O despertar

O DESPERTAR
Por Soraia Pestana

O despertador toca, é outono, faz 14 graus lá fora, mas preciso fazer os ovos mexidos da Manu. Coragem.
Levantamos, tomamos café, e depois do “beijo/Deus te abençoe/boa aula”, fecho a porta e corro pras cobertas. Tenho uma hora pra descansar mais um pouco antes de me arrumar pro trabalho.
Respondo algumas mensagens, dou uma olhada nas redes sociais e me permito fechar os olhos por alguns minutos, que obviamente parecem ser segundos quando percebo que a hora já passou.
Deixo o celular ali na cama e corro pro banho.
A partir daí a maratona de todas as manhãs recomeça.
Primeiro de tudo, você já sabe, arrumar a cama!
Cama arrumada, montar a marmita do almoço, preparar as saladas de mãe e filha, guardar tudo na geladeira, escolher a roupa, passar todo o arsenal de truques no rosto para aparentar a idade da minha alma e não do meu RG, e ajeitar o cabelo com uma secagem rápida.
Oração de agradecimento e pedido de proteção feita no meu cantinho especial.
Pronto!
Bilhete único na mão, mochilete no ombro, e celular...
Onde está o celular?
Pane no sistema.
Onde está o celular?
Isso não é novidade, praticamente todos os dias acontece esse “pequeno” lapso de memória, confesso, as más línguas dirão que muitas vezes ao dia.
Eis que me pego refazendo todas as tarefas até então realizadas, naquele plano infalível: da última à primeira.
Reviro o banheiro, a sala, a “enorme” cozinha, os quartos, as gavetas, os armários... a cama! deve ter ficado debaixo das cobertas quando arrumei.
Nada.
Dentro das fronhas.
Nada.
Debaixo da cama.
Nada.
Criado-mudo, correção, mesa de cabeceira, sendo politicamente correta.
Volto a cozinha e confiro até dentro da geladeira e freezer.
Nada.
Claro que os mais distraídos podem estar se perguntando, por que não ligou pro seu número e o procurou pelo toque?
Sozinha em casa e sem telefone fixo. Respondido.
Dou-me por vencida, devo estar atrasada. Nem tenho como saber porque não uso relógio, nunca usei. Como saber as horas sem o celular? Mais um desafio.
Decido que enfrentarei este dia sem o artefato que não existia até minha entrada na faculdade em mil novecentos e... deixa pra lá, quando a mesa de cabeceira ainda era criado-mudo.
Se sobrevivi até os vinte anos sobreviverei a um dia, certo?
Penso mesmo que estou atrasada, consigo entrar no primeiro ônibus e quando desço no ponto de chegada me tranquilizo com o horário ali no totem do meio da pista, aquele que mostra a temperatura. Ufa! Tenho dez minutos ainda pra chegar na hora.
Um único problema me assalta, ficar sem comunicação com Manu.
Se você tem filhos imagina o desespero. Não sou daquelas mães que monitoram os filhos através do localizador, mas fico atenta o tempo todo ao que ela pode precisar, não posso negar. Apesar disso não sei o número dela decorado. Quem sabe o número de alguém decorado hoje em dia meu Deus? As pessoas trocam de número e operadora como trocam de roupa e é tão fácil digitar o nome de quem procuramos na agenda de contatos.
Estou refém de usar o aparelho do meu colega de trabalho para avisar alguém da minha situação. Me surpreendo em lembrar do único número que sei não ter mudado em vinte anos, o ex-marido, salvação, graças ao nosso ótimo relacionamento.
Mando mensagem e aviso que fique atento a nossa filha porque hoje a mãe online está excepcionalmente de folga, assuma o posto.
Não conto a peripécia que me tirou o celular pois sei que é munição para rir de mim com a nossa filha. Vamos adiar este momento por enquanto. Claro que promovo os melhores motivos de zombaria desses dois, e agora você também tem um motivo pra isso.
Enfim, estou tranquila e, de repente, liberta. Situação estranha, mas curiosamente satisfatória.
