- Página inicial
- Detalhe obra
A Última História
Esta poderia ser uma rua em qualquer cidade do mundo inteiro, afinal, tudo sempre acontece da mesma forma, em todos os lugares: observando todo esse ir e vir, as pessoas com os passos apressados, estranhos que se cruzam, passam a metros, centímetros, quem sabe, um do outro. Eles não se conhecem, nunca se viram – a não ser por esse instante exato no qual seus caminhos se tocam. Dois passos adiante, já não se lembram daqueles que ficam para trás. E nem isso os abala. Nada parece afetá-los. Tudo parece normal.
Aqui, parado junto à calçada, com meus olhos bem abertos, a boca bem fechada, eu apenas os observo. Acompanho seus movimentos. Vou do grupo de crianças que volta para casa depois de mais um dia repleto com um aprendizado inútil que nunca lhes servirá, com suas pesadas mochilas penduradas às costas, ao vendedor da loja de móveis de passos acelerados, que entra correndo na lanchonete para engolir um sanduíche sem gosto antes de voltar para mais uma tarde de luta em busca dos míseros trocados que movem sua vida. Vejo os skatistas que aceleram em meio aos carros, o povo das bicicletas que costura os pedestres sobre as calçadas. Vejo aqueles que andam a esmo, sem saber aonde vão. E também aqueles que julgam ter chegado a algum lugar, por isso mantêm a coluna sempre ereta e a cabeça elevada, com o queixo apontado quase para o infinito, nessa postura de pompa e autoconfiança.
Eles podem não me conhecer, mas todos me vêem. Não prestam a menor atenção, é verdade. Provavelmente porque não sou desses tipos que agradam facilmente. Tenho minhas peculiaridades. Cativo meu público específico. Ainda assim, todo dia, do mesmo jeito que venho fazendo pelos últimos 40 anos, fico aqui, parado, quase adormecido, observando o movimento.
Em todo esse tempo, muita observação já foi feita. Se fosse dado a tirar conclusões, criar hipóteses ou formular postulados, não faço ideia de quantos livros, tratados, artigos, enciclopédias ou alfarrábios conseguiria escrever. Material de trabalho – insumo, como dizem alguns – não me falta. Ainda assim, tenho quase certeza que eu pecaria pela originalidade. Meus escritos não seriam cativantes por trazerem alguma forma nova de pensar. Talvez nem mesmo conseguissem introduzir nessa realidade que nos envolve algum personagem diferente, imerso em um enredo instigante e totalmente surpreendente. Porque, cá entre nós, estou quase certo de que todas as histórias do mundo já foram contadas. A originalidade, então, é uma mentira na qual todos os homens se permitem acreditar. Muitos, inclusive, se dispõem a procurá-la nos lugares mais estranhos. Exercícios, testes, incentivos, estimulantes, chame do que quiser. No fim, tudo não passa de um esforço jogado fora. Porque tudo aquilo que é novo não passa de um velho arranjo de coisas que já foram novas em algum momento, mas que agora não passam de velharia. Uma colcha de retalhos de ideias que se unem de um jeito diferente. Novas abordagens, novas formas de apresentação dos mesmos personagens.
Então, por favor, não tome por incoerente isso que eu vou lhe falar. Não pense tratar-se de alguma estratégia sombria de minha parte, algum artifício maquiavélico do qual lanço mão para tornar-me o centro das atenções. Sei que não sou diferente de muitos, aliás, por tão semelhante que sou, dificilmente me destaco no meio da multidão.
Ainda assim, aqui, parado na calçada, à beira dessa estrada por onde circulam milhares de pessoas, num mundo onde tudo o que poderia ser criado já o foi e as novidades não passam de velharias banhadas por caldos de nova roupagem, eu tenho uma história para contar.
Talvez a única história do mundo que ainda não tenha sido contada.
É a história inumana de um homem e seu sonho de fama, riquezas e glória.
* * *
Eu o conheci em uma época na qual o romantismo ainda fazia algum sentido. Naqueles dias, dificilmente se encontraria alguma jovem mulher andando desacompanhada pela rua. Todas sempre vinham acompanhadas, pelas amigas, pelos pais ou mesmo por um suposto pretendente. Andavam sempre de cabeça baixa, fitando o chão, como se sentissem vergonha de desfrutar a liberdade de um passeio ao final da tarde, mesmo que tal passeio se limitasse ao curto trajeto entre suas casas, o último ponto do bonde e a catedral no centro da cidade, onde era celebrada a missa do meio-dia. Os homens, todos muito bem trajados, vestiam paletós de lã, em tons sóbrios. Os mais modernos, a quem muitos atribuíam certo ar de rebeldia, trocavam o calor da lã pela maleabilidade do algodão. Mas todos, invariavelmente, vestiam seus paletós. E chapéus. Impossível esquecer os chapéus!
