CALADOR

CALADOR

Aquele objeto pontiagudo na parede
Como poderia se chamar calador?
Se ele, insensível, feria as sacas
Onde escorria o sangue dos grãos

Aquele homem empunhava-o
Como um guerreiro a aferrar sua espada
A defender o seu reino
A sustentar nossa casa

Hoje o calador na parede
Me fere com suas lembranças
Do guerreiro que se foi
Como pode ele calar-a-dor?


Eu acabara de completar dez anos de idade. Minha ansiedade aumentava a cada dia pois, partir desta idade meu pai deveria cumprir sua promessa. Eu aguardava atento como um pescador na beira do rio com uma linha de mão. Paciente fisicamente, mas por dentro o coração teimava em acelerar o compasso. A qualquer momento eu iria sentir a linha se esticar e, finalmente, fisgar o peixe tão aguardado. Eu vivia um período de transição. Ia de um mundo de faz de conta de super-heróis e guerreiros com suas espadas, para o mundo real, de pessoas trabalhadoras e pais de família. Mas, no final das contas, ao longo dos anos, percebia que todos eram heróis.
Era uma terça-feira de sol e final de safra, quando pela manhã ele anunciou que eu iria acompanha-lo ao trabalho. Eu pulei da cama, com um frio na barriga, como alguém que vai falar em público pela primeira vez. Finalmente chegou o dia! Eu iria com ele no seu trabalho. Parece algo trivial? Não para aquela época. Finalmente eu iria conhecer a empresa que o admitiu e que nos sustentou por anos a fio. Aquele mundo diferente de caminhões gigantes, vagões, silos e esteiras em um tamanho descomunal que ele tanto falava quando a noite nos reuníamos em momentos tão doces e férteis, agora eu poderia ver com meus próprios olhos, pois até então estavam apenas no mundo de minha imaginação.
Assim que avistei o tão esperado espaço, meus olhos, numa tentativa impossível, queriam engolir todas as imagens de vez e retê-las em minha retina para sempre, assim poderia, sempre que quisesse, reviver este momento mágico. Logo que entramos no escritório que fazia e a recepção de caminhões e a pesagem das sacas dos agricultores que entregavam o fruto de um ano inteiro de trabalho, percebi na parece lateral três caladores pendurados. Eram objetos finos e pontiagudos, ocos por dentro cuja serventia era analisar a qualidade dos grãos, perfurando as sacas de soja. Mas minha visão a respeito deles era diferente. Eram prateados e lembravam uma espada. Meu desejo era ter um na mão para suprir meu desejo de atuar como guerreiro, mas logo fui barrado, pelas sábias mãos de meu pai, por motivos óbvios.
Eu via as paredes brancas do escritório que foram maculadas pelos resíduos de um final de safra. Me questionava por que o balcão que separava o cliente do atendente era tão alto? Seria uma trincheira? As escrivaninhas imploravam: vasculhem-me. Poderia dizer que era o castelo de cada um dos trabalhadores? Quando abri uma gaveta de um desses castelos eu vi fotografias de rainhas e princesas, totalmente nuas. De tempos em tempos eu voltava a visita-las, sorrateiramente sem que ninguém me visse.
O motorista do primeiro caminhão, que estacionou de modo preciso em cima da balança, me permitiu subir em sua cabine. A capacidade de visão fornecida pela altura do veículo me impressionava novamente. Em seguida vi em plena atuação meu super-herói favorito. Meu pai empunhava o calador e subia com agilidade na carroceira inserindo-o nas sacas, como se tivesse abatendo um a um de seus inimigos. Eu via o suor escorrer do seu corpo. Esta cena foi a primeira a me ensinar o que literalmente significa “suar a camisa”. Mas meu ídolo tinha outras habilidades. Seu tratamento com as pessoas e habilidade nas negociações faziam aumentar cada vez mais minha admiração. Seu jeito de conversar com os carregadores de sacas, os operadores de vagões e tantos outros trabalhadores humildes que buscavam seu sustento junto àquela empresa, era extraordinário. E assim, a cada dia eu tentava copiar, sem êxito, todas suas qualidades. Meu apego aumentava a cada noite que a família se reunia ao redor do fogão a lenha e ele contava como foi o seu dia. Olhava nossos cadernos como se fosse uma inspeção. E não era? Deixava um visto e a data que havia olhado. Deixava-nos discorrermos sobre nosso dia também. Promovia leituras e debates em família, algo que hoje parece-me impossível conseguir. Num determinado dia uma professora viu seu sinal em meu caderno. Por instantes achei que seria humilhado por isso, porém o efeito foi contrário. Um elogio de cima abaixo que me encheu de orgulho perante os colegas.
O crescimento de pelos no rosto, a voz se tornando mais grave a cada dia davam indícios da adolescência pedindo passagem. Uma fúria avassaladora para adentrar de vez no mundo me dominava. Eu queria fazer parte de um grupo e conquistar o coração daquela menina que morava na esquina.
O anúncio da aposentadoria precoce do meu herói me surpreendeu. Ele trazia consigo sua arma de guerra como lembrança de tantos anos de trabalho e pendurou-o na área de serviço.
Com uma dor insuportável eu o via cada dia mais magro e mais abatido. Suas palavras foram se minimizando e deixando uma tristeza imensa em sua volta, como se não tivesse mais nada a acrescentar neste mundo. Minhas lágrimas se misturaram com as da minha mãe no dia em que foi diagnosticada a doença que o levou definitivamente em pouco dias.
Para o sustento da casa minha mãe e eu passamos a trabalhar fora. Agora eu percebia que tinha uma Mulher-Maravilha ao meu lado. Seus atos heroicos iam do trabalho, à manutenção da casa, a valiosos conselhos e consolo pela nossa perda tão injusta. Mais de uma vez, durante as refeições, nos pegávamos olhando na parede vendo aquele objeto tão significativo. Nossos olhos viam o objeto todo molhado. Não era a umidade. Eram nossas lágrimas.
O final de semana registrava minha intensa exaustão pelo trabalho e estudos simultâneos. Num sábado à tarde quando minha mãe se ausentou, dormi profundamente. Finalmente ele apareceu em meus sonhos. Há tempos que eu inconscientemente o cobrava para se apresentar. Eu ouvia sua voz suave, seus conselhos, o seu “está tudo bem”, seu cheiro, sua roupa suada e por fim, em estado de êxtase, senti seu abraço, tão apertado que parecia dificultar minha respiração. De súbito acordei com um barulho estridente vindo da área de serviço. Levantei rapidamente temendo que alguém estivesse invadindo nossa casa. Surpreendentemente eu vi a parede vazia e o calador ainda vibrando no chão pela sua queda.





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Inspiração

A inspiração foi meu pai. Uma pessoa especial que lamentavelmente nos deixou neste ano.

Sobre a obra

Meu pai trabalhou durante 27 anos em uma empresa de recepção de grãos. Nossa convivência nesse meio possibilitou trazer à tona alguns elementos deste universo,

Sobre o autor

Escrever é desnudar nossa alma. Nossos mais íntimos segredos e desejos podem ser revelados ainda que indiretamente pela escrita,

Autor(a): ILBERTO LUIS TRENTIN (ILBERTO TRENTIN)

APCEF/RS