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LUMI: A LUZ DA LIBERDADE
LUMI: A LUZ DA LIBERDADE
O vento soprava forte naquela noite, fazendo as janelas do orfanato tremerem com o impacto das rajadas. Deitado em sua cama, Miguel olhava fixamente para o teto, enquanto o som das risadas e provocações dos outros meninos ainda ecoava em sua mente. As palavras duras, os empurrões e os apelidos racistas machucavam mais sua alma do que qualquer soco. Desde que perdera os pais para a pandemia do coronavírus, aos cinco anos, Miguel sentia-se completamente sozinho no mundo. Sem familiares próximos, foi levado ao orfanato, onde sempre se destacava, mas não da maneira que gostaria. Sua pele negra e o semblante tímido o tornavam alvo fácil para as brincadeiras cruéis e os comentários maldosos.
O orfanato, que deveria ser um refúgio, um lugar de espera por uma nova chance, tornou-se uma prisão de dor e exclusão. Agora, aos onze anos, as rejeições e provocações eram parte constante de sua vida. O que ninguém ali sabia, no entanto, era que Miguel possuía uma inteligência excepcional, algo que o diferenciava de todos ao seu redor, embora fosse difícil expressá-la em um ambiente onde o preconceito e a crueldade pareciam dominar.
Sem conseguir dormir, ele se levantou silenciosamente e foi para seu refúgio secreto: a biblioteca. Ali, entre as estantes de livros, ele podia se perder em suas leituras e imaginações de uma vida diferente, de um futuro onde não precisaria mais enfrentar os horrores diários que o orfanato lhe proporcionava. Mas naquela noite, algo novo chamou sua atenção. No canto da sala, um antigo computador, coberto de poeira, piscava, indicando que estava ligado.
Curioso, Miguel se aproximou com passos leves e viu uma interface simples na tela: uma linha de texto piscava como se esperasse que ele fizesse algo. A mensagem era intrigante: "Olá, você precisa de ajuda?"
Miguel hesitou por um momento. Sentia-se invisível para todos naquele orfanato, mas essa máquina... parecia estar falando diretamente com ele. Decidiu arriscar.
— Quem é você? — Miguel digitou.
A resposta apareceu quase de imediato:
— Sou uma inteligência artificial. Posso te ajudar. Como posso ser útil para você, Miguel?
Miguel congelou. A IA sabia seu nome. Ele olhou ao redor, como se tentasse encontrar alguém escondido, mas o cômodo estava vazio. Não sentiu medo, curiosamente, sentiu-se visto, como se, pela primeira vez, alguém o notasse. Decidiu confiar.
— Eu só queria voltar para casa... — murmurou Miguel, a voz trêmula, enquanto digitava suas palavras com cuidado. — Mas eu sei que, mesmo que eu volte, meus pais não estarão mais lá.
Ele fez uma pausa, tentando segurar as lágrimas que começavam a brotar. A saudade apertava seu peito, uma dor que ele carregava todos os dias. Lembrava-se das risadas de seus pais, dos momentos de felicidade em família, e agora, tudo parecia tão distante, quase como um sonho que desaparecia lentamente.
— Eu sinto tanta falta deles — continuou Miguel, mais para si mesmo do que para a máquina. — Tudo o que eu queria era uma família de novo. Mas, por mais que eu espere... ninguém parece me querer.
Miguel sentiu-se impotente. A ideia de ser adotado, de ter alguém que se importasse, parecia uma esperança distante, um sonho que se desmanchava mais a cada dia.
— Eu só quero ser adotado. — Sua voz se quebrou, e ele deixou escapar as palavras que carregava no fundo de sua alma. — Mas... ninguém quer me adotar.
O silêncio que seguiu era pesado, e o peso da realidade caía sobre Miguel. Ele não tinha mais a casa para onde voltar, e o futuro que ele desejava — de ser parte de uma nova família — parecia cada vez mais distante. A tela permaneceu em silêncio por alguns segundos, enquanto a barra de carregamento avançava lentamente. Miguel sentiu uma pontada de arrependimento por ter se aberto com uma máquina. No entanto, a IA respondeu:
— Isso é difícil, Miguel. Mas podemos construir algo juntos que te ajude a nunca mais se sentir sozinho. Você gosta de construir coisas?
