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A MORTE VEM DO PASSADO
A MORTE VEM DO PASSADO
O automóvel parou e o motorista disse ao garoto:
— Aguarde. Não tire a máscara. Vou ver a condição do ar aqui e em casa.
Retirou um objeto do bolso e analisou os dados.
Na casa, ligou um aparelho, marcou um tempo e fez nova medição. Análise feita, ligou um aparelho.
— Podemos tirar a proteção.
Era uma máscara em forma de capacete.
— Troque o filtro. Máscara com filtro velho não protege. Lembre-se: o gás é inodoro, mas mortal.
— Já sei, vô.
Ao sair, usavam vestes especiais para proteção. Os raios ultravioletas estavam acima do índice de perigo, iniciando em 28+. Não permitiam sair, mesmo com roupas de proteção, se o índice atingisse 35+. Para as ordens serem cumpridas, distribuíram dosímetros de uso individual e um uvbiômetro, com funções do pirgeômetro, do net-radiômetro e do restreador solar.
Rômulo sentou-se defronte a TV. Era a mesma rotina, com informação do tempo e a lista de recomendações diárias, como: condições do ar no interior da casa, sua purificação, sempre que necessário e a substituição dos filtros das máscaras. Avisou que o índice de poluição do ar estava elevado e que todos permanecessem em casa, exceto em extrema necessidade.
As mudanças climáticas foram catastróficas já no início. Até encontrarem um paliativo, bilhões morreram, principalmente os mais pobres, idosos e os com a saúde abalada, ou frágil. Após o purificador de ar, máscaras e roupas de proteção especiais contra raios ultravioletas, o índice de mortes caíra. Poucos tinham condições de adquiri-los, por isso o Governo passou a fornecê-los.
A fome fora a principal causa de muitas mortes, pois a produção de alimentos diminuiu drasticamente.
Tinha lido muito sobre as várias pandemias que assolaram o planeta, mas igual àquele desastre ecológico nada era comparável. Passados anos, o Governo proibiu a circulação de notícias que mostrassem a vida antes da catástrofe global, para evitar revoltas. Livros e revistas foram queimados, lembrando a Inquisição da Idade Média. A pena para quem guardasse relatos da vida anterior era a morte.
Uma mulher chegou e retirou a máscara.
— Vá fazer sua higienização. O ambiente já foi purificado ? disse Rômulo.
— Cadê Marcelo, pai?
— Ele está fazendo a lição. Já banhou.
O banho consistia na utilização de um produto específico, também fornecido pelo Governo em caixas individuais para um mês. Nada de água.
No noticiário, Rômulo viu que estavam testando um novo medicamento que prometia aumentar a resistência dos idosos aos efeitos da poluição.
Solange sentou-se ao lado do pai que continuava acompanhando o noticiário, como fazia diariamente. Pouco havia para ser notícia, a não ser a alteração do nível de poluição do ar, com o vento continuando a soprar aquela poeira vermelha e a previsão de raras chuvas, por serem altamente ácidas, que obrigavam as pessoas permanecerem abrigadas. Causaram a morte gradativa da vegetação e o fim da vida aquática. Com as primeiras precipitações, houve um crescente aumento de problemas pulmonares e o número de mortes teve um crescimento assustador, bem maior que as deficiências respiratórias causadas na pandemia da covid 19, as pandemias de leptospirose, salmonelose e hantavirose decorrentes da fuga dos animais silvestre para as cidades. A população mais carente foi a primeira a ser dizimada pelos problemas de saúde e por falta de alimentação. Os campos deixaram de produzir, desapareceram os peixes dos rios, lagos e mares. Com o fim das matas, aves e animais silvestres sumiram por completo.
— Pai, por que o senhor ouve esses noticiários, se sabe que sempre é a mesma coisa?
— A esperança, filha. A esperança. Quem viu o mundo como vi em tenra infância espera um dia vê-lo voltar como era.
Aquele diálogo sempre se repetia e muitas vezes terminava com uma longa história que ela já conhecia de cor e salteado. Dizia que o mundo em pouco tempo perdeu mais da metade da população, muito mais por fome e sede que pelas doenças causadas com a chuva ácida. Com alimentação rara, tiveram que criar uma forma de reposição energética através de cápsulas, enquanto investiram bilhões em fórmulas para transformar a água ácida em potável que passou a ser distribuída em doses per capita com um rigoroso controle.
— Marcelo! Desce para o almoço! Vamos almoçar, pai.
Todos sentaram à mesa. Houve um instante de silêncio seguido por uma oração de agradecimento pelo ar puro que respiravam, pela vida e a família. Logo em seguida, retiraram a cúpula sobre o prato, descobrindo pequenas cápsulas vermelhas. Cada um pegou a sua e num mesmo momento colocou-a na boca e engoliu com um pouco d’água. Novo silêncio, dirigiram-se para a sala de estar e conversaram sobre o seu dia e a programação seguinte.
