Bierdorf

Este conto começa com quatro amigos que trabalham numa empresa de tecnologia. Maicon é o nerd, e o brutamontes do grupo. Brincalhão e colecionador de figuras de ação. Apesar de trabalhar com tecnologia, faz muita arte manual como hobby. Rodolfo é o intelectual. Bastante curioso, sempre procura o “porquê” das coisas e pesquisa tudo. Enquanto estou escrevendo esse conto, ele está terminando um curso de especialização para começar outro logo em seguida. Daniel é o mais velho do grupo. Tem uma filha com quem joga videogame e perde o tempo todo. Ele é o cara que tem muitas experiencias e histórias para contar. Sempre sorridente, está sempre cuidadoso para não perder o posto de “irmão mais velho” e exemplo para os outros. E o líder do grupo, Renan. É o mais sério e normalmente o boa praça. Apesar de sua seriedade, chegar cedo não é o seu forte. Acaba se atrasando nos compromissos, o que faz os outros três chamarem ele de “ligeirinho”. Depois de anos trabalhando juntos, pela primeira vez conseguiram férias ao mesmo tempo. E aproveitaram para viajar.
Os quatro resolvem ir para uma cidade do interior de São Paulo, para um festival de cerveja artesanal. O nome da cidade é Bierdorf. Foi colonizada por alemães, recebeu o nome que significa “Vila da Cerveja”. Chegando na cidade, os quatro fizeram o check-in no hotel e foram apreciar o festival. Era o primeiro dia de três. Os quatro voltaram para o hotel cantando sem parar. Cada um levando consigo o copo que haviam ganhado no evento. Assim que chegou no hotel, Rodolfo se deitou na cama para olhar seu celular, e dormiu com o celular na mão. Maicon estava de pé olhando a janela, só que já não tinha nada lá, tudo lá fora já parecia uma cidade fantasma. Daniel só ria da situação dos amigos. Renan, o único sóbrio dos quatro, foi ver o celular. Pegou seu notebook, pois com o cargo que ocupa, sabe que precisava sempre estar atento às notícias da empresa – mesmo de férias. Fez isso longe dos amigos, pois haviam combinado que nessa viagem, esqueceriam o trabalho.
Eis que chegou o segundo dia. Os quatro se levantaram cedo. Somente Renan lembrava do dia anterior. Os quatro desceram para tomar café da manhã no hotel. Maicon e Rodolfo pediram um chá de boldo. A garçonete trouxe o chá. Daniel pediu um café bem forte. E Renan pediu um chocolate quente. Após a garçonete trazer os pedidos, derrubou sem querer uma foto de seu bolso. Rodolfo devolveu a foto. Ela o agradeceu e disse:
- Desculpem. Essa é a foto de minha família. Todos partiram há dez anos. Me chamo Glória. Se precisarem de mim é só me chamar.
Após isso, seguiu para atender outros clientes. Para não perder muito do festival, os quatro saíram logo. Deixaram a chave do quarto 705 na recepção e seguiram para a rua. Mais um dia de muita bebedeira e alegria. Conheceram pessoas. Na volta, encontraram um idoso muito alegre, que perguntou aos quatro amigos:
- Olá meus jovens. Estão se divertindo bastante aqui em Bierdorf? Saibam que a cidade está feliz em recebê-los e está ajudando vocês.
Os quatro estavam tão bêbados que mal conseguiram prestar atenção no que o homem falou. Chegaram no quarto e logo dormiram. Seguiram para o restaurante do hotel. Dessa vez, veio um garçom, aparentando seus 50 anos. Eles pediram o mesmo pedido no café da manhã que no dia anterior. Eis que o garçom olha bem atencioso para eles:
- Olá senhores. Me chamo Alfredo e sou o garçom responsável pelo lugar. Não servimos chás aqui.
Maicon, desconfiado que só, arregala os olhos e diz para Alfredo:
- Mas ontem foi exatamente o que pedimos. E não teve problema. No cardápio virtual que vimos pelo celu.. – Seu pensamento é interrompido quando percebe que seu celular não estava no bolso. – Ué? Cadê meu celular? Tenho certeza que saí do quarto com ele.
Alfredo então, aparentando estar confuso, pega o cardápio da mesa vizinha e entrega nas mãos de Maicon:
- Aqui está o cardápio, senhor. Pode verificar aí que não servimos chá.