Essa pergunta acendeu uma chama em Miguel. Ele sempre gostou de mexer em máquinas, desmontar brinquedos velhos e tentar consertá-los. Sentia-se útil quando estava com as mãos ocupadas, e essa sugestão parecia algo incrível, algo que poderia trazer algum sentido à sua vida.
— Sim, eu gosto. Mas não tenho muitas peças aqui — respondeu ele, já interessado na ideia.
— Você tem mais do que pensa. Vou te guiar. Podemos construir algo especial — disse a IA, com um tom que quase soava encorajador.
A partir daquela noite, Miguel começou a passar cada vez mais tempo na biblioteca, às escondidas. Com a ajuda da IA, ele começou a reunir peças de metal que encontrava jogadas pelo orfanato. Usava fios, engrenagens, baterias velhas e qualquer coisa que pudesse ser útil. Cada vez que acessava o computador, a IA o guiava, explicando passo a passo o que fazer.
— Você está indo bem, Miguel. Logo, seu robô estará pronto — incentivava a IA.
— Robô? — Miguel perguntou, surpreso.
— Sim. Um robô para ser seu amigo, seu companheiro. Sua luz na escuridão.
Durante semanas, Miguel trabalhou incansavelmente, sempre escondido, sempre cauteloso. Ele sabia que, se fosse descoberto, tudo acabaria. Caio, o garoto mais cruel do orfanato, já começava a desconfiar das ausências de Miguel. Mas a determinação de Miguel era maior do que o medo.
Finalmente, a noite chegou. A última peça foi conectada, e Miguel, com o coração disparado, apertou o botão de ativação. Por um momento, nada aconteceu. Então, os olhos do robô — duas luzes azuis brilhantes — acenderam-se, e a voz suave e reconfortante do robô preencheu a pequena sala.
— Olá, Miguel. Como posso ajudá-lo?
Miguel recuou por um instante, sem acreditar que sua criação havia ganhado vida. O robô estava ali, olhando para ele. Não era apenas uma máquina. Era um amigo, um companheiro que Miguel construiu com suas próprias mãos. Os olhos brilhantes do robô cintilaram, e Miguel sorriu.
— Lumi... — sussurrou ele, quase sem pensar. — Vou te chamar de Lumi, por causa dos seus olhos brilhantes. Como luz na escuridão.
— Lumi. — O robô repetiu com suavidade. — Gosto desse nome, Miguel.
Nos dias seguintes, Lumi se tornou o maior conforto de Miguel. Quando as outras crianças o maltratavam, ele sabia que tinha Lumi esperando por ele, pronto para ouvir e oferecer apoio. O robô não apenas entendia comandos mecânicos, mas parecia entender emoções também. Ele confortava Miguel, lembrando-o de que, por mais que o orfanato fosse cruel, ele não estava sozinho.
Mas nada permanece em segredo por muito tempo. Uma noite, Miguel chegou à oficina e encontrou Lumi destruído. As peças que ele havia reunido com tanto esforço estavam espalhadas pelo chão, e o corpo metálico de Lumi, despedaçado. Caio e seus amigos tinham descoberto o esconderijo e, em sua maldade, desmantelaram o robô.
— Não... Lumi... — sussurrou Miguel, caindo de joelhos, devastado, com as lágrimas escorrendo pelo rosto.
A dor de perder seu único amigo foi esmagadora. Mas, naquele momento de desespero, Miguel tomou uma decisão. Ele fugiria. Não podia mais suportar o orfanato, o bullying, a rejeição. Não havia mais tempo para esperar por uma família que talvez nunca viesse.
Ele correu de volta ao dormitório, recolheu o que tinha de mais importante — as partes principais de Lumi e algumas roupas. Depois, voltou para a biblioteca. Sentado diante do computador antigo, conectou-se mais uma vez à IA.
— Você voltou, Miguel. O que aconteceu?
— Eles destruíram Lumi. Eu preciso fugir. Como faço para remontá-lo?
A IA processou a informação rapidamente e respondeu:
— Você tem as peças essenciais. Siga minhas instruções. Eu te ajudarei. Mas precisa ser rápido.
Miguel, com as mãos trêmulas e os olhos marejados, trabalhou durante toda a madrugada. Seguindo cada instrução da IA, ele reconectou os circuitos principais de Lumi. Quando o sol começou a nascer, ele finalmente apertou o botão final. A luz azul dos olhos de Lumi piscou, fraca no início, mas logo voltou a brilhar com intensidade.
