A última receita

Naquela tarde ela cozinhou como num ritual necessário para se convencer de que chegara a hora. Era preciso para que sacramentasse o ponto final.

Ouviu a voz. Ela lhe convidava àquela corriqueira experiência culinária. Por quê? Preferia a morbidez para harmonizar com a sua falta de jeito em lidar com as coisas do mundo - que já não lhe apetecia mais. Cedeu. Mas, seria seu o modo de fazer, ou não seria nada.

Arrastou os chinelos grandes e pesados (que nem eram seus) pelo corredor. A penumbra peculiar confortava. O traje era o pijama preto (e preto é gala - ou luto - como pedia a ocasião).

Parou em frente à geladeira. Encarou a porta branca tal qual um espelho sarcástico, refletindo toda a frieza que não queria ver. Nem sentir. Puxou o ar pelo nariz para coletar os temperos do prato do dia. Soltou as dores pela boca, lentamente, e escutou o chiar do peito.

Pegou sua bebida. Olhou para a pia, a tábua de cortes, a panela, a faca, o alinhamento obsessivo compulsivo dos objetos. (Em desalinho, só as ideias e os choros não chorados). Pôs a mão na carne crua. Arrepiou. Estava gelada como a sua já era há tempos. Os olhos estáticos miravam o infinito que tanto buscara nos seus dias brancos.

Analisou o fio amolado. Cortou. Devagar e com cuidado. Um cuidado sádico. Era quase prazer. Sentiu a dor do ferir. A dor das feridas. O tempo é mesmo um fanfarrão que engana, prometendo a cura! Tinha de calar? Tinha de responder? Só concordou. E cortou. Mais. E mais. E mais. Eram as suas partes que ela picava ali. Doía. Riu de alívio.

Acendeu o fogo. A chama era de um azul bonito que contrastava com as feiúras todas que a carregaram pela mão até a ceia final. O seu céu não era azul, era cinza-tempestade. Gostava das tempestades. De fora e de dentro. Por costume ou por desgosto, chover era sua forma de sobreviver. Sobrevivia.

Pôs no fogão a panela: esquentava, enfim, o óleo para o frigir dos pedaços, dos temperos, da alma dela própria.

Encarava o sangue que escorria como quem encara o próprio mundo de janelas abertas à sua frente: os fins justificam os meios, sim, pensou. Queria a resposta que não veio. E riu de novo. De incerteza.

A música na caixinha preta pendurada à sua frente cantava em altos sons e aguda voz que os dias eram assim. E eram...

Ela sabia que o seu dia chegaria, sereno, sorrateiro, sem avisar. Ela sabia. Chegara. Quereria ir? Os seus dias sempre foram assim.

Faltava o ar, mais por funcionamento já metódico do corpo asmático, do que pela constatação de que ele, o seu dia, chegara. Não usou a bombinha de remédio, esperou a temperatura da fritura, jogou os pedaços e observou a fumaça que se formou. O cheiro era bom, o barulho era de fome. Será que morrer é isso?

Remexeu, num movimento quase automático, a mistura de gostos, texturas, cores e sentimentos. Escutou os chiados da fritura - era como os do peito e da chuva, e ela chovia, todo dia. Não havia mais tempo, porque, os dias eram assim.

Esperou. Olhava fixamente para aquela panela e entendia tudo! Era o seu modo de fazer. Sempre havia sido o seu modo de fazer. Sentiu o vazio do estômago e do peito. Seu apetite era muito maior e ela nem sabia o que gostaria de comer.

Entre um gole de bebida e uma lágrima tímida e salgada, temperou a melhor receita da sua vida: a última. E, então, choveu no seu dia que era branco.

Sozinha, ela desligou o fogão. Parecia apetitosa a sua comida. Ela não comeu. Veio a náusea e ela não comeu. Silenciou a música da caixinha. Deu o gole derradeiro e esvaziou o copo e o coração. Secou o rosto. Fechou os olhos e respirou bem forte: hoje, quem cozinha, não lava a louça. Riu. Alto. Riu muito. Até cair. Sem ar, sem fome. De pijama preto.

Seus dias nunca mais foram assim. A panela segue cheia de pedaços mal passados. E a pia segue suja. Para sempre.

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Inspiração

É com minha escrita que eu sei ser eu mesma, com minhas plenitudes e minhas dores, com o bonito e o feio da alma, com meus choros e sorrisos, com minhas crenças e valores, com meus vazios e quando transborda. Escrever é minha essência materializada em forma de palavras. Sou eu. Inteira. Nua. Escancarando aquilo que me faz ser. Simplesmente, ser.

Sobre a obra

O que sinto à flor da pele e sai em forma de prosa ou verso é pulsante demais para ficar guardado em minhas entranhas mais escondidas. Então, tento do jeito que imagino que tentar seja. Faço forças do meu jeito e na minha proporção. Luto como consigo lutar. Reconheci que isso é meu valor, e não o meu defeito. Contar histórias é perenizar o existir.

Sobre o autor

Sonhadora dos pés no chão, vivendo e sobrevivendo. Solitária, presa num universo paralelo barulhento e lotado, por circunstância. Entregue ao existir por pura crença. Profissional dos números de dia, que converte contas em versos de noite, para aliviar aquilo que transborda. Amante das palavras. Em essência: só uma bancária que queria ser artista.

Autor(a): RENATA BOER EUGELMI (Renata Boerr)

APCEF/SP


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