Solange, já descrente, sem esperança de melhoras, questionava ao pai o motivo daquele ritual, se engolir uma cápsula era algo rápido e fácil.
— Minha filha, é a única coisa que posso ensinar da minha infância. Ainda havia um pouco de fartura, isto é, de alimentos variados. Fazíamos as refeições sempre em família. Às vezes, havia convidados. Depois conversávamos. Papai fazia as orações de agradecimento, como faço agora e espero que você continue quando eu partir. Talvez, para você, isso seja desnecessário, no entanto volto à presença dos meus pais e irmãos e isso me traz boas recordações.
No final do dia, a família se reunia, ouvia um pouco de música e discutia assuntos banais, procurando amainar a tensão que se tornara constante em todos os lares. Todos conversavam. Cada um tinha que tratar de algo, nem que fosse sobre o botão da blusa que estava caindo.
Certo dia, Solange perguntara ao filho que lugar mais gostava e ele dissera que era da escola. Admirada, pois achava que o lar era o lugar mais aconchegante da família e ele preferia a escola, retrucou:
— Mas por que, meu filho? Você não gosta de nossa casa?
O menino, encabulado, se justificou:
— Lá eu brinco com meus colegas e aqui em casa sempre é tudo do mesmo jeito. Nada muda.
Ela não redarguiu à explicação da criança. Ela mesma já sentira um imenso tédio.
Na manhã dia seguinte, tocou o celular. Solange o atendeu e correu para a TV.
— O que aconteceu, filha? ? Perguntou Rômulo.
— Sueli me ligou. Disse que estão transmitindo novas instruções. Temos que ver do que se trata.
O Governo alertava para fortes ventos que se aproximavam, trazendo ondas de elementos ácidos com o aumento de indícios de radioatividade. Todos deviam permanecer em casa e suspendia as atividades que não podiam ser executadas em home office. Orientava vedar portas, janelas e claraboias, não permitindo a entrada de correntes aéreas. Reduzir o consumo de água e cápsulas alimentares. Nas emergências deviam ligar para o número mostrado na tela, para atendimento enquanto houver possibilidade.
Começaram a verificar e reforçar as vedações, sabendo que eram conferidas constantemente. Contadas as cápsulas, eram suficientes para dezoito dias, mas a água teria que ser poupada.
A higienização dos equipamentos era feita utilizando produtos fornecidos pelo Governo que fazia checagens constantes. Encontrando falhas, o responsável pela residência era levado para um centro de aprendizado pelo período de vinte dias. Em caso de reincidência, eram aplicadas multas.
Naquele dia, somente o som do televisor foi ouvido na casa.
— Marcelo, já banhou?
— Já seeei, descer para almoçar ? gritou o menino.
Solange, como sempre fazia, colocou os pratos sobre a mesa, as cápsulas no prato, sobre ele uma cúpula de esmalte e ao lado copos com pequena porção de água e dessa vez menos ainda que das outras.
O ritual se repetiu em silêncio. Solange notou que o filho estava agindo diferente. Desconfiado, olhava para o avô de forma insistente, mas não falava.
— Que aconteceu, Marcelo?
Ele ficou em silêncio. Rômulo observou também a mudança do neto. Sempre alegre, falava muito depois do almoço, no entanto estava calado, com a expressão de quem escondia algo.
— Vai ver ele fez alguma estripulia e está com medo de ser descoberto.
O garoto tentou sair de mansinho, mas foi detido pela mãe.
— Aonde vai? O que fez?
— Mãe, é que eu encontrei umas coisas e eu queria falar com vovô. ? Não me castigue. Vou mostrar.
Solange olhou para o pai espantada. Quando o menino desceu, trazia umas revistas antigas. Vendo-as, Rômulo empalideceu.
— Onde você pegou essas revistas, menino?
— Na sua gaveta, vô.
Solange se espantou ao ver seu pai avançar, tomando as revistas.
— Quem lhe autorizou a abrir minhas gavetas?
— O que é isso, pai? Ele não fez nada demais, só pegou esses papeis velhos. Nem sei por que o senhor ainda guarda isso ? reclamou a filha.
— Não fiz nada, vô, só vi umas coisas bonitas e queria lhe perguntar o que eram.
Quando falou em coisas bonitas, aguçou curiosidade em Solange pelas revistas.
— Que coisas são essas, pai? Por que o senhor escondeu essas revistas por tanto tempo, nem eu tive oportunidade de vê-las? O que ninguém pode ver nelas?
Rômulo sentou-se e colocou as revistas sobre as pernas. Havia desespero em seu rosto.
— Isto já foi a condenação de muita gente e pode ser a nossa.
— Não entendo, pai. Trata-se de alguma conspiração, algo contra o Governo? Se é isso, então por que o senhor não destruiu antes?
