Estadual das Nascentes do Rio Taquari, o Sítio Arqueológico da Gruta do Pitoco, Sítio Arqueológico Arco de Pedra, o Salto da Macaúba, o Salto do Bonito, o Salto da Limeira e o Sítio Arqueológico Serra do Barro Branco.
Na Serra de Bom Jardim, o Parque Natural Municipal Templo dos Pilares não é lugar extenso e é acessível a quase todas as pessoas. E o espetáculo é deslumbrante. Grandes rochedos que formam estruturas naturais com aspecto pouco comum. Os visitantes transitam livremente por baixos de enormes pilastras. Árvores com raízes monumentais rodeiam as colunas. Uma figura em particular chama a atenção dos visitantes: o Senhor do Templo, uma rocha monumental em forma de um rosto humano com semblante sisudo.
Porém, o mais maravilhoso está por vir. O Templo dos Pilares possui um belíssimo conjunto de figuras e gravuras pré-históricas com enorme variedade de formas. Os desenhos foram feitos em um conjunto rochoso de cores que variam entre o branco e o vermelho. Dados arqueológicos mostram que os povos que produziram os desenhos habitaram a região entre 10 e 15 mil anos atrás. O conjunto é dividido em setores onde os desenhos mostram diferentes funcionalidades. Alguns lugares eram destinados a reuniões dos habitantes, outros parecem ser lugares de culto, outros de habitação. Em um setor dos mais interessantes de todo o conjunto, todos os desenhos reproduzem aspectos universo feminino. O Templo dos Pilares, assim como a Serra do Barro Branco e outros lugares, elevou Alcinópolis à condição de capital Sul-Mato-Grossense de Arte Rupestre. Esses sítios podem não ser tão exuberantes como Lascaux ou Altamira, mas no Templo dos Pilares, as inúmeras formas, difícil identificar todas sem ser especialista, garante aos visitantes um passeio extremamente interessante, além de muito educativo, particularmente para a criançada.
Na verdade, não é muita gente que sabe, o Brasil é um país riquíssimo em arte rupestre. Os sítios mais conhecidos são os do Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí, e o do Parque Nacional do Catimbau em Pernambuco, assim como o de Lagoa Santa, em Minas Gerais. Mas existem muitos outros. O Mato Grosso do Sul também possui diversos sítios arqueológicos com arte rupestre, como é o caso do importante Lajedo de Corumbá. Mas existem outros tão importantes quanto desconhecidos. É o caso da Caverna do Samuka e do Seu Carneiro em Rio Negro e a Caverna Grande do Taboco em Corguinho. A maioria deles são pouco explorados e vedados aos visitantes.
A principal vitrine do Mato Grosso do Sul é o Pantanal, que também é o grande orgulho do seu povo. Com justiça, pois a maior planície alagada do mundo, com seus grandes rios e a enorme biodiversidade, é um dos lugares mais conhecidos do planeta. Como resultado, outros lugares interessantes acabam esquecidos. A imensidão das superfícies planas, seja do Pantanal ou do Serrado, ocupado cada vez mais pelo agronegócio, acabou se tornando a imagem mais conhecida do estado. Entretanto, existem um sem-número de lugares interessantes que fogem dessa imagem. O mais conhecido deles é o balneário de Bonito. Mas existem outros lugares que começam a chamar atenção, como é o caso dos balneários de Jardim, Costa Rica, Rio Negro, e muitos outros, com serras, cachoeiras, flora e flora exuberantes. Entretanto, Alcinópolis, com seu Templo dos Pilares, foge ainda mais do lugar comum.
É preciso dizer que chegamos a Alcinópolis meio que por acaso. Já sabíamos de suas belezas naturais, mas nossa viagem, primeiramente, era restrita a visitar a já citada Costa Rica. Costa Rica fica ao norte do Estado, distante uns 300 quilômetros de Campo Grande. Seu grande atrativo, como dissemos, são os diversos balneários. Trilhas, cachoeiras, piscinas naturais, esportes radicais, com várias opções e com o diferencial que algumas são bem próximas do centro urbano. A cidade vem crescendo rapidamente e o turismo faz parte desse crescimento. Lá encontramos Osvaldo, um velho conhecido. Osvaldo se mudara para Costa Rica em busca de oportunidades de trabalho. E, por feliz coincidência, ele é o responsável pelo hotel onde nos hospedamos. Combinamos um jantar, no próprio hotel, para colocar as novidades em dia. Foi Osvaldo que sugeriu que Alcinópolis seria uma boa opção de passeio. É razoavelmente próximo e com atrativos completamente diferentes de Costa Rica. É possível conhecer a cidade e caso deseje conhecer apenas o Templo dos Pilares, retornar no mesmo dia para Costa Rica, que possui uma boa estrutura de hotelaria. Na verdade, é um pouco exaustivo e Zé, não gosta de viajar de noite. Assim passamos a noite na Pousada dos Pilares. Um lugar simples, mas que oferece o necessário para um bom descanso. Além de poder exercitar a prosa com Edilson, gerente, dono, recepcionista, e que prefere que todos o chamem de Cotonette, seu nome italiano.
