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Pés Gelados
Um casal de classe média – assim como qualquer outro casal de todas as outras classes – quando chega a noite, quer deitar e repousar o espírito, descansar o corpo e aliviar a mente dos problemas e das dificuldades de mais um dia conturbado.
Ele, funcionário público, e ela, dona de uma loja de roupas, vivem juntos já há um bom tempo. Apesar de ainda não terem passado dos 40 anos, conseguem viver um com o outro permitindo-se desfrutar daquela cumplicidade que só o tempo é capaz de firmar.
É claro que, vias de regra, existem problemas em seu relacionamento. Um acesso de raiva, uma pontada mais forte de ciúme ou mesmo um tubo de creme dental apertado no local errado podem gerar conflitos. Mas nada muito forte. Nada que uma boa noite de cama não resolva. Não necessariamente de cama, mas na cama. Uma noite de amor, sem dúvida, destrói qualquer ressentimento. Mas a chance de poderem dormir abraçados àquele alguém especial equivale, em intensidade e em qualidade, a todas as formas de perdão.
O frio cortante do inverno, o silêncio estimulante e a vontade de poder sentir o perfume do outro corpo certamente são fatores que despertam o interesse dele. Naquela noite de um dia difícil, quando os dois estão deitados, a televisão desligada e só o relógio pendurado na parede se pode ouvir, ele se aproxima dela.
Com um braço, a envolve. Seu rosto, coloca-o próximo à nuca dela. Aproxima seu corpo, parte por parte. Em pouco tempo já está colado à mulher.
Ela, de costas para ele, está levemente adormecida, mas ainda consegue perceber a acalentadora aproximação. É bom sentir que ele está ali. É bom tê-lo por perto.
Contudo, ainda que o abraço dele a enlouquecesse de paixão, ela jamais conseguira suportar aquela aflição fria a lhe oprimir o coração a cada vez que ele encostava seus pés nas pernas dela.
— Sai! Sai! Sai!
— Que foi?
— Desencosta!
— Por quê?
— Seus pés estão gelados!
É... Os pés gelados dele eram um dos principais pontos geradores de conflitos.
— Mas que culpa tenho eu?
— Nenhuma, mas desencosta!
Ainda que chateado, ele atendeu o pedido: afastou-se e voltou o corpo para o outro lado.
No fundo, no fundo, sempre que uma discussão se construía a partir daquela pedra fundamental – a partir dos pés gelados – ele sentia uma tristeza infinita. Pois sabia que não tinha culpa por ter os pés gelados, e não fazia a mínima ideia do que poderia fazer para resolver esse problema.
Virados agora um de costas para o outro, tudo o que sentiam era o calor do outro corpo que se embrenhava por debaixo das cobertas e funcionava como um imã, atraindo-os para mais perto.
Logo, os dois já estavam encostados novamente.
“Talvez” – ele pensou – “se eu tomar cuidado, posso ficar assim. É só cuidar com meus pés. Só preciso me ajeitar um pouquinho.”
Infelizmente, na tentativa de se ajeitar, ele se descuidou com os pés, e eles, gelados, tocaram a pele aquecida de sua esposa, que prontamente reclamou:
— Lá vem você de novo! O que foi que eu disse? Não quero esses pés gelados encostando em mim!
— Desculpe. Mas eu tento me conter. Eles é que não obedecem.
— Olhe, sinceramente, eu acho que é melhor você ir dormir no sofá da sala.
— Naquele sofá velho, cheio de ácaros, com esse frio? Você quer me matar de vez?
— Então, por favor, dê um jeito de esquentar seus pés! Ou, pelo menos, deixe-os bem longe de mim!
— Eu tento, eu tento. Mas é difícil! Não há modo de fazer com que esses malditos se aqueçam!
— Oras, não culpe os pobres coitados!
Tudo bem. Ele não os culpou.
Não dessa vez.
