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A CUMBUCA DA VOVÓ
A CUMBUCA DA VOVÓ
Solana Bandeira
A casa da minha vó era o lugar mais mágico e agradável que conheci em toda a minha vida. Para mim ela era uma personagem que povoava minha imaginação, tal qual as dos livros infantis mais deslumbrantes. Vovó reinava soberana e absoluta entre os caldeirões de doces, os potes de compotas, as jarras e alguidares de barro, a roupa dançando nos varais, as colchas bordadas ou de retalhos, os vasos de ervas e flores, os pilões, as cuias e cumbucas. Vovó era a deusa das cumbucas! De suas mãos ágeis e delicadas surgiam cuias e cumbucas de todos os tamanhos e formas. Naquele quintal enorme se destacavam dois pés de cuieira, que frutificavam o ano todo, e ela própria fazia a colheita e o tratamento dos frutos que, se minha memória não falha, consistia em parti-los, colocá-los de molho na água até amolecer para poder extrair a massa interna, depois eram lixadas com escamas de pirarucu, e deixadas expostas ao sol por alguns dias. Aí começava a fase do tingimento, que era feito com um pigmento natural chamado cumatê, e finalmente estava pronto o utensílio doméstico para sua casa ou para presentear alguém. Nós, as netas, ficávamos lá, horas a admirar todo aquele processo mágico, e aqui ali lhe ajudando, ou melhor dizendo, lhe atrapalhando na confecção da sua arte. Ela não se importava com isso, com sua paciência infinita, interrompia a tarefa e satisfazia toda a nossa curiosidade.
Em tempos que o plástico não havia chegado ainda na nossa cidade, vovó fazia cumbucas e cuias para os usos mais diversos: cumbuca do sal, dos temperos, das ervas medicinais, da farinha de mandioca, dos ovos de galinhas do quintal, e uma baixela de cuias para tomar mingaus, tacacá e açaí. Também existiam as cumbucas que ornamentavam a casa, como aquela pendurada atrás da sua rede, fazendo par com seu terço de madrepérolas, próximo ao oratório, junto das imagens dos santos e fotografias dos finados da família. A cumbuca era comprida, com tampa, já desgastada pelo tempo, mas ainda se distinguia levemente o desenho de um pássaro, talvez uma cegonha. Nunca saiu daquele lugar, nem nunca vi depositarem ou retirarem algo de dentro dela. Era a cumbuca da vovó! Apenas isso! Ninguém ousava mexer!
Minha vó tinha algo de fada e de bruxa, com suas benzeduras, poções e chás potentes para curar as dores e dissabores do corpo e da alma. Seu universo era sua casa e seu quintal, exceto quando suas filhas estavam perto de parir e ela se mudava, para cuidar dos preparativos do parto, assessorar a parteira na hora do nascimento e permanecer naquela casa por quarenta dias: a famosa quarentena da parturiente! Desalojava o genro do quarto do casal, e lá se instalava com sua rede ao lado da cama da filha e do berço do recém-nascido. Vovó era quem dava o banho da criança, cuidava do umbigo, do arroto após a mamada, dos cueiros pra lavar, dos outros netos, enfim... de tudo! Vida boa mesmo era da parturiente, que recebia na cama por dias aquele tradicional prato, feito com um delicioso pirão e as partes nobres da galinha de capoeira, engordada em seu quintal! Finda a quarentena da filha ela retornava pra sua casa e imergia em sua antiga rotina.
Minha vó viu nascer todos os seus netos ou netas! Veio a falecer no ano de 1975. Foi uma perda inestimável para a família! Baús foram abertos e seus guardados divididos como lembranças. As velhas cartas despertaram nossa curiosidade e atenção, mas nada causou tanto impacto e comoção como o conteúdo da cumbuca da vovó. Lá residiam vinte e cinco pacotinhos feitos em papel de embrulho e amarrados com cordão. Sobre o papel estava escrito, com sua caligrafia impecável de menina educada em colégio de freiras, o nome de cada um de seus netos ou netas, com a data e a hora do nascimento. Dentro do embrulhinho estava o umbigo de cada uma das crianças. A cumbuca da vovó era a cumbuca dos umbigos!
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Inspiração
Esse conto surgiu após temática escolhida em um dos encontros do Clube do Conto, que participo aqui em João Pessoa. O tema foi CUMBUCA. Imediatamente me transpus para minha infância, na casa da minha vó, onde cresci vendo uma série de cumbucas distribuídas pela casa. Essas lembranças me causam nostalgia e quase sempre me inspiram nos meus contos.
Sobre a obra
A partir de uma lembrança da infância, me coloco como narradora de uma história mesclada de ficção e realidade, tendo como única personagem a minha avó. Quis criar um clima de empatia com o/a leitor/a fazendo com que ele/a mergulhe também em suas lembranças de infância, e quiçá com a imagem da sua avó, e ao final revelo algo inesperado e emotivo.
Sobre o autor
Sempre gostei de literatura e artes. Hoje, após me aposentar e graduar-me em Teatro tenho me aventurado na escrita de textos teatrais, e recentemente resolvi também explorar a seara do conto. Sem pretensão de tornar-me uma escritora, lanço-me em novas experiências criativas, preenchendo meu tempo e minha mente com aprendizagens prazerosas.
Autor(a): ANA DA COSTA BANDEIRA (Solana Bandeira)
APCEF/PB