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Escolhendo Maracujás
Aquela tranquila manhã de terça era um dia normal, como todos os outros. Nada diferindo da segunda e certamente igual a quarta. Pelo menos para a maioria das pessoas. Que estavam na lida, tentando matar o seu leão diário. Tão comum e monótona que ninguém se deu conta dos passos apertados e duros de Joana, que saiu de casa com o rosto quente e o coração apertado, sentindo as palavras duras trocadas com sua mãe reverberarem como ecos amargos em sua mente. A discussão havia sido tola, uma briga corriqueira sobre algo insignificante, mas que naquele instante parecia um abismo intransponível entre elas. Há dias Joana enfrentava, com extrema dor, seus dias tristes, mas hoje foi diferente. Ela havia descontado injustamente todas as suas frustações em quem não merecia ouvir seus desabafos de maneira tão ríspida. Despejou toda a sua ira em quem só queria, de alguma forma, amparar e compreender o que se passava.
O céu azul e claro que se estendia acima parecia zombar de seu caos interior, indiferente ao turbilhão que se passava em sua mente. Sem rumo, seus pés a levaram até o mercado do bairro, onde imaginou que poderia ao menos distrair-se com as pequenas tarefas do cotidiano. Talvez fazer um suco de maracujá ajudasse a acalmar seus nervos à flor da pele.
Dentro do mercado, as prateleiras estavam organizadas com uma precisão quase irritante, refletindo uma ordem que contrastava profundamente com a bagunça que Joana sentia por dentro. Ela caminhou lentamente pelos corredores, quase como se estivesse em um sonho, até que seus olhos caíram sobre a seção de frutas. Não foi difícil encontrar os maracujás. Mas quando se aproximou olhou atentamente para os frutos como se fossem um enigma que ela precisava decifrar. Era uma tarefa simples, mas que, naquele momento, parecia monumental. Joana ficou parada, indecisa entre os maracujás de pele lisa e os que exibiam uma casca enrugada. Essa escolha, de certa forma, refletia a turbulência interna que ela sentia.
Enquanto seus olhos examinavam os maracujás, uma lágrima rebelde escorreu pela sua bochecha. Ela tentou, em vão, segurá-la, mas foi percebida por uma senhora que estava ao seu lado. A mulher era idosa, de aparência frágil, mas com um olhar que transmitia uma força serena e uma sabedoria acumulada com os anos. Seus cabelos grisalhos estavam presos em um coque simples, e as rugas em seu rosto pareciam traçar as linhas de uma vida cheia de histórias e experiências.
— Você está bem, minha filha? — perguntou a senhora. Sua voz doce e acolhedora, soando como um bálsamo para o coração atribulado de Joana, que tentou disfarçar o choro, mas era impossível esconder a tristeza que transbordava de seus olhos. Ela balançou a cabeça, tentando afastar a preocupação da senhora, mas o olhar gentil da mulher penetrava profundamente, como se enxergasse a dor que ela tentava ocultar.
— Sabe, escolher maracujás é uma arte — continuou a senhora, ignorando a tentativa de Joana de esconder suas emoções. — Os mais lisos podem parecer atraentes, mas são os enrugados que escondem o melhor sabor. Às vezes, as coisas mais valiosas na vida estão ocultas sob uma aparência que nem todos valorizam.
Joana olhou para a mulher, surpresa com a profundidade de suas palavras. Havia algo naquelas frases que parecia ressoar diretamente com o que ela estava sentindo, como se aquela senhora pudesse ler sua alma e compreender sua dor. A senhora, então, esboçou um sorriso, percebendo que havia conseguido tocar o coração da jovem.
— Eu tinha uma filha, sabe? — começou ela, com um olhar distante, como se revivesse memórias antigas. — Uma menina cheia de vida, com um sorriso que iluminava o mundo ao seu redor. Mas a vida, às vezes, segue caminhos cruéis e inesperados. Perdemos a Fernanda há alguns anos, em um acidente de carro. Ela tinha apenas 24 anos.
Joana prendeu a respiração, sentindo um nó se formar em sua garganta. A dor na voz da senhora era palpável, e ela sentiu um aperto no peito, tentando imaginar a profundidade daquela perda.
— Foi uma noite terrível — continuou a senhora, seus olhos brilhando com lágrimas que ela lutava para conter. — Um motorista distraído, um telefonema que nenhum pai ou mãe deveria receber. Eu sempre pensei que teríamos tempo. Tempo para mais conversas, mais risadas, mais abraços. Mas, de repente, ela se foi, e tudo o que restou foram as lembranças.
Joana sentiu seu próprio coração se quebrar em mil pedaços. A dor daquela senhora parecia quase tangível, como se a perda de Fernanda tivesse deixado um vazio que nunca poderia ser preenchido. Ela se perguntou como alguém podia continuar depois de uma tragédia tão grande, e como ainda era possível oferecer conforto a uma estranha.
— Fernanda adorava maracujá — disse a senhora, sorrindo com uma tristeza suave. — Ela sempre escolhia os mais lisos, achando que eram mais bonitos. Mas, depois que ela se foi, eu aprendi que os maracujás enrugados, aqueles que parecem imperfeitos por fora, são os que guardam o sabor mais doce. A vida é assim também, não é? Às vezes, as coisas mais preciosas vêm de onde menos esperamos.