Só ousou erguer insultos contra a base de seu corpo quando, pela terceira vez naquela noite, ouviu as queixas da mulher:
— Será que você não consegue se controlar?
— Desculpe! Eu já tentei aquecê-los, mas nada funciona.
Ela sai da cama e, lutando contra o frio, vai até a cômoda. Abre uma das gavetas e pega um par de meias. Volta para debaixo das cobertas e entrega as meias ao marido.
— Aqui. Vista-as. Quem sabe assim as coisas se resolvam.
Mas as coisas não se resolveram.
Nem com aquele, nem com o quinto par.
Foram trinta minutos desperdiçados na tentativa de fazê-lo se aquecer. Trinta minutos perdidos em vão, pois seus pés continuavam gelados.
Ela bem sabia que deveria compreendê-lo, afinal, que culpa tinha ele? Mas o incômodo frequente, inverno após inverno, começava a perturbá-la. Ela estava cansada de não poder descansar uma noite sequer por estar preocupada em evitar a friagem repentina, acompanhante do mortificante toque daqueles pés gelados.
Um tanto ensandecida, decide que é hora de tomar uma atitude: vira-se de frente para o marido – podendo sentir a respiração dele sobre seu rosto – e fala, com a máxima calma a qual a situação lhe permitia cultivar:
— Querido? Eu quero o divórcio.
— COMO? – mesmo no escuro se pôde perceber o tom pálido do rosto dele.
— O divórcio. Não posso mais aguentar essa situação.
— O que... – a voz lhe faltava. – O que foi que eu fiz?
— Você? Nada. Absolutamente nada! Eu ainda te amo.
— Então?
— Mas são seus pés! Eles é que não me deixam em paz.
— Eu já disse: não tenho culpa por eles serem tão gelados!
— Sei disso muito bem. Não pense que eu o culpo... Mas, infelizmente, não posso continuar a sofrer dessa maneira...
— Não. Eu não te dou o divórcio. Você é minha esposa, e deve me ajudar a encontrar a solução para esse problema.
— Querido, seja realista, sim? Nós já tentamos de tudo: meias, sapatos de lã, pantufas, bolsas de água quente... Até aquele cobertor elétrico que sua mãe nos deu já foi usado. E nada adiantou. Por favor, aceite que isso não tem solução.
— De maneira alguma! Eu me recuso a aceitar que não exista solução. É claro que ela existe. Nós é que ainda não fomos espertos o suficiente para encontrá-la.
Frente à teimosia dele, ela se viu obrigada a tomar uma atitude extrema.
— Você acha que ainda existe uma solução? Pois eu sei de algo que ainda não tentamos.
Novamente saiu da cama. Dessa vez, porém, foi até a cozinha, abriu a gaveta das facas, pegou um cutelo e voltou para o quarto.
— Para que esse cutelo?
— Você não queria uma solução? Ela está aqui.
— Não entendo o que você quer dizer.
— É simples: corte seus pés! Assim o problema se resolve.
Como os dois estivessem discutindo por bem mais de duas horas, o cansaço passava a tomar conta deles e seus atos tornavam-se cada vez mais impensados.
— Você está louca?!
— Sim. Louca de sono! Não consigo mais! Não aguento mais! Eu quero dormir! Dormir!
— Tudo bem. Se é isso mesmo que você quer, dê-me esse cutelo.
Ela entregou-lhe o objeto de metal.
— Agora posso tentar dormir com a certeza de que você dará um jeito em tudo?
— Pode.
Ela se deitou novamente, voltada para a parede, deixando-o às suas costas.
