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A trágica morte do avô
A trágica morte do avô
A experiência da norte é, na maioria das vezes, dolorosa para as pessoas. Quase sempre traz um sentimento de perda, tristeza, angústia e desamparo. A perda do avô é, naturalmente, umas das primeiras experiências que temos com a morte, dado a diferença de idade entre avô e neto. O sentimento de perda do avô é, mais ou menos acentuado, dependendo do nível de convivência entre ambos.
Se existe convivência entre avô e neto, via de regra, existe também partilha, compreensão, ensinamento, aprendizado, tolerância, intercessão, etc. Por vezes os avós são mais tolerantes e afetuosos com os netos do que foram com os filhos.
Ana, que nasceu numa cidadezinha do interior da Bahia, quando criança, pode desfrutar da prazerosa companhia do avô em larga medida, apesar do curto espaço de tempo de convivência entre ambos. Aquela garotinha sapeca, alegre, inteligente, cheia de vida e de imaginação, preenchia o dia-a-dia do seu avô, contando-lhe todo tipo de histórias que a sua fértil imaginação produzia. Histórias inventadas e personificadas com os elementos do seu habitat natural. O avô as ouvia atento e pacientemente e até incentivava a neta a contá-las, mais e mais. Era um verdadeiro deleite para ambos. O avô desfrutava da companhia da neta e se mantinha informado do que acontecia naquele lugarejo e ela ainda lhe trazia flores frescas todos os dias.
Naquela idade, sem recursos financeiros e com a saúde debilitada, sem enxergar e ouvindo pouco, vivia prostrado no fundo de uma rede, num quarto escuro da casa. As visitas eram poucas e esparsas, ninguém mais parecia se importar com ele. Mas Ana, essa sim era diferente, o visitava sempre, era tudo para ele, seu bem querer, razão da sua vida.
Ana também desfrutava da companhia do avô. Somente ele tinha paciência para ouvir as sus histórias mirabolantes e inverossímeis. Sonhava com um mundo grande, cheio de novidades e encantos que não cabia naquele lugarejo de gente rude e acomodada. Suas histórias eram combustível para sua imaginação e contá-las ao seu avô tinha um gostinho especial, ele as ouvia com grande interesse. Percebia isso quando ele pedia para repetir o trecho da história que não conseguia ouvir. A cada manhã, quando ia colher flores para o seu avô, Ana imaginava uma nova história para lhe contar. Às vezes a colheita de flores era um pretexto para uma nova história, mas o amor pelo avô, esse sim, era verdadeiro.
Certo dia, como de costume, Ana foi ao campo colher flores para o avô. Imaginava uma história nova para lhe contar, mas, nesse dia, a mente parecia estar bloqueada, a história não fluía. Observou os beija-flores com seus voos rasantes sobre as plantas, as abelhas sugando o néctar das rosas, as borboletas com seus malabarismos, um pequeno pássaro matando sua sede nas gotas de orvalho que escorria das folhas, o frenesi das formigas carregando seus nacos de folhas, nada a inspirava naquele dia. Lembrou-se de que na noite passada não dormiu bem e que tivera pesadelos.
Tendo demorado mais que de costume, com o sol já alto e começando a esquentar, sem que tivesse uma gota de inspiração, resolveu voltar para casa com seu buquê de flores. Pensou, hoje peço ao meu vô que me conte uma história. Marchou. Atravessou o pasto, passou pela matinha, depositou as flores em cima do poste, abriu e fechou o colchete, apanhou as flores, seguiu para casa. Ao chegar em frente a porteira, já no terreiro da casa, viu uma movimentação estranha, um burburinho de pessoas desconhecidas, algumas mulheres rezando, viu um homem com um machado na mão. Aproximou-se devagar e, com dificuldade, pode ver o seu avô ao centro. Suas pernas estavam estendidas sobre um tronco de árvore, o corpo apoiado no colo de um desconhecido e a cabeça pendia para um lado. O homem que estava com o machado nas mãos pediu que as pessoas se afastassem um pouco, alguns taparam os olhos, outros viraram para o lado. Imediatamente o carrasco desferiu uma machadada nas pernas do ancião, depois outra, mais outra... Ana entrou em choque! Estaria ela variada? Seria a continuação do pesadelo da noite anterior? Não. Ela vira o suficiente, era o seu avô, conhecia bem aquele rosto enrugado e franzino que muitas vezes ela acariciou.
Ana ficou possessa! Não entendia porque as pessoas não faziam nada para defender o seu avô, inclusive os seus parentes mantinham distância. Não ouviu gemido nem gritos de dor, mas ouviu o estalar de ossos quebrando. Não suportou. Esbravejou, xingou, gritou e partiu pra cima, para dentro do círculo. Alguém tentou detê-la, não conseguiu, ela escapou dando-lhe uma dentada no braço. Franzina, mas ágil, abriu caminho no meio do povo. Empurrava um, beliscava outro, esbofeteava mais um, passou entre as pernas de outro e chegou ao centro, onde estava inerte o avô. Gritou, gritou...
- o que é isso? O que é isso? Por que o mataram? Por que o mataram?
Alguém respondeu:
- ninguém o matou sua tonta, ele morreu porque morreu, chegou a sua hora.
- mas quebraram as pernas dele. Por que quebraram as suas pernas?
- para agasalhar no caixão. Ele ficou muito tempo na rede com as pernas dobradas e endureceu, não foi possível estirá-las, por isso as quebraram. A menina, abismada com aquela cena, aproximou-se do avô, fez-lhe um carinho no rosto, beijou-lhe a testa e perguntou:
- vô o senhor morreu mesmo?
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Inspiração
Trabalhei por 31 anos na caixa. Neste período pôde conviver com muitos colegas de várias regiões do país e partilhamos muitas histórias. Uma dessas histórias me chamou muito atenção pelo seu caráter afetivo, trágico e até uma pitada de comicidade. Por isso resolvi escrever a minha própria versão da história.
Sobre a obra
Esse conto é uma alusão a uma história verídica que me foi contada por um dos personagens envolvidos no episódio. A versão aqui apresentada exprime o impacto causado no ouvinte, ferindo sua sensibilidade e emoção.
Sobre o autor
Quando criança, quando me perguntavam o que eu queria ser, estudar, sempre respondia jornalismo, comunicação, letras. Acabei não fazendo nada disso, não tive oportunidade. Agora resolvi me experimentar através da escrita.
Autor(a): JOSE CARLOS NEVES SODRE (Zé Poeta)
APCEF/TO
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