- Página inicial
- Detalhe obra
TRAVESSIA
TRAVESSIA
Solana Bandeira
Do outro lado do rio, bem em frente à escola, morava Pajeroba, que além de transmitir a sabedoria de seus antepassados indígenas, também exercia a arte da cura com plantas e rezas. Era o curandeiro da região, o pajé. Deste lado, residia a professora com sua família e seus agregados: o esposo Nonato, as duas crianças, comadre Dica, que viera com eles da cidade, e cuidava da lida da casa e das duas crianças pequenas, Manito, seu irmão desajustado, que vivia indo e vindo, e Zezinho, o afilhado de 16 anos, que pouco ia em sua casa, lá para as cabeceiras do rio.
Era a primeira escola implantada na parte baixa do rio Itacuruba. A professora viera na missão de educar as crianças da região. Porém, antes de vir, o padre a procurou para agregar à sua grande missão também a tarefa de dar aulas de catequese, “domesticar” e “dar estilo” àquelas crianças que andavam livres, nadavam nuas nas águas dos rios, meninas que subiam seminuas em árvores como se fossem moleques, comiam com as mãos, catavam piolhos diante de todos, e ainda por cima não tinham religião. Poucas delas eram batizadas ou sabiam fazer o sinal da cruz! Precisava urgentemente prepará-las para a Primeira Eucaristia. Mariana desconfiava que ainda adoravam o sol, a lua e o Deus Tupã influenciadas pelo convívio com o compadre Pajeroba, que não era bem seu compadre, mas por tradição do lugar logo adotavam essa forma de tratamento. Poucas vezes se viam, só mesmo quando ele atravessava para comprar tabaco no armazém do marido e ela estava na sala de aula ao lado. Começou a sondar e descobriu que aquele bocado de canoas amarradas em sua ponte era de pessoas que vinham se consultar sobre seus males carnais e espirituais. A professora torcia os beiços praquelas práticas e quando tinha oportunidade orientava as comadres:
- Comadre, é melhor a senhora levar essa menina no médico da cidade. No SESP (Serviço Especial de Saúde Pública) tem médicos muito bons e de graça. Cuidado com essas pajelanças que podem até prejudicar mais ainda.
- É cumade, mas não temos recursos pra chegar até a cidade e cumpadre Pajeroba é muito bom e não cobra nada também.
- Mas não tá vendo comadre, que raízes, folhas e unguentos não podem resolver problemas sérios de saúde?
- Mas ele também reza em cima cumade e tem dado certo.
- Reza como comadre? Ele nem segue as leis de Deus. O que ele faz é pajelança.
- Tá bom cumade, vou ver com Ramiro o que ele diz.
Ramiro, ali perto comprando uma quarta de breu pra calafetar a canoa, se vira e responde prontamente:
- Besteira, só porque num sangrô treis meis vai ter que ir pra cidade? Cumpadre Pajeroba passa uma garrafada e num instante arresolve.
E assim a vida se passava nas duas margens do rio. Cada um fazendo aquilo que sabia, mas com a professora sempre querendo interferir no modo de vida daquela “pobre comunidade”, como dizia ela.
Naquele dia Nonato acordou ainda de madrugada, chamou Manito, pra tirar a rabeta da ribanceira, pois era dia de ir na cidade buscar mantimentos para abastecer o armazém.
- Marianinha, vou voltar só no final da tarde. Precisa de alguma coisa pra casa?
- Não Natinho, só não esqueça do remédio de verme que Dr. Miranda passou para as crianças. Já vou pedir à comadre Dica que mate uma galinha e faça uma canja.
- Tá certo. Qualquer necessidade peça pro Zezinho lhe ajudar. Ele vai passar o dia no Armazém.
- Ah Natinho, também não esqueça de passar na Casa Paroquial pra trazer os catecismos que Padre Osório irá me enviar. Tenho que deixar essas crianças preparadas para a primeira comunhão. Ele me disse que vem celebrar uma grande missa no fim de maio.
O marido torceu a cara, que não era lá ligado a nenhuma religião, pois queriam sempre era o dinheiro dos fiéis.
- Marianinha, não é melhor esquecer isso de religião e ficar só com a educação? Já vimos que esse povo daqui não tá aceitando bem essa ideia de virar católico, apostólico, romano! Nonato sempre frisava bem essas últimas palavra. Tem o pajé aí na frente que já está aqui há muito tempo e que o povo lhe tem o maior respeito, e já vimos que é pessoa boa, amiga, até vem aqui fazer suas comprinhas.
- De jeito nenhum! Vou cumprir com a minha missão. Quero ver essas crianças todas batizadas, crismadas e feitas a primeira comunhão! É assim o certo e assim tem que ser! E ainda mais: vou conseguir com o prefeito que abra um posto de saúde pra tratar das doenças, e assim vão saindo devagarinho dessas crendices de que o Pajeroba cura qualquer mal. Isso é um atraso Natinho! Não saí da cidade, do meu conforto pra fracassar na minha missão. Você sabia que a comadre Chiquinha tá com um tumor no seio e diz que compadre Pajeroba vai curar? E que a menina de seu Gico, minha aluna, levou uma queimadura terrível e estão tratando com emplasto de folhas? Eu não...
- Tá bom professora Mariana! Faça como achar melhor! Já tenho coisas demais pra me preocupar.
Deu um beijo na testa da esposa e partiu.