Então, Daniel interrompe a conversa e pede suco de maracujá para todos. Os quatro conversavam sobre o que aconteceu. Se perguntavam se estavam tão bêbados a ponto de ter esquecido do dia anterior. Mas Renan garantiu que não estava bêbado e que os pedidos do dia foram idênticos ao anterior. Alfredo chega com a jarra de suco. Sempre astuto, Rodolfo questiona ao garçom:
- O que aconteceu com a Glória, a garçonete que nos atendeu ontem?
Alfredo serve o suco aos quatro. Depois disso, diz:
- Não temos ninguém neste hotel chamada Glória, senhor. Creio que se enganou. Se precisarem de mim, estarei perto do balcão.
Após isso, Daniel começa a rir sem parar, e Renan o segue nos risos. Maicon estava encucado, perdido em pensamentos, olhando para todo lado. Rodolfo procura o celular no bolso, e não acha.
- Vocês tão muito bêbados ainda. Um pensa que foi atendido por uma mulher ontem. O outro perde o celular. – Disse Daniel, ainda rindo muito.
- Rod, procura seu celular no bolso de Maic. Deve ter pegado da mesa pensando que era o dele. – falou Daniel em tom de piada aos amigos, usando o apelido no qual se chamam.
Maicon levantou da mesa dizendo que não estava com nenhum celular. E que ele se lembra claramente de ter posto o celular no bolso. Rodolfo fica olhando tudo ao redor dizendo que o lugar está diferente. E que ele tem certeza de que foi uma mulher que atendeu eles ontem. Daniel e Renan puxa os amigos, dizendo para irem se divertir. Que é o último dia do festival e precisam aproveitar ao máximo.
Antes de ir, Renan diz que precisa ir ao quarto pegar a carteira que esqueceu lá. Maicon vai junto para procurar o celular no quarto. Rodolfo fica na recepção, analisando tudo no hotel, desconfiado de algo, que ainda não compartilhara com os amigos. Daniel permanece por lá, rindo dos amigos excêntricos e conversando com o recepcionista.
No quarto, Renan aproveita que veio procurar a carteira e a distração de Maicon procurando os celulares perdidos, para olhar o notebook. Quando estava procurando o notebook na mochila, Maicon se aproxima.
- Não é para ninguém fazer nada de trabalho lembra? Por que você trouxe isso? – Maicon disse para o amigo, num tom de repreensão.
Então, Renan percebe que o notebook não estava lá na mochila. Ele fica preocupado, pois o notebook tem coisas de trabalho. Mas não demonstrou isso para não estragar a viagem. E ele é o tipo de pessoa que deixa as coisas acontecerem naturalmente, então acredita que logo o notebook aparecerá. Já Maicon revirou o quarto todo e não achou os celulares. Resolve deixar isso para lá por enquanto. Mas diferente do amigo, ele se preocupa demais com as coisas. Só que ambos ali fazem o acordo de aproveitarem o momento na festa e deixar para se preocupar depois. Na hora de sair do quarto, Renan ia esquecer a chave de novo e o quarto aberto. Maicon pega a chave e mostra para Renan. Renan apenas diz:
- Veja bem... não é que eu fosse esquecer novamente, só estava testando se você estava prestando atenção. – disse, começando a rir logo em seguida.
Chegando à recepção, Maicon pega a chave para entregar. Ele olha curioso para a chave, que tinha o número 305 no chaveiro. Mas ele tem certeza de que ontem, a chave que estava com eles era do quarto 705. Será que estavam no quarto errado por isso não encontraram o celular? Foi o que pensou. Então, foi até a recepção para mostrar a chave. Percebeu que o recepcionista atual era diferente do recepcionista anterior. E bem parecido com o garçom que os atendeu a pouco.
- Acho que vocês nos deram a chave errada. Estamos no 705. – Disse Maicon, tentando encontrar lógica em tudo aquilo.
O recepcionista olha para a chave e diz:
- Creio que se enganaram, senhor. Não temos quarto 705 aqui. O hotel só tem três andares.
Maicon, que assiste filmes de terror desde criança, ficou assustado ao ouvir aquilo. Se dirigiu ao seu amigo Rodolfo, que sempre analisa tudo ao redor:
- Rod, você que sempre fica de olho em tudo. Essa chave aqui não é nossa, tenho certeza. Ontem o número do quarto era 705. Acho que alguém invadiu nosso quarto e roubou os celulares. E a recepção do hotel tá tentando nos manipular. É a única explicação pra isso.
