Não minta para Deus, não minta para o guarda.

Não minta para Deus, não minta para o guarda.

Certa vez, precisei fazer uma viagem rápida para outro estado e voltar no dia seguinte. Tudo parecia estar perfeito, exceto por um pequeno trinco no para-brisa do carro, resultado de uma pedra que o atingira durante uma viagem de trabalho alguns dias antes. Sabia que deveria ter trocado o vidro, mas com a urgência da viagem, acabei deixando para lá e resolvi seguir em frente, mesmo correndo o risco de ser parado em uma blitz rodoviária. Afinal, o trinco era tão pequeno que mal era notável.
Durante a ida, respiramos aliviados ao passarmos pela unidade fixa da Polícia Rodoviária Estadual sem problemas, já que os guardas estavam ocupados com outros veículos. A viagem seguiu tranquila até o nosso destino. No entanto, a felicidade de ter escapado da fiscalização durou pouco. Como diz o ditado, tudo que vai, volta. E no dia seguinte, era hora de encarar o retorno para casa. Eu, minha esposa e meu filho pequeno iniciamos a viagem com certa apreensão, sabendo que agora a sorte poderia não estar ao nosso lado.
Durante a viagem de retorno, o pequeno trinco no para-brisa começou a se expandir, e eu comecei a ficar cada vez mais nervoso. Ao passarmos novamente pela mesma unidade policial no caminho, minha tristeza se confirmou quando um guarda me deu sinal para parar. Sem muita conversa amistosa, ele já começou a questionar sobre o para-brisa trincado. Naquele momento, eu estava errado e nervoso, e cometi o erro de mentir, na esperança de amenizar a punição (multa). Disse ao guarda que o vidro tinha sido danificado recentemente durante aquele percurso. Ele, como se já soubesse, perguntou se eu sabia precisar a hora exata do ocorrido. Improvisei e disse que havia acontecido há cerca de duas horas. No entanto, ele retrucou com um tom irônico, afirmando que pela sua experiência, aquela trinca já estava avançando para os lados, o que indicava que havia ocorrido há mais tempo do que eu havia dito.
Foi então que ele me pediu que descesse do carro e disse: “Ontem eu vi você passar por aqui e notei que o vidro já estava trincado, mas como estava envolvido em outra abordagem, não pude abordá-lo. Porém, hoje reconheci seu carro e não tive dúvidas”. Naquele momento, senti uma mistura de vergonha por ter sido pego na mentira e preocupação com a possibilidade de receber uma multa. Porém, fiquei surpreso com a capacidade dele de notar a pequena fissura no vidro no dia anterior, mesmo com o carro em movimento.
É comum mentirmos em nossas vidas. Às vezes, tentamos fazer isso em nossa relação com Deus, utilizando argumentos e artimanhas, mesmo sabendo que é impossível enganá-Lo. Deus nos conhece profundamente, sabe de nossa jornada, desejos, sonhos e aspirações. Não devemos tentar enganá-Lo, pois, no máximo, estaríamos enganando a nós mesmos.
De fato, não é possível escondermos nada de Deus. Como está escrito no Salmo 139: “Senhor, tu me sondas e me conheces. Sabes quando me assento e quando me levanto; de longe percebes os meus pensamentos. Observas meu caminhar e meu deitar; conheces todos os meus caminhos. Antes mesmo que eu fale, já conheces o que direi.” Portanto, não adianta tentar esconder nada de Deus, pois Ele conhece tudo sobre nós, desde o mais íntimo até o mais evidente. O melhor a fazer é ser sincero e transparente em nossa relação com Ele.
Ariano Suassuna, grande gênio da literatura brasileira, dizia: “Não sei vocês, mas eu minto”. Ele dizia não mentir pra prejudicar ninguém e cita um ditado brasileiro que diz: “Que se você fizer um convite a um brasileiro e se ele disser eu vou, pode ser que ele vá ou não, mas se ele disser, eu vou fazer tudo pra ir, pode ter certeza que ele não vai”. Assim como Ariano, é verdade que todos mentimos em algum momento. No entanto, em uma época marcada por fake news e tantas mentiras prejudiciais, as mentiras inofensivas que visam apenas manter a harmonia em um relacionamento ou situação amistosa não possuem o mesmo potencial destrutivo que as mentiras que visam prejudicar as relações e a honra dos outros.
Devemos ter integridade na nossa espiritualidade e seguir os ensinamentos que recebemos sem utilizar subterfúgios para alcançar nossos objetivos. Deus é o caminho da verdade e nos mostra isso diariamente, mesmo quando caímos em situações embaraçosas por conta de nossas mentiras. Assim como o personagem “João Grilo”, de Suassuna, que era mestre em se colocar em situações difíceis com suas histórias. Devemos aprender com nossos erros e não mentir nem para os guardas nem para Deus. Ambos têm "olhos de lince" e experiência suficiente para identificar nossas mentiras.

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Inspiração

A inspiração para esta crônica surgiu de uma experiência pessoal que me fez refletir sobre a honestidade e a integridade, especialmente em momentos em que mentir parece ser uma solução fácil.

Sobre a obra

A crônica aborda integridade e honestidade, inspirada em uma experiência pessoal e combinando relato pessoal com referências literárias e bíblicas. A técnica empregada foi a de unir experiências reais com ensinamentos espirituais e culturais, criando uma narrativa que convida à reflexão sobre a verdade em nossas vidas.

Sobre o autor

Sou cordelista e atuo em uma Organização da Sociedade Civil (OSC) que se dedica a ajudar pessoas em situação de vulnerabilidade social.

Autor(a): THIAGO PAULINO DO NASCIMENTO (Thiago Paulino)

APCEF/CE


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