Aquela senhora, que Joana nunca havia visto antes, parecia ter uma sabedoria imensa, acumulada através dos anos e das dificuldades que havia enfrentado. Era como se, através de suas palavras sobre maracujás, ela estivesse tentando transmitir algo muito mais profundo e significativo.
— Eu daria qualquer coisa para ter mais um momento com minha filha — continuou a senhora, a voz trêmula de emoção. — Para dizer a ela o quanto a amava, mesmo durante nossas discussões bobas. Mas agora, tudo o que posso fazer é passar adiante o que aprendi. Não deixe que pequenas brigas criem muros entre você e aqueles que você ama. A vida é curta demais para isso. A propósito, nem sempre esse muro é para quem está fora, mas para quem está dentro dele. Não se culpe excessivamente, não guarde rancor de você mesma, não se amargure tanto, minha filha. Esses sentimentos elevam o muro, e quem está de fora não vai conseguir var nada aí dentro desse quintalzinho tão bonito.
Joana sentiu as lágrimas escorrerem livremente agora, mas não por tristeza por si mesma, e sim por aquela senhora que havia passado por tanto e, ainda assim, conseguia oferecer conforto a uma estranha. Havia uma lição preciosa ali, nas palavras simples sobre maracujás e nas memórias dolorosas que ela compartilhava.
Percebendo que Joana estava profundamente tocada, a senhora voltou a falar de maracujás, como se a intenção dela fosse apenas essa.
— Você sabia que o maracujá é uma fruta que exige paciência e dedicação para ser cultivada? — perguntou ela, com um brilho de sabedoria nos olhos, enquanto pegava alguns frutos — Para que a planta floresça e produza frutos saudáveis, é preciso cuidar dela com carinho. A planta precisa de tempo para enraizar-se, adaptar-se ao solo, absorver o sol e a chuva na medida certa. Aliás a planta precisa de bastante água. E, claro, devemos proteger a planta de pragas que tentam atacá-la. Se negligenciarmos em qualquer etapa, ela murcha. Mas, se cuidarmos dela com atenção e amor, ela retribui com essas frutas que a gente tanto ama.
As palavras da senhora ressoaram profundamente em Joana, que sentiu que a metáfora do cultivo do maracujá se aplicava perfeitamente ao seu relacionamento com sua mãe, e de como ele estava abalado. Mas, com o cuidado certo, o amor e a compreensão podiam florescer e dar frutos doces, tal como o maracujá, que, mesmo enrugado, guardava dentro de si um sabor inigualável.
— Obrigada — disse Joana, com a voz embargada, mas sincera. — Eu precisava ouvir isso.
A senhora sorriu e deu um pequeno aceno de cabeça, como se soubesse que havia cumprido seu papel naquele dia. Terminou de embalar os maracujás que tinha selecionado, colocou-os no carrinho e afastou-se lentamente, deixando Joana sozinha com seus pensamentos.
Quando Joana voltou para casa, sentia-se diferente. O peso que carregava havia se transformado em algo mais leve, mais manejável. Ao abrir a porta, encontrou sua mãe na cozinha, ainda com o semblante fechado, mas concentrada no fogão. Joana hesitou por um momento, as palavras da senhora ainda ressoavam em sua mente como uma melodia suave.
— Mãe... — chamou, com voz suave e com receio do retorno que teria. — Desculpa pelo que aconteceu mais cedo. — E nenhuma palavra mais saiu, pois não conseguiu conter o choro, que parecia lavar a alma e dissolver as muralhas que foram erguidas.
Sua mãe se virou, surpresa com o tom de reconciliação na voz da filha, ao mesmo tempo em que Joana corria em sua direção e se enrolava em seu pescoço em um apertado e profundo abraço. Havia um brilho de alívio em seus olhos, e um pequeno sorriso começou a se formar em seus lábios.
— Claro, minha filha — respondeu ela, com ternura. — Mas... o que aconteceu? — Hoje eu aprendi a escolher maracujás.
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Inspiração
Nada específico. Mas assisti ou presenciei uma série de acontecimentos próximos entre si me fizeram juntar todos e trazer a analogia entre diversos itens como relacionamentos, maracujás, perda, arrependimento, culpa e perdão, presentes ao longo do texto
Sobre a obra
A obra é uma crônica, narrada em terceira pessoa, com cenas do cotidiano, aprofundando assuntos corriqueiros dando a eles novo significado, utilizando palavras de uso comum, gerando linguagem acessível a todos os públicos, mas com profundidade em detalhes captando sentimentos mais reflexivos no leitor.
Sobre o autor
Sou o Robson, trabalho na Caixa há 12 anos e participo do Talentos FENAE desde a edição de 2018. Já fui contemplado com o prêmio estadual nas categorias foto e filme, contos e crônicas, onde obtive o 3º lugar na premiação nacional.
Autor(a): ROBSON FERREIRA DE SOUZA (Robson Ferreira de Souza)
APCEF/PR
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