Entre Fezinhas e Fortuna: Histórias de Um Sonhador

Entre Fezinhas e Fortuna: Histórias de Um Sonhador

Fabrício Lima

Existe uma mística sobre o fato de você dar um trocado, ou uma comida à pessoa em situação de rua e aquilo lhe dar o direito de escutar uma história. Em uma quinta feira qualquer, almoçando na casa dos meus pais, um conhecido que estava fazendo um serviço de pintura se juntou a mesa e fomos presenteados com várias histórias interessantes sobre fé, dinheiro e dinheiro.

O visitante por si só poderia ser personagem de alguma história de mistério. Era um homem baixo da pele bem queimada de sol e de um olhar vivo e penetrante, de cores verde escuro com ranhuras cinza, como de um felino prestes a atacar sua presa. Seu rosto tinha traços fortes e o corpo magro demonstrava marcas de uma pessoa sofrida, que sempre havia desenvolvido trabalhos braçais, mas ao mesmo que lhe garantia um bom porte físico. Por ter um nariz relativamente grande, um bigode queimado de cigarro e uma cabeça arredondada quase sem cabelos, seu rosto fino e sem bochechas ganhava destaque e suas expressões possuíam um aspecto ainda mais exótico e chamativas.

Além disso, quando ele falava existia uma força em sua voz e uma vivacidade em seu rosto, que o faziam uma figura intensa e hipnotizante.

Não sei como iniciamos esse assunto, mas o visitante falou qualquer coisa sobre desvalorização de dinheiro no fim da década 80 em nosso país. E como a inflação galopante tornava as cifras grandiosas, mas que pouco se podia comprar com aqueles valores. Tipo 200 mil cruzados era o dinheiro para se fazer uma compra pequena em um mercado. Um trabalhador ganhava um salário de 1 milhão de cruzados para passar o mês de maneira modesta. Achei aquele assunto incomum para um pintor de casas. Mas ao poucos fui entendendo o porquê do conhecimento específico sobre dinheiro e seu valor no passado.

Naquele contexto, trabalhando como pintor, o visitante disse que nunca teve uma abundância financeira, e que sua esposa sempre teria sido seu porto seguro, e quem o ajudou a criar 2 filhos que hoje se encontram adultos. Então, ele comentou que ao longo de sua vida nunca teve vícios, mas não abria mão de seu cigarrinho e de fazer uma fezinha sonhando em “tirar a barriga da miséria”.

Na mesa de almoço o visitante comia rápido, e ainda arrumava tempo para conversar após as colheras e a comida ser meio que engolida sem muita mastigação.

_“Como seria bom receber uma bolada e não ter que se preocupar mais com trabalho?”.

O ar de felicidade e o brilho nos olhos que seguia essa expressão era escancarado.

“_Pense, eu por toda minha vida já tentei jogar em loteria federal, loteria esportiva, mega sena, jogo do bicho, raspadinha, mas um cunhado de um cunhado do tio de minha esposa fez só um jogo, por acaso, quando estava na fila a lotérica para pagar uma conta, então aproveitou e marcou um cartão de jogos . Um único jogo na mega da virada no fim de 2012 e ganhou, junto com mais dois felizardos, um prêmio de 81 milhões de reais. Aí ele deu 1 milhão para cada um dos filhos, um deles investiu em gado, um abriu uma choperia e o outro entrou na bebedeira e outras coisas até que foi parar na prisão. Agora pensa comigo, do que adiante ter esse dinheiro todo e não poder sair da cadeia?”.

Ficamos olhando para o rosto dele enquanto comíamos, e mencionei que realmente de nada adiantava esse dinheiro todo estando privado da liberdade.

Ele olhou para mim e disse: “_É, mas eu gostaria de ter esse dinheiro todo, depois eu pensava no que ia fazer”. E uma outra expressão de felicidade percorreu seu rosto. Como se ele realmente se visse no corpo de um milionário por alguns instantes.

