Olhando o retrovisor - A história de RET, o Chevette

Olhando o retrovisor - A história de RET, o Chevette

Dizem que recordar é viver. Pois bem, hoje vou recordar minha história, pois estou pensando em publicar minha autobiografia. São muitos anos de asfalto e poeira. Quando recordo as estradas por onde passei, fico emocionado. Meu motor chega a engasgar. Mas, sem delongas, agora quero voltar lá onde tudo começou.

Era 1982, na maternidade da Chevrolet. O parto foi difícil. Engenheiros, projetistas, técnicos, mecânicos e até robôs envolvidos. Depois de muito tempo na linha de montagem com apertos, ajustes, pintura, polimentos, acabamentos, testes e etc. Enfim ... nasci. E aquele ronco forte de vida encheu o galpão. Ah, se você visse minha foto! Que charme! Quatro portas, da cor bege, pneus cabeludos e com uma voz doce. Aquele “bibi” da buzina chamava atenção quando tocava. Meus pais me planejaram bem. Tinha força, velocidade, luz brilhante, carregava peso com facilidade e sempre fui extremamente generoso. Abria meu coração e portas para levar até cinco humanos, mas, algumas vezes, entravam mais que isto. O que fazia? Ora ... arrancava com força e levava todos aos seus destinos. Como é bom cumprir uma missão! E também tem suas recompensas. Aquele óleo fresquinho a cada temporada e minha bebida preferida, a gasolina. Tomei de várias marcas e, com certeza, posso afirmar, algumas são melhores. Álcool? Não! Na minha época não tinha essa mistura. Esta coisa do FLEX é da nova geração. Coisas da garotada. Nasci gasolina e nunca operei pra mudar meu sistema de alimentação. Conheci até um “brother” que foi submetido a uma cirurgia destas. Caramba, ele tomava gás. Dizia que era bom, mas tinha alguns efeitos colaterais.

Saí da maternidade batizado de Chevette e sobrenome RET. Porém, me senti cidadão no momento do emplacamento. GPH 0171. Sempre gostei do meu nome e da minha documentação, mas tinha uma coisa que nunca entendi. Várias vezes ouvi humanos brincando uns com os outros quando liam minha placa. Eles riam e repetiam 171, 171. Numa ocasião, um deles falou sobre uma coisa relacionada à lei. Não entendi nada, mas devia ser bom, porque só riam. Os tais dos advogados eram os que mais reparavam nisso. Mas eu só me ligava em lei de trânsito, por isto nunca me preocupei com o assunto.

Depois que fui registrado, estive em vários lugares. Morei em garagens de todos os tipos e descobri que há humanos que possuem uma ligação muito boa com a gente e outros nem tanto. Alguns começavam a conversar e não se davam conta de que estavam correndo muito e a marcha ainda era a terceira. Ficava barulhento, chamando atenção e a pessoa lá, distraída. Já aconteceu, inclusive, uma situação absurda. Imagine você, me deixaram sem gasolina. Eu lá, com luz acessa, alertando e o mostrador com o ponteiro lá em baixo, mas nada de irem ao posto. Resultado: tive de ser empurrado para um canto como se fosse um carro qualquer e ficar esperando até trazerem minha energia vital. E ainda ficaram bravos! Olha que eu sempre fui comedido no consumo da gasolina. Eles até falavam que eu era econômico, mas, mesmo assim, ficaram aborrecidos porque a gasolina acabou. Ah! Estes humanos descuidados! Mas alguns condutores eram especiais. Criávamos uma sintonia perfeita. Quase um amor à primeira pilotagem.

Dentre esses relacionamentos, alguns marcaram minha vida. Meu amigo Pita. Quanta saudade! Como cuidava bem de mim. Me deixava sempre limpo e brilhando. Não gostava que eu ficasse na rua. Sempre me protegendo. Não gostava nem de sair comigo quando chovia para não me sujar. Foi uma época de uma certa preguiça. Rodava pouco. Moleza mesmo aquele tempo. Muito carinho e pouco esforço. Ele era nota mil, mas tenho que admitir que estava começando a ficar entediado. Às vezes, tinha vontade de pegar a estrada e dar uma corrida mais distante e veloz. Isto era muito raro. Apesar de nossa relação longa e feliz, um dia ela terminou. Me preocupei no início, mas depois vi que seria a oportunidade de novos ares e novas estradas por este Brasil afora.

