inês de Castro

1984 não é somente o nome da famosa (e recomendável) obra de George Orwell; é também o ano em que se passa esta história. Eu tinha 18 anos, estava no segundo ano da faculdade de Matemática e prestando serviço militar obrigatório. Mas vamos retornar um ano para contextualizar essa narrativa.
Terminei o colegial aos dezessete anos e já entrei para a faculdade, curso noturno, eu era o caçula da turma. O governo estadual havia determinado que professores que atuavam nas séries finais do ensino fundamental e no ensino médio sem graduação tinham cinco anos para regularizar sua situação. Naquele tempo era comum atuar no ensino dessas turmas apenas com o curso técnico de magistério e isso era irregular. Pois bem, eu era colega de uns poucos de idade próxima da minha e de uma grande maioria de professores experientes em tempo de atuação e idade.
Minha cidade era uma espécie de sede regional em relação às muitas cidades menores que se localizavam próximas e minha faculdade oferecia um curso de final de semana para que os professores destas pequenas cidades conseguissem frequentar as aulas que, para estes, aconteciam na sexta-feira à noite e no sábado de manhã. Nós, da cidade, frequentávamos de segunda a sábado e cruzávamos com a turma de fora nos dois últimos dias de cada semana.
No primeiro dia de aula, cheguei e a vi, uma balzaquiana que achei linda, mas que certamente não ia dar conversa para um garoto. Ela era muito branca, de cabelos negros e olhos verdes, encantadora. Durante a chamada fiquei observando discretamente para ver a que nome ela responderia presente.
- Inês de Castro!
- Presente!
Era ela, minha musa e com o mesmo nome da musa de Camões. Não poderia ser mais perfeito!
Conhecem a história? Inês de Castro foi uma nobre galega que viveu no século XIV em Portugal e ficou conhecida como a musa de um dos maiores poetas da língua portuguesa. Ela é também lembrada por sua trágica história de amor com o príncipe D. Pedro, filho do rei português Afonso IV.
Inês chegou a Portugal em 1340 como dama de companhia da princesa Constança de Castela, esposa do infante D. Pedro. Quando Constança faleceu em 1345, D. Pedro e Inês se aproximaram e começaram um romance proibido, já que Inês não era de sangue real e ainda por cima era casada com um dos cortesãos do príncipe.
O rei Afonso IV, pai de D. Pedro, não aprovava a relação e ordenou que Inês fosse exilada para o convento de Santa Clara em Coimbra. No entanto, isso não impediu que os amantes continuassem a se encontrar secretamente. Quando D. Pedro assumiu o trono em 1357 após a morte de seu pai, ele finalmente se casou com Inês em uma cerimônia secreta.
Mas a história teve um fim trágico quando o novo rei D. Pedro se envolveu em uma disputa política com o irmão de Inês, que acabou sendo assassinado. Como retaliação, os nobres portugueses convenceram D. Pedro de que Inês era uma ameaça à segurança do reino e a executaram em 1355, arrancando-lhe o coração ainda pulsando.
O amor entre D. Pedro e Inês se tornou uma lenda em Portugal e inspirou muitos escritores e artistas ao longo dos séculos, incluindo Luís de Camões, que dedicou alguns de seus poemas mais famosos a ela, inclusive citando-as n’Os Lusíadas.
Não, nada de tragédia, só contei a história para poder dizer que Inês de Castro, minha contemporânea e colega de classe, tornou-se minha musa. Só pensava nela, queria-a como os jovens boêmios românticos dos anos 1800, como na “Lira dos Vinte Anos”, de Álvaro Azevedo. Mas ela, no máximo, me falava de matemática ou do ensino, não me via além do garoto inteligente, porém apenas um garoto.
O ano passou e eu a sonhar um amor que por enquanto era só meu, sem correspondência ou esperança.
Como eu dizia no início, em 1984, estava prestando o serviço militar, era soldado e, na primeira sexta-feira de aula, saí do quartel e fui fardado para a aula. Lá estava eu de farda verde-oliva, boné e coturno entrando na sala quando ela vem ao meu encontro:
- É você mesmo? Que mudança! Tornou-se um homem! E me deu um beijo no rosto.
Ao fim da aula, pediu-me para acompanhá-la até a casa de pensão onde ficava nas noites de sexta-feira e, na porta, se despediu com um selinho em minha boca. Fui ao céu.
Na semana seguinte pedi-a em namoro. E ela topou! Era felicidade demais! Passei o ano namorando a mulher mais linda da escola! Meu amigos reclamavam que eu não dava mais atenção a eles. Era só Inês para cá, de Castro para lá e eles não queriam participar da história que acreditavam não ter futuro. Não enxergavam em mim maturidade para um relacionamento sério.
Mas eu só queria saber dela, minha musa agora era minha namorada. Viajava às vezes até a cidade dela e passava o resto do fim de semana com ela. Me via casando com ela quando terminássemos a faculdade. Mas 1984 também passou e, no final do ano, ela viajou com a família e passei as férias sem vê-la, só nos contactávamos por telefone.
No início de 1985, achei que ela estava me tratando mais friamente, mas achei que era a distância. Quando recomeçassem as aulas, retomaríamos nosso caso de amor perfeito.
Só que não. Eu já não era mais soldado e ela me recebeu como amigo, me disse que poderíamos ser bons amigos, mas que percebeu que nossa relação não tinha muito sentido.
Quis morrer, embebedar, mudar de país, fiquei sem chão. Mas meus amigos que estavam sempre por perto me acolheram e me disseram que achavam não ter muito sentido meu namoro. Não por ela se uma mulher mais velha, mas porque não percebiam nela o mesmo sentimento que o meu. E muito menos em mim, maturidade. Eu não conseguia enxergar o que eles viam. Para mim ela era perfeita… E eu, apaixonado por ela.
Andava nesta tristeza quando uma colega da mesma cidade de Inês me convidou para passar o fim de semana na cidade dela, ia rolar um churrasco no domingo e vários colegas se encontrariam lá. Fui. Era uma festa da galera mais jovem e sabia que Inês não estaria lá. Não queria vê-la sem poder tê-la. E, no meio da turma, me soltei, me diverti foi muito. Dancei com as meninas, percebi umas paqueras – estar solteiro não era de todo mau, tenho apenas dezenove anos e muita vida pela frente.
No domingo, na rodoviária, voltando para minha cidade vi que um soldado estava esperando o ônibus e puxei assunto com ele. Ele prestava o serviço militar no mesmo quartel que eu tinha servido no ano anterior. Vinha pouco à cidade dele, mas sempre que podia, pois ele tinha uma namorada na cidade. Especulei um pouco sobre a namorada e ele foi me descrevendo uma senhora de seus trinta e cinco anos, muito branca, de cabelos negros e olhos verdes. Ele a achava linda.
- Espera aí! Está falando da Inês de Castro?
- Conhece?
- Ah, é minha colega de faculdade. De fato muito bonita, parabéns!
Nesse momento, tive vontade de rir. A fila andou. Vida que segue, não é mesmo?

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Inspiração

Li sobre a musa de Camões e pensei numa história baseada em minha vida de estudante que a envolvesse. Desenvolvi a história no desenrolar de três anos para focar o ano do meio em que, além de estudar, prestei serviço militar obrigatório.

Sobre a obra

Criei um pequeno conto a partir das premissas acima.

Sobre o autor

Sou um experimentador. Fotografo, pinto, desenho e escrevo experimentando o prazer da criação.

Autor(a): JOAQUIM MARCELINO DE ANDRADE NETO (Lino Neto)

APCEF/DF


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