O segundo local que visitamos na Serra de Bom Jardim foi a Trilha da Gruta Bonita. O lugar também é de fácil acesso. Para acessar o lugar segue-se uma trilha de baixa dificuldade, mas em meio à mata fechada, onde transitam uma variedade de animais. Pássaros, macacos e outros mamíferos de porte diverso e, também, serpentes. Os guias foram na frente para prevenir o encontro com algum animal mais perigoso. Durante a noite transitam pelo lugar antas e até mesmo onças. A entrada da gruta é formada por uma antessala rochosa monumental. A gruta ainda é pouca explorada, mas dá para entrar e conhecer alguns vestíbulos. A teto da entrada da gruta é muito alto e resgado pelas raízes de árvores enormes que parecem flutuar.
Para finalizar o passeio subimos ao alto na serra para admirar o pôr do sol. A subida exige um pouco mais, pois o caminho é rochoso. Ainda assim é bem acessível. Depois de passar pela mata, formada em sua maioria por plantas resistentes ao calor, deslumbra-se a visão magnífica de todo o vale. É difícil acreditar que chegamos tão alto. O melhor local para visualização é uma rampa rochosa, não muito grande, que avança sobre um abismo imenso. Fica-se sobre uma pequena plataforma que paira no ar. O horizonte é enorme, longe de qualquer coisa que lembre cidade ou povoado. Agora, é só esperar que o sol faça seu espetáculo particular sobre o horizonte encarnado, característico do lugar, formando um jogo de luzes extraordinário. É difícil conter a emoção diante de tamanha beleza.
Resta refazer os quarenta quilômetros de volta ao centro de Alcinópolis. No escuro quase total, o céu encarnado se torna ainda mais impressionante.
Tínhamos vencido um pequeno trecho da estrada chacoalhando no ônibus da prefeitura, quando um dos pneus estoura. O pobre sofrera muito o que dele se exigira e dá mostras do seu cansado. O carro de apoio encosta para avaliar a situação. Os passageiros descem do veículo.
Descer do veículo nos permite ver um céu profundo, totalmente livre da influência das luzes artificiais. Um espetáculo único de bilhões de estrelas e cometas que nos deixa tontos.
Pneu trocado, verificou-se que o problema era mais sério do que aparentava inicialmente. O motorista decidiu arriscar e ao invés de esperar pelo socorro decidiu continuar a viagem.
Assim voltamos para o veículo e tomamos o rumo de volta. Bem devagar, mas sempre em frente. O tempo de viagem dobrou, mas chegamos todos bem. Durante o caminho ainda foi possível identificar algumas antas e lobinhos iniciando sua rotina noturna.
Finda a aventura, retorno à pousada para um lanche frugal, a prosa fácil do Seu Cotonette e um sono pesado e reconfortante. Logo cedo, na estrada de volta à Campo Grande.
Como se encerra uma crônica de viagem? Tem diversos jeitos, mas este aqui é o mais fácil e sincero:
Visite Alcinópolis.

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Inspiração

Gostei de escrever a narrativa de viagem a Alcinópolis por ser cidade pequena, com poucos recursos econômicos e com incrível potencial turísticos. Assim, é uma forma que encontrei para ajudar o desenvolvimento do lugar que tanto gostei.

Sobre a obra

É uma obra de não ficção. Narrativa de viagem ao município de Alcinópolis, explorando os eventos, as pessoas e as belezas naturais do passeio.

Sobre o autor

Entrei na CAIXA em 1998. Sou carioca e me mudei para Campo Grande em 2015. Procuro, com minhas obras, apresentar um pouco da vida, dos lugares e da cultura do Mato Grosso do Sul. Considero-me um escritor de ocasião. O FENAE Talentos é um grande incentivo para superar a preguiça e escrever um pouco.

Autor(a): PAULO ROBERTO ALVES MOREIRA DA CONCEICAO (Paulo Roberto Conceição)

APCEF/MS

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