Seu nome era Otávio. Não fomos oficialmente apresentados. Na verdade, jamais troquei uma palavra com ele. Fiquei sabendo que todos o conheciam por “Belmonte – O Rouxinol da Melodia” quando seu José – o atarracado zelador que comia, dormia, acordava e gastava o pouco tempo de vida que ainda lhe restava no quartinho dos fundos, remoendo o sofrimento que as lembranças de seus cinco filhos mortos no front de batalha lhe causavam – colou na fachada, no espaço destinado às filipetas e aos programas das futuras apresentações, o cartaz com as datas dos próximos shows.
Otávio – ou Belmonte, como preferir – era cantor. Com sua voz grave, hipnotizava a plateia com seus boleros cheios de dor e de amor. Arrancava suspiro das mulheres e lágrimas escondidas dos olhos sempre austeros dos homens. Ainda que não tivesse voz de timbre tão potente, certamente continuaria fazendo bater acelerado os corações juvenis. Não era, de fato, muito atraente, mas o jeito com que os fachos de luz caiam-lhe perfeitamente bem sobre a figura e sua presença de palco faziam com que, de alguma forma, ele se tornasse hipnotizante. Devia ter algo em torno de 30 anos, mas, apesar de sua curta existência diante de todo o tempo de uma vida, trazia impressa em si a experiência que só uma precoce carreira cantando em bordéis, casas noturnas e teatros menos afamados podia lhe conferir. Não fosse o fino bigode a lhe cobrir o lábio superior, dado o tom ferroso de sua pele, poderia muito bem ser confundido com um Humphrey Bogart dos trópicos.
Pois se toda boa história precisa de três elementos para poder ser contada, o autor e o local nós já conhecemos. Falta-nos, então, a delimitação temporal, a localização cronológica dos fatos. Cabe-me, portanto, dizer que essa história – talvez a única que ainda não tenha sido contada! – aconteceu com Belmonte, sob as luzes da ribalta, justamente no dia de sua estreia sobre aquele palco.
Todos os ingressos haviam sido vendidos antecipadamente. Dado o alvoroço causado tão logo seu José fechou a vitrine de vidro, depois de colar o cartaz com a programação do show, não me espantou o fato de ver uma longa fila se formar à entrada assim que a bilheteria foi aberta. Isso acontecera uma semana antes daquela primeira apresentação. Por isso, no dia do espetáculo, assim que Belmonte assumiu seu espaço no lugar marcado com um grande “x” no meio do palco e as cortinas se abriram, o Grande Salão estava lotado. Não restava cadeira vazia para contar história diferente.
Nem Shakespeare conseguiria descrever com propriedade a emoção que tomou conta daquele salão na hora e meia que se seguiu. Enquanto Belmonte passeava por entre acordes, letras e melodias, as namoradas se agarravam ao braço de seus pretendentes, os maridos seguravam o fôlego para não dar a entender às esposas que sentiam algum tipo de emoção, as amigas que compraram ingresso escondidas dos pais e tinham saído sorrateiramente de casa para assistir o espetáculo suspiravam languidamente ao se lembrar de amores impossíveis que ainda não haviam vivido, empresários da alta sociedade tentavam puxar pela memória a data em que as esposas retornariam da viagem à Europa enquanto maquinavam a desculpa que dariam às amantes depois de deixá-las entregues ao prazer de mais uma noite embevecida pelo doce sumo da arte.
Todos ali dentro vivenciaram emoções indescritíveis.
Até que o show chegou ao fim.
Belmonte cantou seu último bolero, o “Não Deixes Que Me Vá”, com o ar maroto de quem conhece o protocolo das peças que se pregam. Ao terminar, como de praxe, agradeceu a presença de todos, agigantou-se numa reverência desmedida, distribuiu piscadelas para as fãs sentadas na primeira fileira – a quem, durante toda a apresentação, havia destinado olhares furtivos que esquadrinhavam todo o exíguo trecho de pele que as saias compridas dolosamente descaídas sobre as pernas cruzadas deixavam à mostra – e esperou as cortinas se fecharem.
Assim que o veludo vermelho cortou sua visão da plateia, ele se pôs ereto novamente. Pegou a toalhinha que sempre deixava em um banquinho alto ao lado do microfone. Secou o suor que lhe embebia o bigode. Apressou-se em enxugar também a testa, que já apresentava pontos brilhantes. Tomou um gole de água. Estalou os lábios. Deliciou-se com os gritos tímidos de “Mais um! Mais um!” que ouvia, vindos do outro lado da cortina.