Sentado, ele olhava fixamente para o cutelo. Seria um movimento rápido. Estava cansado por demais para se estender ainda por muito tempo. Precisava dormir. Além do mais, quão difícil poderia ser cortar os pés? Estava decidido: não se arrependeria! Fecharia os olhos e zupt! – tudo desapareceria. E ele poderia dormir sossegado. Porque sua mulher dormiria sossegada. E ela não mais acordaria várias vezes durante a noite somente para reclamar de como os pés dele estavam gelados, de como não a deixavam dormir, de como a incomodavam. Dessa forma, livre dos barracos da mulher, dormiria sossegado, uma noite inteira, todas as noites. E acordaria bem todas as manhãs. Junto com os pés, ele cortaria as reclamações da mulher, porque certamente ela não teria mais do que reclamar. E ela não mais o acordaria. Sua mulher... quando ele tivesse os pés cortados, ela nunca mais ousaria perturbá-lo numa noite de sono. Melhor de tudo: ela nunca mais traria aquele cansaço que tanto o consumia. E ele, por fim, poderia deixar de uma vez por todas essa certeza repentina que surgira em sua consciência e que lhe afirmava que, muito mais do que seus pés à mulher, era sua esposa quem o incomodava todas as noites, minando suas horas de sono, estragando seu repouso e fazendo apodrecer toda e qualquer possibilidade – mesmo ínfima – de descanso.
Sim! O cansaço lhe fazia perceber que era a mulher que o incomodava todas as noites, e não o contrário. Mas isso acabaria em instantes. Num movimento mais do que rápido ele cortaria, e tudo voltaria ao normal.
E foi tudo mesmo muito rápido. Tanto que a esposa, virada para a parede, nem se deu conta do que aconteceu.
Ele olhava para o cutelo sujo de sangue. Olhava para seus pés gelados. Estampava no rosto um sorriso de satisfação. Poderia, finalmente, dormir.
Enquanto isso, ao seu lado, a esposa, com o pescoço cortado, não respirava, sequer agonizava. Tudo acontecera realmente muito rápido. Ela nem fora capaz de ver o brilho de alegria nos olhos dele quando ele se lançou sobre seu corpo e, num golpe certeiro, varou seu pescoço.
— Pronto, querida. – dizia ele para a esposa, crente que ela ainda podia escutá-lo (o cansaço confundia sua razão, criando alucinações desse tipo) – Agora, finalmente, você pode dormir. Descanse... Descanse bastante... Descanse em paz... Porque eu também dormirei no mais completo sossego. Nem meus pés gelados me incomodarão.
De forma terna, assim como são as relações dos casais que se amam, ele dá um beijo de leve no rosto retorcido da companheira. Em seguida, deita-se sob as cobertas, vira para o lado contrário ao corpo dela, deixa o cutelo cair num lugar qualquer ao lado da cama e fecha os olhos. Adormece com aquele sorriso de satisfação ainda estampado no rosto.
Mas ele não dormiu por muito tempo.
Porque, no frio do inverno, o corpo sem vida que jazia ao seu lado não tardou a enrijecer.
E, assim como enrijeceu, ficou gelado.
E aquele homem não conseguia dormir ao lado de corpos gelados.
Por esse motivo, resignado com a inata capacidade da mulher de perturbar seu sono, ele se levantou e, carregando somente seu travesseiro, foi dormir no velho sofá da sala.
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Inspiração
"Pés Gelados" é um conto que retrata de maneira bem humorada uma situação cotidiana de um casal. É uma histórica satírica, que mostra como os pequenos detalhes que constroem um relacionamento podem trazer sérias consequências. No fundo, é um grito de alerta para a importância de se dar atenção a todos que sofrem com a dureza de ter pés gelados.
Sobre a obra
As relações do cotidiano, adornadas com uma pitada de humor nonsense, criando uma alegoria da vida. Uma tragicomédia fictícia, parte real, parte imaginada.
Sobre o autor
Publicitário de formação, economiário de ocupação e escritor de coração, sou um contador de histórias de final de semana. Autor dos livros "Prazeres" (contos eróticos), "Atemporal" (contos) e "Diário do Lobo Solitário" (romance a ser lançado ainda neste ano de 2024), gosto de retratar cenas banais do cotidiano amplificadas pelo filtro do absurdo.
Autor(a): DIEGO RAMON VALLE VITAL (Diego Vital)
APCEF/SC