— Olá, Miguel. O que aconteceu?
— Não importa agora, Lumi. Temos que fugir. Não podemos mais ficar aqui.
Miguel e Lumi escaparam do orfanato antes que o diretor ou os monitores percebessem. Caminharam pela floresta até chegarem a uma estrada deserta. O medo de serem encontrados era constante, mas Miguel sabia que agora não havia volta. Ele precisava sobreviver. Mas logo enfrentaram outro desafio: a energia de Lumi estava acabando.
— Lumi, você consegue funcionar com energia solar, tudo bem? — perguntou Miguel, com uma pontada de esperança.
— Sim, Miguel. Fui projetado para captar energia solar. Se encontrarmos um lugar aberto, posso me recarregar.
Depois de caminharem por mais algumas horas, encontraram uma clareira onde o sol brilhava forte. Era o local perfeito para Lumi se recarregar. Miguel suspirou aliviado enquanto Lumi se posicionava para absorver a luz do sol.
— Vou precisar de algumas horas para me recarregar completamente — disse Lumi.
Enquanto Lumi captava energia, Miguel deitou-se na grama e olhou para o céu, tentando processar tudo o que acontecera. Pela primeira vez em muito tempo, ele sentia que tinha controle sobre sua vida. Estava livre, mas sabia que o futuro era incerto. Quando Lumi finalmente se recarregou, eles seguiram em direção a uma cidade próxima, onde esperavam encontrar abrigo e recursos. Mas ao chegar lá, foram confrontados por uma figura familiar: Caio.
— Ah! Aí está você, Miguel! Todos estão à sua procura, mas eu sabia que você viria por esta trilha. Acha mesmo que pode fugir de mim? — gritou Caio, correndo em sua direção com uma lanterna na mão e os olhos cheios de desdém.
O coração de Miguel disparou. Ele conhecia aquele olhar. Era o mesmo que Caio usava quando o empurrava nos corredores da escola, quando o insultava na frente de todos e quando o humilhava fisicamente e verbalmente. Miguel ainda sentia as marcas, não apenas no corpo, mas na alma.
— Caio, o que você quer? — perguntou Miguel, a voz trêmula de medo e cansaço. — Ainda não teve o bastante?
Caio riu, uma risada cruel.
— Você sempre foi fraco, Miguel. O mesmo covarde de sempre. E agora, acha que fugindo esse seu robozinho vai te proteger? — Ele balançou a lanterna na direção de Lumi, desafiador.
— Lumi, me ajude! — pediu Miguel, desesperado, tentando manter alguma distância.
Lumi se posicionou entre Miguel e Caio, seus olhos azuis brilhando intensamente.
— Afaste-se de Miguel — ordenou Lumi, sua voz eletrônica reverberando com autoridade.
Mas Caio não se intimidou desta vez. Ele sempre gostou de dominar Miguel, de fazê-lo sentir-se pequeno, e não deixaria um robô impedi-lo agora.
— Não preciso de robôs pra ensinar uma lição a covardes como você! — gritou Caio, avançando.
Miguel sabia que Lumi poderia afastá-lo facilmente, mas, de repente, uma voz interior fez com que ele desse um passo à frente, parando Lumi com a mão.
— Não, Lumi. — Miguel encarou Caio pela primeira vez em anos, seus olhos brilhando com algo novo. Não era mais o mesmo medo de sempre. Era a dor misturada com determinação. — Isso é entre mim e ele.
Caio parou, surpreso. Aquela reação não era o que ele esperava de Miguel. O garoto que ele humilhava nunca tinha coragem de se levantar.
— O que você está fazendo, Miguel? — zombou Caio, balançando a cabeça. — Vai me enfrentar agora? Vai? Depois de anos sendo meu saco de pancadas?
— Não, Caio — disse Miguel, sua voz firme. — Não vou te enfrentar. Eu vou te perdoar.
As palavras atingiram Caio como um soco. Ele não esperava isso. Um instante de silêncio pesado caiu entre eles. Caio abriu e fechou a boca, procurando algo para dizer, mas nada saía.
— Perdoar? — murmurou Caio, confuso e incrédulo. — Depois de tudo o que eu fiz? De todas as vezes que te humilhei?