Ele sabia que já era hora de voltar, o momento exato de mostrar aos fãs o quanto eles eram importantes para ele e que, justamente por isso, se permitia quebrar o protocolo e presenteá-los com mais duas ou três canções de amor. Mas ele gostava em especial desse momento. Seus rompantes de egocentrismo não o permitiam simplesmente voltar e finalizar aquilo que havia começado. Ele precisava dessa bajulação. Precisava cada vez mais. Como um vício nunca saciado, Belmonte se permitia saborear esses momentos sem maiores preocupações. Enquanto isso, do outro lado, os gritos se tornavam mais fortes. Todos queriam mais uma pitada de seu talento. Eles o ovacionavam. Mais que isso, necessitavam de outra dose do “efeito Rouxinol”.
Em sua cabeça, Belmonte tecia eloquentes elogios a sua atuação, a seu talento, a seus dotes de cantor e, inclusive, a sua própria existência. Quando se deu por minimamente satisfeito, fechou os olhos. Pegou o microfone com a mão direita, enquanto com a esquerda secava as últimas gotas de suor. Abriu os braços. Imprimiu nos lábios o mais cativante sorriso. Com um imperceptível aceno de cabeça, fez as cortinas se abrirem.
A ovação ainda ecoava em sua cabeça quando ele abriu os olhos.
A surpresa, então, fez-lhe cair o queixo. A expressão de exultante felicidade deu lugar a traços fundos na testa, que se contorceu em dúvidas. Deixou cair os braços ao lado do corpo. Como ecos do passado, os pedidos de “Mais um! Mais um!” ainda ressoavam em seus pensamentos, parecidos vir diretamente de seus ouvidos. Aquilo que seus olhos mostraram, no entanto, não condizia com a realidade de seus sentimentos.
Porque, do alto de seu pedantismo, ele julgou ouvir todo um teatro, mais de 300 cadeiras ocupadas, clamando por seu nome, pedindo seu retorno. Mas quando abriu os olhos, viu que o Grande Salão estava vazio. O espaço que horas atrás faltava, agora era abundante. Tudo o que se ouvia, então, era o compasso arrastado da vassoura de seu José, que, entretido na realização das tarefas que tinha por obrigação, varria o corredor da direita, mais ou menos à altura da décima oitava fileira de cadeiras.
Não fosse o velho zelador, poder-se-ia dizer que não havia viva alma ali naquele espaço. Pois ao dar-se conta da realidade na qual se inseria, a própria alma de Otávio pareceu evaporar. Ele ficou vazio, completamente oco por dentro. E por não ter mais base firme a lhe sustentar, começou a minguar. Foi diminuindo, diminuindo, diminuindo, até que com um estalo surdo, desapareceu, deixando para trás apenas o grande “x” marcado sobre o palco, envolto em gotas de suor.
* * *
Você pode até duvidar. Eu também duvidaria, caso não tivesse sido testemunha do sumiço daquele homem. Afinal, quantas coisas acontecem diante de nossos olhos apenas para nos fazer duvidar de nossa sanidade? Quantos absurdos testemunhamos a todo momento? Quantos acontecimentos se perdem simplesmente por não serem registrados por um par de olhos atentos? Quantas histórias se perdem sem nem sequer conhecer a face límpida de uma folha de papel?
Essa história se passou há muito tempo.
Poderia, de fato, ter acontecido em qualquer lugar, qualquer rua, cidade ou país.
Mas aconteceu bem ali na minha frente.
E foi a última história do mundo.
Agora, tenho certeza, todas já foram contadas.
Compartilhe essa obra
Inspiração
Aqui, nesse conto de realidade fantástica, um teatro ganha vida e assume o papel de narrador para contar aquilo de que foi testemunha. Uma história que, de tão inusitada, por seu caráter inédito e inacreditável, bem pode ser a última história jamais contada neste planeta Terra por contistas, letristas e poetas...
Sobre a obra
Você já parou para se perguntar qual foi a primeira história contada pela Humanidade?
Pois esta bem poderia ser a última.
Todas as outras entre elas - tenho certeza! - alguém já contou...
Sobre o autor
Publicitário de formação, economiário de ocupação e escritor de coração, sou um contador de histórias de final de semana. Autor dos livros "Prazeres" (contos eróticos), "Atemporal" (contos) e "Diário do Lobo Solitário" (romance a ser lançado ainda neste ano de 2024), gosto de retratar cenas banais do cotidiano amplificadas pelo filtro do absurdo.
Autor(a): DIEGO RAMON VALLE VITAL (Diego Vital)
APCEF/SC