A raiz da mandrágora

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Estamos no ano de 1.840 e uma família inglesa parte de Southampton em direção ao Brasil. O Sr. Jackyn Andrews fora destacado para uma importante missão no consulado britânico deste lado do Atlântico e não via a hora de assumir o cargo. Havia ouvido maravilhas acerca da capital brasileira e decidiu que seria aí que terminaria seus dias. A Sra. Valentina M. Andrews, por seu lado, estava apreensiva, adaptar-se-ia a tão distinta realidade? Já os filhos, Kimberly, de 20 anos, Layla, de 15 e Theodore, de 10, estavam amando a coisa toda, parecia que seria pura diversão e aventura a viagem.
Em 1.840, essa viagem seria uma jornada longa e desafiadora, repleta de expectativas e incertezas. A família estava embarcando em uma viagem transatlântica que poderia durar de quatro a oito semanas, dependendo das condições do tempo e do mar.
Antes da partida, a família gastou muito tempo em minuciosos preparativos. Roupas, alimentos, livros e alguns itens de valor haviam sido cuidadosamente empacotados.
Southampton era um porto movimentado, e a cena no cais era animada, com marinheiros carregando provisões e passageiros se despedindo de seus entes queridos. As tias e primos estavam todos lá.
O navio, grande embarcação a vela, tinha cabines pequenas e espartanas. A família havia reservado uma cabine particular, mas mesmo as acomodações mais confortáveis eram por demais modestas para os padrões modernos. Não seria uma jornada só de prazeres; problemas poderiam surgir.
Durante a viagem, a vida a bordo foi marcada pela monotonia e pelos desafios do mar. O espaço era limitado, e as atividades diárias consistiam em caminhar pelo convés, ler, jogar jogos de tabuleiro simples e apreciar a vista do mar. Para os jovens, uma mistura de emoção e tédio, longos dias sem muitas atividades e umas poucas surpresas como uma tempestade ou uma festa promovida pela tripulação. Os pais procuravam não pensar na viagem em si, planejavam a vida em um novo país.
As refeições eram geralmente simples e repetitivas. A comida a bordo era principalmente conservada para durar toda a viagem: carne salgada, biscoitos duros, batatas, e uma pequena quantidade de frutas frescas no início da viagem. A água potável era racionada, e o clima influenciava diretamente a qualidade da viagem. Em mares calmos, o humor a bordo era mais leve, mas tempestades e mar agitado causavam desconforto e medo.
Mas não há mal que sempre dure. Sãos e salvos e com todos seus pertences, após semanas no mar, a visão da costa brasileira foi um alívio bem-vindo. A família, exausta da longa viagem, foi recebida por um clima quente e tropical, muito diferente do que estavam acostumados na Inglaterra. O Rio de Janeiro, com seu porto movimentado, montanhas imponentes e vegetação exuberante, oferecia uma vista impressionante! Desembarcar no Rio era uma experiência caótica, com o porto cheio de mercadores, trabalhadores e outros passageiros, mas era terra firme sob os pés outra vez.
Do porto à casa alugada pelo consulado foi muito rápido. A família sabe que se ajustará gradualmente ao novo ambiente, enfrentando a barreira linguística e as diferenças culturais enquanto começa sua nova vida em um continente distante e exótico. Mas esta será sua vida!

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O tempo, ah o tempo, passa e, em dez anos, a família está plenamente adaptada ao novo ambiente. Kim, a filha mais velha, casou-se com um brasileiro e moram na vizinha cidade de Niterói. Layla, inconformada com a situação da mulher jovem que não podia estudar em nível superior no Brasil, voltara à Inglaterra e cursava Literatura no Bedford College em Londres. O caçula, Theo, estudava Biologia com foco em Botânica e já trabalhava como botânico no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Ainda morava com a família, mas passava o dia fora. Sr. Andrews continuava firme no consulado e a aposentadoria se aproximava.
Dona Valentina andava entediada da casa vazia e reclamou ao marido a falta que sentia de alguma atividade cultural em família. Sentia falta do agito dos primeiros dias… E o chefe da casa rapidamente encontrou um programa que certamente agradaria a todos: uma companhia inglesa de teatro, a Royal Victorian Players, de Lindchester, viria ao Brasil em algumas semanas: a primeira encenação de “Romeu e Julieta” de Shakespeare aconteceria ainda em 1850, no Teatro São Pedro de Alcântara, na cidade do Rio de Janeiro.
Assistir a uma peça de teatro nessa época no Rio de Janeiro era um evento importante e geralmente reservado para a elite da sociedade. O Sr. Andrews comprou ingressos com muita antecedência e a família se preparou com suas roupas mais elegantes para a ocasião. Kim e o marido vieram também; passariam uns dias na casa da família fazendo companhia à mãe dela.
Chegado o grande dia, uma carruagem alugada os levou até o teatro com tempo suficiente para socializar e encontrar seus lugares antes do início da apresentação.
Durante a peça, a família Andrews se sentou em um camarote. Cada um tinha trazido binóculos para ajudar a ver a ação no palco com mais clareza. Depois da peça, eles participariam de um coquetel com jantar oferecido pelo cônsul em um clube chique da cidade, onde conversariam sobre a apresentação e se divertiriam com outros colegas de trabalho e amigos do Sr. Andrews.
Mas agora silêncio, a peça está se desenrolando no palco.
Sr. Andrews estava prestando muita atenção e ficou de boca aberta ao ver e ouvir Julieta, ao falar da poção que a faria parecer morta, na cena III d ato IV, comentar que a mandrágora, um dos componentes da fórmula, grita ao ser arrancada da terra, deixando loucos os que ouvirem o seu grito.
Cochichou para Theo: - Conhece mandrágora?
- Psiu, depois nos falamos. Theo cochichou de volta.
Depois da peça, já no clube, o Sr. Andrews colou-se ao filho, o cunhado foi fumar no jardim e as mulheres de fato socializavam, conversavam com um e com outro e assim se divertiam. Os dois foram para um canto:
- Theo, me conta, como é esta raiz da mandrágora? Pareceu-me, por demais, assustadora na fala de Julieta!
- Não, papai, não é para tanto. Mas há lendas… A raiz da Mandragora officinarum é geralmente bifurcada, com uma aparência que se assemelha a uma figura humana, o que contribuiu para as crenças populares. A lenda da mandrágora que grita é uma crença antiga que foi registrada até por escritores da antiguidade. Segundo a lenda, quando a raiz da mandrágora é arrancada da terra, ela emite um grito que pode ser fatal para quem o ouve. Para evitar isso, algumas versões da lenda sugerem que a raiz deve ser desenterrada por um cão ou por um homem surdo, ou que deve ser cercada por espelhos para que o grito seja refletido em vez de ser ouvido diretamente. Mas, como eu disse, lendas…
- Nossa, agora fiquei ainda mais curioso. Há mandrágora no Jardim Botânico?
- Por acaso, há. Recebemos mudas de Portugal e estamos aclimatando. Pode ir lá conhecer uma hora destas.
- Vou mesmo. Agora vamos enturmar com os convidados do cônsul. Sua mãe e sua irmã já estão nos olhando de cara feia.
- Vamos.

