O crime da mala

O crime da mala

Honorival fechou o jornal Correio do Povo e colocou sobre o balcão. Desiludido com a humanidade comentou com o chefe da estação.
– Esse mundo está virado. Viu que lá em Santa Maria assassinaram uma moça e colocaram dentro de uma mala?
Por alguns instantes conversaram sobre a irracionalidade das pessoas. Era inacreditável que um homem tenha a capacidade de esquartejar uma mulher e transportar em uma mala.
– Meu velho, vamos dar a partida deste trem que estamos atrasados.
E o chefe da estação colocou seu lápis de apontamentos na orelha e um toco de Continental no cinzeiro e se encaminhou até ao sino para dar os badalos anunciando, que em breve a partida do São Borja rumo a Santa Maria.

Em Santiago do Boqueirão a neblina pairava sobre os trilhos, criando uma atmosfera de mistério.
Muito cedo da manhã, muito tempo antes de o trem chegar um homem adentra na gare. Gabriel aguardava o “passageiro” vindo de São Borja. Era um sujeito de poucas palavras e olhar penetrante. Vestia-se com um sobretudo surrado e carregava uma maleta de couro gasta. Percebia-se nitidamente o esforço que fazia para carregar a mala. As poucas pessoas que aguardavam no embarque não se aventuravam a conversar, cada um estava concentrado em seus anseios pela viagem. O cenho cerrado de Gabriel afastava qualquer tentativa de aproximação. Ele tinha a cara de poucos amigos, como se diz comumente. Portava um colar com a cruz de Jerusalém e um rosário nas mãos.
Enquanto o vento uivava ao redor da plataforma, o trem finalmente chegou, fumegando a Milionária. Gabriel embarcou e escolheu um assento na última poltrona do último vagão, próximo à janela. O mais vazio do trem. Apenas, alguns passageiros sonolentos ocupando poucos acentos.
O trem partiu e a paisagem de Santiago foi ficando para trás. E substituída por um cenário desconhecido, um aguaceiro estava por vir e na rota do trem. O ritmo hipnótico dos vagões parecia embalar os passageiros para um sono profundo. E assim seguiu e só um garotinho acompanhado pelo pai percebeu a passagem por Jaguari.
– Pai! É aqui que tem o vinho que o senhor gosta – acordando o sonolento viajante.
– Chapadão tinto seco, esse que eu gosto – respondeu ao guri.
No entanto, o destino reservava algo sinistro para aquela jornada aparentemente tranquila. O chefe de trem era um homem sisudo e desconfiado. E mais desconfiado estava após ter lido a reportagem sobre o crime da mala. No seu entendimento tudo deveria ser nos conformes. Cada coisa no seu devido lugar. Ao adentrar o vagão, Honorival, lançou olhares desdenhosos ao seu redor. Seu rosto se contorceu em uma expressão de desagrado ao notar Gabriel sentado ali, imóvel, com os olhos fixos na janela, como se estivesse em outro mundo. Solitário e distante com uma maleta incomum e volumosa sob os pés.
Ao cobrar a passagem, para ser perfurada, Gabriel demorou mais tempo do que devia para achar o bilhete. E isso irritou Honorival Costa, o chefe de trem, conhecido popularmente como Norival. E criou-se uma antipatia mútua entre os dois.
Norival não conseguia ignorar a presença sombria e perturbadora de Gabriel, que por alguns instantes o fitou com olhar zombeteiro.
A viagem seguia silenciosa, e os passageiros pareciam alheios à situação tensa que se desenrolava no vagão. Gabriel permanecia impassível, enquanto o chefe de trem mostrava-se cada vez mais impaciente e irritado. E era um vai e vem no vagão com o desconfiado chefe de trem.
– Eu conheço o cego dormindo e o rengo sentado. Aquele fulano não é flor que se cheire – comentou no carro restaurante com um dos atendentes.
– Eu vi, é crente. Carrega um rosário, deve estar rezando o terço – comentou o colega ferroviário.
– Para disfarçar. E além do mais devemos tomar cuidados redobrados com quem vive de joelhos nas igrejas. Como dizia meu pai.
De repente, o trem diminuiu a velocidade e parou sem motivo aparente. Os passageiros murmuraram preocupados, e Norival aproveitou para se aproximar de Gabriel.
– Estou de olho no senhor – falou com voz baixa. E seguiu seu caminho.
O silêncio pairou por um momento, e o trem parecia ecoar todos os ruídos dos matos e campos. Foi quando, subitamente, a Maria-Fumaça começou a fumegar e puxar os vagões, lentamente.

Gabriel desembarcou tranquilamente na estação, ainda carregando com enorme esforço sua maleta de couro.
Chamou um carro de praça e com a ajuda do chofer colocou sua pesada bagagem no porta-malas.
– O senhor está trazendo ferro nesta mala? – perguntou o chofer.
– Não, são livros. Estou indo para o internato, vou estudar para ser sacerdote.

No balcão da estação em Santa Maria Norival conversa com o chefe da estação. Contou que embarcou um sujeito muito estranho em Santiago e que trazia uma volumosa bagagem que foi motivo de sua desconfiança. O mundo estava cheio de malucos querendo imitar outros malucos. Havia lido a notícia do crime da mala e aquilo o estava perturbando. Inclusive já tinha avisado os brigadianos sobre o elemento suspeito. Afinal, Norival – o chefe de trem – conhecia o rengo sentado e o cego dormindo.

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Inspiração

Os trens.
Nos tempos em que viajava com a família nos velhos trens de passageiros puxados pela Maria-Fumaça.

Sobre a obra

Um desconfiado Chefe de trem sobre um passageiro portando uma volumosa mala.
Desconfiança influenciada por uma recente notícia de um crime da mala.

Sobre o autor

Athos Ronaldo Miralha da Cunha é engenheiro civil e aposentado da Caixa. Autor dos seguintes livros:
Os agachados (2012), Contos de Chumbo (2015), Tintos e Contos (2017), O código Locatelli – romance – (2018), Sofrendo em Paris (2018), Contos de Prata (2020), O Zapzap das flores (2022), Peleias – contos – (2022) e Última payada – poemas – (2024).

Autor(a): ATHOS RONALDO MIRALHA DA CUNHA (Athos Ronaldo Miralha da Cunha)

APCEF/RS