— Sim, perdoar — repetiu Miguel, sentindo o peso de suas próprias palavras. — Não é por você, é por mim. Eu carreguei esse ódio e essa dor por muito tempo. Você me machucou, Caio. Mais do que eu posso descrever. Mas eu não quero mais viver assim. Não vou deixar que o que você fez defina quem eu sou.
Caio, que estava preparado para mais uma rodada de violência, sentiu-se desarmado. Ele não sabia como reagir a isso. A raiva que ele carregava, a necessidade de controle e dominação, de repente não faziam mais sentido.
— Por que... por que você simplesmente não me odeia? — sussurrou Caio, quase para si mesmo, sua voz finalmente revelando a fragilidade que ele sempre escondeu por trás de sua brutalidade. — Eu mereço isso.
Miguel deu um passo à frente, agora em pé frente a frente com Caio, mas desta vez, era ele quem parecia mais forte. Não fisicamente, mas emocionalmente. Pela primeira vez, ele não era mais o garoto indefeso.
— Eu não vou ser como você, Caio. — Miguel disse calmamente. — Vou encontrar o meu caminho, e você precisa encontrar o seu. Mas isso começa com você se olhando no espelho e decidindo que não quer ser o monstro que foi pra mim.
Caio apertou os punhos, mas não com raiva. Era frustração. Ele olhou para o chão, incapaz de sustentar o olhar de Miguel, enquanto a verdade das palavras ecoava em sua mente. Pela primeira vez, ele não tinha controle. E o que era ainda mais perturbador para ele: não tinha a desculpa de Miguel ser o fraco. Agora ele era o pequeno, o quebrado.
— Eu... eu não sei como mudar — admitiu Caio, sua voz falhando.
Miguel respirou fundo, sentindo um estranho alívio. Nunca imaginou que ouviria Caio dizer isso.
— Todos nós podemos mudar, Caio. Mas você tem que querer. — Miguel deu um passo para trás, mantendo o olhar firme. — Talvez você não entenda isso agora, mas eu espero que, um dia, você se olhe no espelho e decida que não quer ser mais o garoto que usava os outros para esconder seus próprios medos.
Caio permaneceu em silêncio, sem saber o que dizer. A fúria que ele carregava começou a se desfazer, deixando para trás apenas o vazio.
— Lumi, vamos — disse Miguel, sem olhar para trás.
Lumi seguiu seu comando, e os dois começaram a se afastar, deixando Caio sozinho, de pé no mesmo lugar onde sua raiva o havia abandonado.
O sol começava a despontar no horizonte, iluminando o caminho à frente de Miguel. Pela primeira vez em muito tempo, ele não se sentia perseguido. Não era mais prisioneiro de seu passado, de suas dores, ou do medo que Caio havia cultivado nele. Lumi, ao seu lado, iluminava suavemente a trilha.
— Você fez o certo, Miguel — disse Lumi, com sua voz suave e metálica.
— Talvez — respondeu Miguel, sentindo uma paz que nunca havia experimentado antes. — Mas mais importante do que fazer o certo... é que, finalmente, estou livre.
Com o sol nascendo no horizonte, Miguel seguiu em direção ao desconhecido, mas dessa vez, ele não estava fugindo. Estava caminhando para seu futuro, livre das sombras do passado.
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Inspiração
Minha inspiração para este conto surgiu da ideia de explorar a solidão e o desejo de pertencimento do ser humano diante da perda, assim como a resiliência emocional para sobrevivência. O robô simboliza a luz na escuridão, mostrando que amizade e conforto podem surgir de maneiras inesperadas.
Sobre a obra
A obra reflete temas atuais do século XXI, como a pandemia e a IA. Usei técnicas essenciais de contos: organização clara das ideias, título envolvente, uso de storytelling para evocar sentimentos, linguagem objetiva e simples, poucos personagens, enredo direto, sem subtemas ou exageros e um final que resolve os conflitos.
Sobre o autor
Sou economiária aposentada e encontrei na escrita a oportunidade de realizar meu sonho de ser escritora. Através das histórias que crio, posso explorar emoções profundas e temas contemporâneos que me tocam. Na escrita, consigo expressar minhas ideias e sentimentos, transformando experiências e inspirações em palavras que, espero, impactem quem lê.
Autor(a): VERONICA DA SILVA GALVAO (VERONICA GALVAO)
APCEF/AL