Foi nesta ocasião que vivi grandes aventuras com a família Miroma. De repente me vi numa garagem nova. Um casal e dois meninos que ficaram felizes com minha chegada. Tiraram até foto e colocaram num álbum. Eu me senti da família com aquele gesto. Gracinha, aqueles pequenos. A sra. Miroma era uma boa motorista e se preocupava comigo. Ela entendia minha alma. O sr. Miroma foi se aproximando com cuidado. Ele não estava muito acostumado com o mundo da direção. Isto se transformou num dos meus maiores orgulhos na estada com aquela família. Foi com minha ajuda e paciência que ele foi aprovado num exame para piloto. É nessas horas que a gente diz: valeu a pena! Além disso, guardo na memória a primeira vez de cada garoto guiando o volante. Também os momentos em que o pai os deixava passar a marcha. Como eles ficavam alegres! Eu até cantava os pneus na hora da saída em comemoração.

Mas a sensação melhor mesmo naquela fase foi a volta às estradas. Quase sempre, duas vezes por semana, fazíamos um trajeto de nossa cidade a uma outra cidade vizinha. Era cerca de 125 km e durava uma hora e meia de velocidade e adrenalina. Devo confessar que a adrenalina era de quem eu levava. Trocando em miúdos, eu, que andava antes menos de 100 km por mês, agora rodava, só nas estradas, mais de 1000 km. Foi uma grande mudança. Passei a fazer umas 25 maratonas por mês. Meus pneus cabeludos ficavam careca em pouco tempo, mas eles colocavam pneus novos pra eu ficar bem fofinho e seguro. Viagens diurnas e noturnas. Às vezes, com buracos traiçoeiros pelo caminho, mas fomos vencendo sempre. Bem, nem sempre, já estourei pneu naqueles buracos. Ufa ... isso dói! Um vez tiveram que me levar no especialista, pois fiquei com a roda meio quadrada, mas tudo foi arrumado novamente.

Com toda esta mudança radical, passei a me esforçar muito mais, nessa ocasião, já caminhava para duas décadas de rodagem. E foi nessa estrada que, pela primeira vez, senti um calor diferente que foi aumentando e aumentando até que... fervi. Puxa! ... Não foi nada lega! Todavia, depois do susto, foi divertido. Recebi um socorro. Aprendi o que é ser rebocado. Não tive que fazer esforço e voltei rodando pra clínica, a Oficina do Osmar. Ele cuidou de mim e me recuperou. Depois dessa, infelizmente, teve outro episódio, mas na parte elétrica. Mais uma vez, fui guinchado. Eu não tenho certeza se foi por este motivo, mas entendi que meus dias com aquela linda família estavam chegando ao fim. De fato, isto se confirmou. Fui dar sequência à minha vida em outra garagem.

Contudo, hoje, aqui relembrando minhas memórias, vejo que foi um tempo mágico e divertido. Não sei como estarão hoje aqueles meninos, mas imagino que grandes e se relacionando bem com os carros. Se alguém tiver notícias, diga que mandei um abraço e uma buzinada cheia de carinho. Bem, vou ficando por aqui e, se alguém quiser saber mais, vá olhando pelas estradas e ruas da cidade. Sou 0171. Se me encontrar, pode parar e perguntar. Agora, com mais de 40 anos, estou mais comedido na velocidade e tenho prazer de contar histórias do passado. Até mais! Bibi!!

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Inspiração

Lembrei-me do meu primeiro automóvel e de algumas aventuras na estrada, bem como da relação da família com ele. Então resolvi escrever sob a ótica do automóvel. Ele é o protagonista contanto suas memórias.

Sobre a obra

Trata-se de um conto bem humorado, onde usei, sobretudo, a figura de linguagem da prosopopeia, dando características humanas ao automóvel, que é a personagem principal. Embora o conto seja escrito em primeira pessoa, o narrador é o Chevette. Ele relembra sua história, as estradas e aventuras vividas, bem como sua relação com as pessoas.

Sobre o autor

Sempre gostei de escrever e aos 10 anos fui premiado, mas depois o lado escritor ficou adormecido. Contudo, após uma perda familiar o escritor renasceu, estando ainda ativo na CAIXA. Após a aposentadoria este processo se intensificou. Publiquei livros infantis e de poesia e sou membro de academias e entidades ligadas à literatura.

Autor(a): JOSE RENATO DE AMORIM (J. R. Amorim)

APCEF/MG


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