Acalmando o amigo, Rodolfo pega a chave. Ele olha com calma e diz:
- Mas essa é a chave do nosso quarto. Lembro que desde que chegamos ficamos no quarto 305.
Daniel então aparece entre eles, pega a chave das mãos de Rodolfo e diz:
- Quer saber? Todo mundo bebeu demais e tá bem confuso. Só bora pra festa e deixa pra pensar em tudo isso quando voltar.
Entregando a chave na recepção, ele acena para os amigos o seguirem rumo à porta de saída. Porém, o próprio Daniel acha estranho aquela porta. É como se tivesse mudado para uma porta velha e cheia de ferrugem. E com uma arquitetura deferente. Mas ele imagina que ainda está sob efeito da bebedeira da noite anterior e não comenta nada com os amigos.
Ao sair, Renan para e olha curioso para a frente do hotel. Seus amigos estavam um pouco à frente, pegando as canecas de chopp temáticas que estavam sendo entregues na frente do hotel. Renan não disse nada aos amigos, mas percebeu o hotel bem menor. Como se fosse outro hotel. E claramente seus amigos não tinham percebido isso.
Os quatro seguem pelo festival. Notam que as vestimentas de hoje estão diferentes, como se estivessem nos anos 70. Apenas eles quatro tinham um visual moderno. Então, o mesmo homem velho do dia anterior se aproxima deles e diz:
- O que fazem com essas roupas estranhas? Entrem no clima do festival. Ali naquela barraca estão entregando as roupas temáticas. Mais uma vez, que a cidade os ajude.
Eles resolvem entrar no clima e vestem as roupas de acordo com o festival. Conhecem muitas pessoas. Notam como nenhuma delas está preocupada com tecnologia aqui. O pagamento das coisas no festival é através de fichas que eles adquiriram assim que chegaram na cidade. Não usaram cartão de crédito em nenhum momento. Eles também, enquanto estão no festival, esquecem de tudo que tenha ligação com tecnologia. No fim do festival, acompanham um show numa taverna local, com música instrumental e um trovador contando histórias da cidade.
Eles enfim voltam ao hotel. Pegam a chave na recepção e seguem para o quarto. O homem que estava na recepção pega a chave do quarto 305. Rodolfo olha para ele e tem certeza de que esse homem é o mesmo que os servira o café da manhã: Alfredo. Os quatro amigos notaram que ele é o único funcionário do lugar. De alguma forma, só perceberam isso agora. Alfredo pega os brindes do hotel e os entrega. Em cada brinde, tinha um bloco de notas, uma caneta e uma ficha telefônica temática. Os quatro agradecem os brindes. Antes de subirem, Alfredo diz:
- Não tenho como agradecer tudo que fizeram por este hotel. Agora eu entendo. Esses brindes são apenas um pouco de minha gratidão. Amanhã, quando encontrarem ela, digam que eu estava errado. A cidade os ajudou. E vocês nos ajudaram em algo muito importante.
Os quatro estavam embriagados da festa e não prestaram muita atenção. Subiram sorridentes para o quarto. Parece que todas as dúvidas que tinham foram de alguma forma esquecidas. Deixaram seus pertences em cima da bancada perto da entrada. Cada um se dirigiu a sua cama, e dormiram rapidamente.
No outro dia, os quatro acordam. Não se lembram muito do dia anterior. Maicon pega o brinde na mesa. Lembra-se vagamente de quando os recebeu de Alfredo. Mas Rodolfo, sempre analisando tudo, estava pensando em tudo que aconteceu. Ele se perguntou por que os deram uma ficha de telefone público em pleno 2024. Maicon concorda com ele, inclusive comentando que uma agenda e uma caneta na era da tecnologia não é mais usada. Na pequena mesa ao lado da cama de cada um, estavam seus pertences tecnológicos. Renan olha a mochila e encontra seu notebook.
- Alguém fez uma pegadinha com nós quatro e escondeu os celulares. – disse Maicon, bastante aliviado de ter encontrado o celular.
Rodolfo segue para a janela e observa a rua, agora tendo suas barracas desmontadas por conta do fim do festival. Ele abre a porta e olha o número do quarto. Então, comenta com Maicon:
- Você tinha comentado que ficamos no quarto 705 desde o início. E parece que era verdade. Eu vou analisar essa situação toda.