Não sei o que acontece no mundo, com os amigos e com a família. Mesmo assim o tempo continua a correr, normalmente, olha que sensação nova!
O trabalho flui, realizo cursos que estava adiando, limpo a caixa de e-mails que estava lotada de mensagens já descartáveis esperando o botão excluir, atendo os clientes tranquilamente. Até agora só vantagem.
Hora do almoço, sinto um repentino pânico. Eu almoço conversando com no mínimo 3 amigas, vejo e posto stories, mando fotos do meu prato e, quando estou querendo ficar quieta, assisto Netflix. E agora? O que vou fazer durante o almoço? Claro, o mais básico. Vou comer, oras. Sozinha e calada. Pode ser uma boa experiência. E foi. Consegui sentir o sabor dos alimentos e sentir que mastigava, que interessante. As garfadas perfeitas. Senti o sabor e a textura da laranja, a sobremesa autorizada pelo nutri.
Não sei se é hora de voltar, não tenho como saber, lembra? Mas prefiro voltar pra ter certeza de que não passei dos trinta minutos. Meu Deus! ainda faltam dez. Fiz tudo com calma, descansei e ainda faltam dez minutos! Normalmente preciso de mais dez.
Escovo os dentes com calma, não pulo o fio dental e o batom, e ainda falta um minuto.
Continuo o dia, sobrevivendo a ausência de comunicação digital.
Entre um cliente e outro descubro um pouco mais dos colegas que ficam ali ao meu lado todos os dias, em vez de me atualizar sobre os vídeos das redes sociais.
Termino as tarefas do dia, pego o ônibus de volta, olho a paisagem e a beleza do entardecer pela janela, não tenho uma tela nas mãos que faça competição com a vista. Também me sinto segura sem aquela sensação do medo de um assalto que me leve aquele pequeno dispositivo que contém minha vida inteira, o pix, os vídeos, as fotos.
Chegando em casa confirmo que Manu também sobreviveu, pasmem! Sem danos ou escoriações. Chegou da escola ilesa e falante, como sempre.
Com a ajuda dela, ligando para o meu número, que garanto saber de cor, fazemos a busca.
Nem vou contar onde estava o celular, pois prefiro que você me pergunte.
Encontrado.
Muitas risadas, e mais uma vez a placa de mãe desligada na testa.
Não reclamo, pois com certeza o tempero do almoço de amanhã será “Friends” ou “The Chosen” (os dois pela milésima vez) e eu vou esquecer que um dia vivi sem as barras/teclas da prisão que me afasta do mundo real e dos pés no chão.
Ou não, pode ser que “sem querer”, o celular se esconda dentro de uma bota de cano alto bem ali ao lado da cama, e eu ganhe mais um dia de vida real de presente.

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Inspiração

Este texto foi escrito num dia comum, quando refleti sobre a nossa relação de dependência com o celular atualmente. Ele faz parte do meu segundo livro, que ainda está em construção. Será uma sequência do primeiro (Isso merece textão - Diário de uma Pandemia), onde pretendo abordar novos assuntos cotidianos de forma leve e bem-humorada.

Sobre a obra

Esta crônica usa meios de conversação com o leitor, que é minha forma de escrever, assim estabeleço um vínculo que faz com que este se transporte ao que estou descrevendo e se sinta próximo a minha realidade, quase como um amigo. Com isso tento fazer o leitor viver e refletir comigo sobre assuntos do cotidiano, como ser refém do celular.

Sobre o autor

Minha vontade de escrever veio de minha mãe, que, professora, escrevia muito bem. Acredito ter desenvolvido uma forma leve e cativante de me aproximar do leitor. Meu primeiro livro foi lançado em 2023 e o resultado foi bastante satisfatório em fazer as pessoas refletirem sobre assuntos que vivemos todos os dias e podemos melhorar.

Autor(a): SORAIA PESTANA NUNES DA CUNHA (SORAIA PESTANA)

APCEF/SP