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Cinquenta reais (ou mais)
Ele chegou com a sua voz grossa, falando alto, daquele jeito costumeiro de quem tem sempre algo positivo para dizer.
Cumprimentou com o abraço firme, agradou os gatos, brincou com a cachorra que insistia em pedir colo. Aceitou metade da xícara de café que eu ofereci.
Ansioso, sentou-se no par vazio das poltroninhas da copa, tinha uma folha impressa na mão na qual líamos a cifra de uma música caipira raiz, e já foi logo mandando (porque, suas propostas são sempre ordens que não conseguimos descumprir): dou-lhe cinquenta reais por cada música que você tirar para que eu possa cantar com você.
Nicola, que estava com o violão no colo no par ocupado das poltroninhas da copa, logo procurou o meu olhar para tentar entender e responder com mais segurança e, de pronto, já disse ao avô que sim, topava o desafio (depois, confidenciou-me que não quereria o dinheiro).
Ele, então, entregou a folha impressa e já determinou qual seria a primeira moda do repertório. Combinaram os tempos de ensaio, acordaram a forma como fariam e pronto, tudo estava encaminhado como ele sempre imaginara.
Ele, à sua maneira de chegar já saindo, levantou-se, emendou um outro assunto, falou do preço absurdo do tomate, da temperatura àquela hora da manhã, contou uma piada que fez a sua amiga-quase-namorada-à-distância rir muito (e rimos também!), bradou a incredulidade num Deus que pune, e se despediu, porque logo cozinharia o seu próprio almoço no sossego da sua casa. Sozinho. Sem pedir opinião sobre o prato que deveria fazer, a que horas poderia servir, sobre o lavar das louças ou a trilha sonora do momento de preparar tudo.
Seu Zé sempre me disse, desde que o conheço, há vinte anos, que ser absoluto (ele prefere falar assim em vez de usar a palavra "sozinho") tem lá as suas vantagens, mas, tem também os seus pesares. Isso foi algo que carreguei comigo ao longo de todo esse tempo, mas, que passou a fazer mais sentido quando me separei, há dois anos e meio.
Hoje, quando ele chegou para tomar um café e propôs ao neto os cinquenta reais pelas músicas, foi como se eu tivesse entendido, finalmente, o significado de ser absoluto. É bom, mas, é ruim. É fácil, mas, é difícil. É gostoso, mas não é. Dá paz, mas, causa desconfortos. Seu Zé, ainda que, talvez, não saiba, sempre me ensinou muitas coisas e eu tenho todas elas guardadinhas aqui, nas gavetinhas com a etiqueta do nome dele.
Hoje, no entanto, foi um dia especial. Aprendi algo que vai me nortear nesse caminho tortuoso que é o viver: ser sozinho tem o seu preço. Cinquenta reais, mais, menos, seja lá qual for. Mas, tem. E esse, sim, é um valor absoluto.
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Inspiração
É com minha escrita que eu sei ser eu mesma, com minhas plenitudes e minhas dores, com o bonito e o feio da alma, com meus choros e sorrisos, com minhas crenças e valores, com meus vazios e quando transborda. Escrever é minha essência materializada em forma de palavras. Sou eu. Inteira. Nua. Escancarando aquilo que me faz ser. Simplesmente, ser.
Sobre a obra
O que sinto à flor da pele e sai em forma de prosa ou verso é pulsante demais para ficar guardado em minhas entranhas mais escondidas. Então, tento do jeito que imagino que tentar seja. Faço forças do meu jeito e na minha proporção. Luto como consigo lutar. Reconheci que isso é meu valor, e não o meu defeito. Contar histórias é perenizar o existir.
Sobre o autor
Sonhadora dos pés no chão, vivendo e sobrevivendo. Solitária, presa num universo paralelo barulhento e lotado, por circunstância. Entregue ao existir por pura crença. Profissional dos números de dia, que converte contas em versos de noite, para aliviar aquilo que transborda. Amante das palavras. Em essência: só uma bancária que queria ser artista.
Autor(a): RENATA BOER EUGELMI (Renata Boerr)
APCEF/SP
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