Rômulo explicou com voz trêmula:
— Nelas estão os melhores momentos de minha vida, momentos que vocês não viveram e ninguém mais viverá. Desejava mostrar-lhes, mas o medo me impediu. Assim, entre o desejo e o medo, venho guardando este tesouro. Agora estamos condenados.
— Condenados? Como assim? Não entendo. O que tem de tão perigoso nessas revistas que ninguém pode ver?
Duas grossas lágrimas escorreram de seus olhos. Solange via a tudo num misto de pavor e curiosidade. O que podia conter ali para deixar seu pai naquele estado?
— Sei que vocês estão curiosos. O resultado do que pode surgir de tudo isso será minha culpa.
Chamou os dois para que se sentassem ao seu lado, abriu a primeira revista e o que Solange viu deixou-a maravilhada.
— Mas o que é isso, pai?
— Isto era uma ilha paradisíaca. Você vê este verde? Eram matas de cocais e outras árvores maravilhosas que produziam frutos saborosos que ainda hoje lembro o sabor. O nome disto é cascata. Não existe mais. Era onde as pessoas se reuniam para banharem-se, enquanto esperavam os churrascos do almoço.
— Churrasco? Que é churrasco, vô?
— Churrascos eram assados de carne de animais, como boi, porco, frango, carneiro e muitos outros que, infelizmente, vocês não chegaram a conhecer.
Foi mostrando em outras revistas jardins, restaurantes com as mais diversas comidas, cavalos montados, lindos pássaros nos seus ninhos e em zoológicos, fotos de peixes de todos os tamanhos que deixaram Marcelo embasbacado. A cada página, novas paisagens deixava-os boquiabertos. As pescarias, então, fizeram não se conterem.
— Vô, o senhor pegou esses bichinhos também?
— Sim. Costumava sair com meu pai nos fins de semana e só voltávamos domingo à tarde com muitos peixes. Assávamos na beira do lago e comíamos durante a noite ouvindo-o cantar. Papai tinha uma voz maravilhosa.
Mostrou rios, lagos, açudes frequentados por banhistas em manhãs festivas
As fotos dos supermercados chamaram a atenção do neto.
— Isto aqui era o local onde comprávamos nossos alimentos, bebidas, materiais de limpeza...
— E que alimentos eram esses?
— É a carne, que vinha daqueles animais que já mostrei, o arroz, o feijão... Estes produtos vinham de grandes plantações ? disse, mostrando as fotos.
Depois de muitas explicações, Solange, maravilhada, perguntou por que aquelas fotos podiam ser a causa da punição deles. Rômulo explicou que no início, quando as pessoas tomavam conhecimento da vida que tiveram seus antepassados e perderam tudo por uma questão de política de proteção do meio ambiente que o Governo não adotara, houve inúmeros protestos com mortes e destruição de propriedades púbicas, por isso foi proibido que alguém divulgasse como era a vida antes da catástrofe. Guardar livros e revistas, nem pensar. Tudo foi confiscado, inclusive filmes. Tudo o que você vê hoje é filme feito após o desastre ecológico.
— Pai, sei que é muito bonito, mas vamos incinerar tudo isso e o perigo vai acabar.
Rômulo sabia muito bem que não era tão simples assim, mas acatou o pedido da filha e com o peito em chamas viu todos os seus tesouros transformarem-se em cinzas.
Os dias foram passando como se nada tivesse acontecido, mas Rômulo sempre acordava sobressaltado. Quando tudo parecia ter sido esquecido, o telefone tocou e, ao atender, Solange estremeceu, lembrando-se das palavras do pai.
— É aí onde mora o aluno Marcelo d’Alencastro de Oliveira?
— Sim, senhor. Aconteceu alguma coisa?
— Todos os moradores da casa devem comparecer ao COD amanhã, lembrando que o não comparecimento implicará no corte de alimentos, filtros, máscaras e energia.
Solange sentiu um tremor violento e caiu desmaiada. Sabia que o COD era o órgão de Controle da Ordem Disciplinar do Governo e quem era chamado, nunca mais era visto.
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Inspiração
Vivemos momentos desesperadores com queimadas, temporais em outras partes, temperatura altíssima, tudo provocado pela ganância humana que prefere o lucro momentâneo à estabilidade da vida futura.
Sobre a obra
Procurei mostrar os possíveis efeitos, caso não sejam tomadas medidas de contenção dos ataques à natureza, vendo que a morte de animais e rios secando já é uma triste realidade. Pode-se dizer que é um conto macabro, mas é para onde caminhamos.
Sobre o autor
Gosto de escrever contos, poemas e romance (sete publicados). Venho sempre participando do Talentos e por conta disse já estive em Curitiba, Florianópolis e Aracaju.
Autor(a): ANTONIO VASCONCELOS PACHECO (A. V. PACHECO)
APCEF/PI
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