Mariana ignorou a fala do marido e começou a arrumar a sala de aula com ajuda de comadre Dica. Os alunos já começavam a chegar. Passou as orientações para a comadre sobre a comida das crianças, que deveria ser bem leve por causa do purgante que iriam tomar naquela noite.
- Comadre, mate aquela franga amarela e separe os miúdos da galinha pra fazer a canja das crianças, e os pedaços maiores a gente almoça e janta hoje. Faça um pirão daqueles bem bons para acompanhar.
- A galinha já tá separada no curral cumade, e já botei a água no fogo pra depenar. Vou cuidar da lida enquanto as duas zinhas ainda dormem.
A professora recebeu os alunos, fez a oração inicial corrigindo as crianças que ainda não sabiam fazer o sinal da cruz, depois recolheu os cadernos com os deveres de casa e quando estava na lousa ensinando a família do M: ma, me, mi, mo,..., Paralisou. Ouviram o barulho de uma panela caindo no chão e um grito assustador: - Socorro, me ajudem!
A sala de aula ficou em polvorosa. As crianças curiosas e destemidas correndo para a cozinha. Mariana como barata tonta, não sabia o que fazer: se ia pra cozinha, se mandava as crianças voltarem e se aquietarem, ou se gritava por Zezinho no Armazém. Nem lembrou que as duas filhas ainda estavam no quarto dormindo. Correu para a cozinha rodeada de crianças e a cena que viu lhe paralisou. Comadre Dica estava arrancando as vestes do corpo, com a barriga à mostra já em carne viva, e a panela de água fervente derrubada no chão. O desespero da mulher era apavorante e Mariana só sabia se benzer e gritar: “Virgem Nossa Senhora me acuda!” “Jesus Cristo o que é que eu faço?” Comadre Dica na agonia da queimadura pegava água do pote e jogava no corpo já em bolhas.
- O quê que eu faço comadre? Mariana não estava acostumada a enfrentar situações dessa natureza. E comadre Dica não tinha cabeça para pensar naquela hora. Uma das crianças falou:
- Fessora, leve ela no compadre Pajeroba!
Mariana não contou conversa, gritou pra Zezinho: “cuida das crianças Zezinho!” Puxou a toalha da mesa, enrolou comadre Dica e caminhou arrastando-a pelo braço rumo a ponte. As canoas dos alunos estavam lá ancoradas. Entraram na primeira que viram e o menino, dono da canoa, imediatamente tomou seu lugar de piloto, pegou o remo e atravessou o rio. Desceram sob os gritos da professora Mariana: “Compadre Pajeroba, compadre Pajeroba, acuda minha comadre pelo amor de Deus! Ela se queimou com uma panela de água fervente”. Compadre Pajeroba aproximou-se calmamente, acendeu seu cachimbo, soltou uma boa baforada sobre a mesa onde deitou comadre Dica, pediu à sua mulher que trouxesse a bolsa com os potes de unguentos, que fizesse um chá de folhas de alface, e trouxesse algumas bananas. Silenciosamente pegou uma semente do bolso, não se sabe de quê e entregou à comadre Dica. “Mastigue bem essa semente que irá diminuir as dores”. Descascou as bananas e foi colocando as cascas sobre a pele da barriga em carne viva. A professora, calada, tratava de cobrir o corpo da comadre no que era possível, sem desviar o olhar de Pajeroba, que enquanto aguardava o chá que sua mulher esfriava, soltou ainda algumas baforadas pela sala, foi tirando uns paninhos da bolsa, ensopando no chá e pondo sobre a queimadura. Aos poucos comadre Dica foi se acalmando e o Pajé passou a colocar seu unguento feito de babosa, mel e alface sobre a barriga de comadre Dica. Concluiu o curativo e disse:
- Pronto professora, estão dispensadas, amanhã eu passo no Armazém pra ver como comadre Dica está, e aí fazemos um novo curativo.
A professora cheia de sabedoria, acostumada a sempre ter o que falar, naquele momento não tinha palavras. Não sabia se só agradecia ou se perguntava o valor dos serviços prestados, mas arriscou timidamente:
- Quanto é compadre?
- Não trabalho por pagamento comadre. Precisando é só vir.
Mariana saiu de cabeça baixa, desceu a escada, subiu na canoa com comadre Dica, e o aluno pegou a remar. Fez a travessia do rio sem dizer uma palavra!
Compartilhe essa obra
Inspiração
Participo do Clube do Conto em João Pessoa, e semanalmente escolhemos um tema entre vários sugeridos pelo grupo. Travessia não foi um tema fácil, mas decidi seguir o caminho que geralmente percorro: a junção de memórias afetivas com alguma temática social presente na atualidade. Daí escolhi como mote a questão do respeito pela crença do outro.
Sobre a obra
Minhas narrativas quase sempre são alimentadas pelo meu eu-criança. Mesclam ficção com fatos e personagens reais da minha infância. Gosto de criar conflitos que se revelem através de diálogos, onde tento fazer com que o/a leitor/a vá se envolvendo e formulando seu ponto de vista sobre a trama e os personagens.
Sobre o autor
Não me considero escritora, apenas gosto de experimentar e exercitar um pouco no mundo das artes e da literatura, que sempre me fascinaram. Sou atriz e escrevo textos teatrais, resolvi também visitar o universo do conto. São desafios que me imponho após a aposentadoria para manter a mente sempre ativa e criativa. Em resumo: sou uma eterna aprendiz!
Autor(a): ANA DA COSTA BANDEIRA (Solana Bandeira)
APCEF/PB