3
No dia seguinte, Theo chega e conta aos colegas sobre a peça, o evento e a curiosidade do pai. E diz a eles que o pai virá conhecer a planta. Os colegas, invejosos do sucesso do inglesinho, resolvem então que vão lhe armar um embuste. E perguntam-lhe quando o pai virá. O rapaz diz que não sabe ainda, que combinarão o melhor dia. Os rapazes esolvem então ficar de olho para a chegada do momento.
Dias depois, o Sr. Andrews aparece no Jardim Botânico na companhia do filho. Cumprimentam os colegas de Theo e se dirigem para as estufas.
Chegando ao local onde as mandrágoras estavam, o rapaz se agachou para arrancar uma delas, enquanto o pai observava com certa hesitação. No exato momento em que a raiz foi puxada da terra, um grito estridente ecoou, fazendo o Sr. Andrews pular de susto, com o coração acelerado. Ele agarrou o braço do filho, os olhos arregalados de medo.
Mas o rapaz, que havia notado algo estranho na situação, permaneceu calmo. Ele rapidamente olhou ao redor, percebeu de onde e de quem vinha o grito. Fingindo que nada tinha acontecido, tranquilizou o pai e propôs que voltassem para casa. Em casa, contou ao pai que foram os colegas que deram o grito e que tudo era mesmo apenas lenda, mas ficara preocupado com a possibilidade de algo pior acontecer.
- É mesmo. Brincadeira perigosa. Podia ter assustado alguém até a morte. Nunca se sabe a consequência de um grande susto. Mas deixa comigo.
Sr. Andrews não era alguém que levasse desaforo para casa. Foi ao chefe dos rapazes e pediu-lhe que devolvesse o susto. O chefe indignado queria demiti-los sumariamente, mas o inglês demoveu-o da ideia.
- Preciso apenas que passem um susto, demitir é demais. Há outras pessoas que dependem do fruto do trabalho deles.
Fizeram então como Sr. Andrews queria. Foi convocada uma reunião com os moços e, quando eles lá chegaram, já ficaram preocupados com o chefe na companhia do Sr. Andrews.
- Muito bem, rapazes. Quer dizer então que, em vez de trabalharem, ficam, como crianças, aprontando traquinagens no horário do expediente?
- Não fizemos nada… Gaguejaram.
- Fizeram sim. Pregaram um susto no meu amigo aqui que poderia ter tido consequências mais graves. Estão demitidos. Passem no RH e peguem suas contas.
- Mas senhor… Por favor, reconsidere, foi só uma brincadeira.
- De mau gosto! Eu só reconsideraria se o Sr. Andrews me pedisse.
- Por favor, Sr. Andrews, tenha compaixão.
- Prometem pensar duas vezes antes de assustar alguém novamente?
- Claro!
- Reconsidere, por favor, senhor diretor. Eu os perdoo.
De volta à casa, contou a Theo o que sucedeu e disse:
- Passei um susto bobo por uma superstição, mas os rapazes levaram um susto bem maior. E ainda ficaram me devendo obrigação!
- Ah, papai! Eles mereceram... Você, meu lorde, deu-lhes a devida lição.

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Inspiração

Ao reler o livro Romeu e Julieta, de Shakespeare, quis escrever algo de época que envolvesse a peça.

Sobre a obra

É um conto em três partes ambientado nos anos 1.840-1.850.

Sobre o autor

Sou um experimentador. Fotografo, pinto, desenho e escrevo experimentando o prazer da criação.

Autor(a): JOAQUIM MARCELINO DE ANDRADE NETO (Lino Neto)

APCEF/DF


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