DESTEMIDA

DESTEMIDA
Ana Maria acordou, levantou-se da rede esfregando um olho e bocejando. Cabelo despenteado. Quem liga? Juntou-se aos sete irmãos em volta do fogão a lenha, tomou café com farinha e foi para a lida na roça. À tardinha tinha banho de rio com toda a meninada dos arredores.
Juntavam-se, dezoito crianças, nadando no rio que margeava o fundo da casa de palha no meio do sertão do Maranhão. Formavam uma Boiúna. Ela era a cabeça, por ser a mais destemida de todos. Ninguém era páreo para ela. Nem menino, nem moço, nem homem nenhum daquela região tão lembrada e tão esquecida por Deus.
Não conheceu o amor na juventude, mas, ainda assim, casou-se com um homem mais velho que ela. Era abastado e violento. Bateu-lhe tanto que um dia fugiu nua, deixando o filho menino para trás. Foi a primeira vez que morreu.
Acolhida pela vizinha que, tremendo, besuntou suas feridas, deu-lhe um vestido, um beiju de tapioca e laranjas num embornal, foi mandada embora às pressas e nunca mais botou os pés naquele lugar. Nem mesmo para rever o filho enfermiço que, acometido de saudades da mãe e apavorado pela maldade do pai, partiu desse mundo dois anos depois. Essa foi sua segunda morte.
Chegou aqui descalça e morta de fome. Mas, corajosa como era, logo arranjou abrigo com uma família que era conhecida da prima da cunhada do vaqueiro da fazenda da madrinha, que foi quem a recomendou. Lavava roupas, olhava menino, pilava arroz, o que precisasse. Viveu com esse povo três meses numa chacarazinha, bem longe da capital.
Um dia foi numa reza. Orou e orou. Pediu forças para continuar. A noite dançou e dançou muito. Ninguém era páreo para ela na dança. Nem menina, nem moça, nem mulher nenhuma daquela região. Na hora de ir embora, uma senhora muito bonita, com um vestido vistoso, acetinado e boca cor de carmim a convidou para conhecer sua casa e lá pousar naquela noite.
Não foi na chacarazinha mais. Nem para buscar os dois vestidos que ficaram para trás. A casa era alegre, cheia de moças. Algumas já não tão moças assim. Umas eram roliças, outras tinham fartos cabelos. Algumas riam alto, alto! Ana Maria comandava as gargalhadas. Outras, perdiam-se em pensamentos e choravam baixinho quando ouviam certas cantigas bonitas no rádio.
A noite dançavam, sentavam-se no colo dos cavalheiros que apareciam para comprar-lhes carinhos e afagos. Vestiam-se bonitas, mostravam-se risonhas, escondiam suas dores e negavam seus amores. Dormiam, enfim e tinham sonos sem sonhos. Melhor assim.
Um dia Ana Maria conheceu Beto. Muito bonito. Nem rico, nem pobre demais. Encantou-se por ela, por aquela mulher tempestade. Pelo riso claro e nada de medo na
face e nos olhos. Apaixonaram-se. Foi-se embora beijando a bochecha de cada amiga que lá deixou. Não morreu dessa vez.
Teve uma menina triste. Estabeleceu-se na cidade em uma casa grande e iluminada. Foi feliz uns dias. Quase durou aquele sonho nunca imaginado. Um sonho de que teria paz. Mas Ana Maria não foi forjada para a paz.
Beto um dia chegou diferente. A luz dos olhos se apagou. Aquela fagulha da paixão sumiu de uma hora para outra. Foi ficando distante, frio, duro e impiedoso. Até raiva começou a ter dela. Se apaixonou por outra. Dessa terceira morte, Ana Maria não escapou. Perdeu o juízo. Enlouqueceu.
Queimou seus móveis, perseguiu a filha, andou de novo nua e em fuga, ninguém sabia dizer de quem. Se coçou até sangrar, raspou as pernas com cacos de telha e no dia que cansou, levantou-se, banhou-se, vestiu-se, comeu, beijou a filha e era de novo uma pessoa serena. Mas, Ana Maria que nunca foi serena, nesse dia foi. Pegou a filha assustada no colo e a ninou até que dormisse. Botou a menina na rede e se deitou no chão a embalar seu sono. No outro dia acordou morta. Morta por dentro e dessa vez também por fora.
Não foi feliz. Suas tristezas duraram o tempo que dura uma dor. E há dores que as vezes duram tempo demais.

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Inspiração

A ideia surgiu da inspiração em mulheres fortes, temperadas pelas adversidades da vida e forjadas em meio a dores e amores.

Sobre a obra

A obra se passa em um lugar remoto e numa época já ida. Descreve a sina de uma mulher corajosa e sofrida, ainda assim alegre e forte.

Sobre o autor

Gosto de histórias. De ouvi-las e de contá-las. Gosto de desbravar o mundo das personagens que, assim que nascem já perco o controle sobre elas. As histórias se escrevem sozinhas, se desenvolvem e se contam independentes de mim.

Autor(a): HAYLLANA AIRES MARTINS (HAYLLANA MARTINS)

APCEF/TO


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