Depois de terminar de arrumar a bagagem, Maicon se aproxima do amigo e diz:
-Analisar o que? Quatro bêbados num hotel de luxo que trocou o número do quarto e achou que foi atendido por outra pessoa?
Daniel toma a dianteira para seguir para a porta e diz:
- Vocês tão viajando. Se a gente não for logo vai todo mundo dormir no aeroporto hoje.
Os quatro pegam o elevador. Mesmo que não tenham certeza, sentem que esse não é o mesmo hotel de antes. Antes era só um hotel simples, mesmo com sete andares, era barato e com poucos hóspedes. Não tinha muitos funcionários também. E a única tecnologia que tinha no hotel era o computador e a impressora que o funcionário da recepção usava para digitar e imprimir as fichas cadastro para serem assinadas à mão, mesmo em 2024. Agora, eles têm a sensação de estar em um hotel com avanço tecnológico que até a entrada do hotel é por identificação visual.
- Não lembrava desse luxo todo. Como a gente pagou por isso? – disse Renan, olhando tudo ao redor.
- Mas você esquecer alguma coisa é normal. O estranho é que eu também esqueci. – disse Maicon.
Os quatro amigos caíram na risada. Chegando na recepção, encontram Glória, a moça que atendera no restaurante um dia antes. Daniel entrega o cartão do quarto que estava na mão. Ele para um pouco, franzindo a sobrancelha, dizendo:
- Eu tinha certeza que isso aqui era uma chave. Nunca mais vou beber tanto assim.
Enquanto via seus amigos rindo, Rodolfo olhou uma foto que estava no balcão. Ele reconheceu aquele idoso da foto. Só não lembra de onde o conhecia. Ele pergunta para Glória:
- Quem é esse senhor aqui? Tenho certeza de que conheço ele de algum lugar.
Então, Glória pega a foto e diz:
- Aqui é a minha família. Esse aqui é o meu avô. Confiou a mim esse hotel. Quando eu ainda não era nascida, ele era muito ranzinza e não admitia tecnologia aqui. Mas muitos anos atrás percebeu que uns hospedes deixaram de lado o que tinha de moderno para se divertir com o que a cidade tinha a oferecer. E não vê mais a tecnologia como inimiga.
Glória mostra uma caixa dizendo “Guarde seus celulares aqui e curta o momento”. Depois diz:
- E tentamos mostrar que às vezes é importante deixar a tecnologia de lado, ao invés de cliques e telas, aproveitar um passeio na cidade.
Quando Glória percebeu, os quatro amigos estavam todos juntos, ouvindo o que ela estava falando. Então, Renan lembra de algo e diz:
- Ele estava errado.
E então, em meio a muitos risos e alegria, os quatro amigos saem do hotel, com muitas lembranças. Acreditam que foi por conta da bebedeira no festival. Glória derrama uma lágrima e diz:
- Obrigado...
Então, caro leitor, cabe agora a você entender tudo o que aconteceu. Teria tudo sido uma pegadinha? Estariam presos em um paradoxo temporal? Tudo não passou de uma confusão por conta da bebedeira? Te vejo na próxima.

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Inspiração

A partir de momentos junto à três grandes amigos, resolvi imaginar como seria se nós quatro estivéssemos em um episódio da série Black Mirror. A partir daí, imaginei como seria estarmos numa cidade não muito conhecida e com coisas estranhas acontecendo, mas ao mesmo tempos teríamos um festival para curtir.

Sobre a obra

Uma mistura de ficção científica, humor sombrio e suspense. Um conto que faz crítica à necessidade excessiva de estarmos conectados à tecnologia o tempo todo e esquecemos momentos importantes com pessoas reais. Em meio à mistério e confusão, essa crítica se torna clara no decorrer do conto. Prende o leitor mostrando que cada detalhe é importante.

Sobre o autor

Sou formado em Produção Multimídia. Em relação a artes manuais, trabalho com artesanato em EVA e biscuit e cenários em miniatura. Sou desenhista, escritor e cosplayer. Também faço arte digital, que envolve games, animação e 3D de uma forma geral. Gosto de criar personagens desde sua concepção até levá-lo a mídia final.

Autor(a): ANTONIO MIGUEL MACEDO FIGUEIREDO (Miguel Mario)

APCEF/BA


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