TRANSMUTAÇÃO

TRANSMUTAÇÃO
Ervino Paulo Vogelmann*
E P Vogelmann

Ele está imóvel, quase invisível em sua cabana de caça. Vestindo roupas camufladas de cores verde e caqui, está ansioso pela chegada do seu alvo. Atento à pequena rampa de terra e barro à beira do riacho, relembra as inúmeras visitas que fizera àquele lugar isolado da mata. Após inquirir os moradores, matutos que ali habitavam, ele tem a certeza de que é o lugar perfeito para encontrar o responsável pelos rastros deixados na trilha até o bebedouro.
Sua experiência de décadas como caçador lhe diz que é chegada a sua hora gloriosa, em que, finalmente, conseguirá abater o cervo dourado. Ideia obsessiva e cujo propósito o acompanha há muitos anos.
Ele, particularmente, nunca vira o tal animal, no entanto, as histórias e lendas que ouvira da boca de anciãos daquele lugar lhe informaram sobre a existência da tal criatura. Para as testemunhas, seus relatos se confundem com a ficção, pois ninguém apresenta nenhuma prova física de sua existência. Por isso, as histórias se confundem com a ficção e o fazem um personagem da mitologia do lugar. Os notórios contadores das histórias, acreditam que o tal cervídeo é, na verdade, um mensageiro da morte, haja vista que muitos que relataram o terem visto tiveram mortes súbitas.
O animal seria um Criptídeo, afirmavam as testemunhas.
Mas ele, após verificar os rastros deixados na trilha à beira do riacho que serpenteia pela floresta, sabe haver algo mais naqueles relatos. Os vestígios, tufos de pelos dourados presos nos ramos dos galhos secos da vegetação, são motivo da sua esperança.
Então, no início da madrugada, sua vigília é desperta pelo som de cascos sobre o cascalho da rampa que conduz ao bebedouro, do outro lado do riacho.
Ajoelhando-se, com extrema cautela, o vigia encosta o cano da espingarda no apoio de metal, propositalmente, ali deixado, e olha pela luneta em direção à rampa. Os pelos dos braços e de sua barba se eriçam diante da visão. O binóculo da arma, com sua visão noturna, revela um deslumbrante animal. Um cervo adulto, macho, conclui ele, observando o tamanho das galhadas. O tom claro do pelo, sob o reflexo da luz da lua, delineando o seu dorso, confirma a lenda. O caçador fica em êxtase ao confirmar a existência do protagonista das histórias e agora, tem o majestoso animal sob a sua mira. A sua busca de anos finalmente frutificara e o troféu está ali, a alguns metros de distância, do outro lado do riacho.
No entanto, o experiente caçador sente intuitivamente que a sua vítima já o detectara, quando os seus olhares se encontram. Ele vê, através da lente da mira da arma, os olhos grandes e escuros do animal, que estão fixos nele.
Caça e caçador estão na alça de mira, um do outro. Ambos estão imobilizados pela descarga da adrenalina e dominados pela emoção e medo que o momento significa, um para o outro.
O frio da noite provoca baforadas de névoas, visíveis através da luz refletida do luar, resultado da respiração agitada dos personagens desse encontro. O tempo parece estagnado e os segundos que se passam entre a tomada de consciência de que ambos se observam e a tomada de decisão para escapar ao lúgubre destino parecem estendidos, como que em câmera lenta.
Nesse breve espaço temporal, o caçador se percebe atraído pelo olhar do suposto Criptídeo, como se tivesse sua alma sugada para dentro do corpo do animal, e, instantaneamente, parece ter transmutado corporalmente. O caçador sente o peso da galhada sobre a sua cabeça, seus membros transformados em patas e o calor da pelagem a cobrir o seu corpo. Sente o medo da morte pela primeira vez ou notar, do outro lado do riacho, a cabana disfarçada. Agora, sua visão se mostra intensamente poderosa e ampliada pelas lentes grandes e negras dos olhos do cervo. Tomado pelo pânico, ele identifica o homem do outro lado do riacho, pois a visão noturna do animal aproxima as distâncias e o faz ter a impressão de que pode tocar a ponta do cano da arma que reflete os raios da luz lunar.
Ele sente o medo e o suor que lhe escorre pela face até o focinho, por saber das intenções do homem escondido na cabana com a sua arma mortal. A antecipação do perigo lhe permite, em ato de reflexo, um último esforço para sobreviver. Ainda ouve o estampido do tiro e vê a coluna de fumo, resultado da queima da pólvora, entre os arbustos.
Não poderia haver demonstração de empatia tão precisa como aquela; a de estar no corpo de sua vítima.
Dias mais tarde, os amigos do caçador, preocupados, o procuram em razão da falta de notícias e, naturalmente, vão ao encontro do seu local de caça. Chegando em frente à casamata, o encontram.
— Ele passou sua vida obcecado em caçar o cervo dourado, e como Dom Quixote, faleceu perseguindo uma lenda. — comenta um deles.
— Vejam, ali sobre o solo! Ele ainda fez o seu último disparo. — concluiu outro, apontando para um cartucho vazio caído na relva.
O caçador está morto. Fora vítima de um ataque cardíaco fulminante.

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Inspiração

Sempre gostei de ler contos, onde a ficção e a magia se transformam em veículos de interação para inculcar na mente do leitor as lições de vida que nos tornam parte ativa na construção de nossa sociedade. Assim, inspirado nos contos infantis de Esopo, construí uma narrativa mística e de origem sufista para falar da empatia.

Sobre a obra

As figuras do caçador e da caça sempre suscitam discussões éticas importantes. Assim, utilizar esse avatar dos humanos e fazê-lo passar pela angústia da vítima (cervo) me pareceu ser um enredo profícuo para falar de empatia e sofrimento.

Sobre o autor

Gosto de escrever desde os meus doze anos, quando fui despertado para a literatura pelas minhas professoras na quarta séria fundamental. No entanto, agora, aposentado, consegui o tempo necessário para exercitar esse passatempo e que acima de tudo, permite transmitir as experiências de vida e deixar um legado.

Autor(a): ERVINO PAULO VOGELMANN (E P VOGELMANN)

APCEF/RS