Mas aí o visitante começou a falar que já recebeu alguns sinais. Algo mandado, e apontava para sua carteira em cima da mesa. A gente olhava para carteira e pare ele sem entender até que minha mãe o questionou:

“_Mas como assim, que sinal é esse? Aí ele comentou que já encontrou muito dinheiro na rua. Que ele tinha uma bicicleta, e andava pela cidade inteira pedalando, e que aquilo o ajudava. “Já achei nota de cinquenta. Imagina, já cheguei a achar uma nota de cem reais! Um dia sai de casa com 16 reais no bolso para pagar uma conta para minha nora, estava desempregado e minha bicicleta com os pneus bem gastos, aí ela me daria dois reais, até que próximo ao ponto de ônibus vi uma pessoa passar, pisar na nota e não pegar, aí eu não perdoei, abaixei e catei a nota. Pra quem tinha saído da casa na esperança de ganhar dois reais, ter voltado com 52 foi um lucro e tanto. Aí passei no mercado comprei carne, e fui na bicicletaria e pedi pra colocarem dois pneus novos na magrela.”

Olhei para ele e perguntei.

“_O que você sentiu quando achou aquele dinheiro?”.

Imediatamente ele responde.

“_Foi coisa mandada. Não foi por acaso. Não acredito que tenha sido por acaso. E você tem que estar fazendo algo. Tem que estar indo fazer alguma coisa para isso acontecer”. Nesse momento seu rosto se tornou sério. Como se ele estivesse contanto um segredo, uma informação importante que poucos tinham acesso.

Confesso que achei aquilo interessante. A forma como aquele homem contatava e narrava essas situações. Havia uma empolgação na maneira como ele falava. Havia algo de teatral em suas falas. Era quase como um monólogo ensaiado para ser apresentado à uma plateia importante.

Nessa altura já havíamos terminado a refeição. Nos levantamos da mesa e fui logo pegar uma xícara de café. Estava um tempo fechado, e a temperatura estava caindo. Era um dia perfeito para sentar e jogar conversa fora. Apesar de ser um dia de semana e de ambos termos que trabalhar.

Ofereci um café ao visitante contador de histórias. Talvez de forma inconsciente queria continuar escutando suas narrativas. Ele recusou o café, mas acendeu um cigarro, e depois de uma longa tragada, que acompanhei pacientemente, até que o homem expelisse toda a fumaça de seus pulmões, então perguntei.

“_Quer dizer que você gosta de fazer uma fezinha? Você joga sempre?”

“_Jogo de vez em quanto. Não jogo muito dinheiro, de vez em quando faço um joguinho pra distrair, pra tentar mudar essa vidinha. Alegria de pobre sabe?”. Acho engraçado a maneira com ele passava algumas palavras para o diminutivo. Uma coisa meio de mineiro. Como uma forma de minimizar o fato, que não acredito realmente que seja tão pequeno e sem importância o que aquele homem dava para o jogo.
Isso me faz lembrar uma máxima popular do mineiro que te indica um caminho dizendo:

“_É pertinho. Logo ali sô”. De fato, isso já ocorreu comigo. E me recordo que demorou meia hora para chegar ao meu destino, em uma caminhada em ritmo moderado. Com eu estava cansado e com fome naquela ocasião, aquele tempo me pareceu uma eternidade. Daí em diante passei a desconfiar um pouco dos diminutivos.

Mas a histórias pareciam bem reais. Havia uma riqueza e exatidão de detalhes que exigiria uma criatividade imensa da pessoa inventar tudo aquilo.

Aí que perguntei se alguma vez ele tinha ganhado algum valor nos jogos que tinha feito? Sua feição voltou a ficar séria.

“_ Em 1989, quase véspera de natal eu fui até o bar do João e pedi pra ele marcar um cigarro e dois refrigerantes para eu pagar no mês que vem. Aí ele disse que eu já tava com uma conta pendurada, tinha que pagar aquele pra comprar mais coisas. Isso tinha outros clientes no bar. Fiquei com vergonha. Mas aí eu tinha três reais no bolso, e no bar eles também faziam jogo do bicho. Aí na noite anterior eu tinha sonhado com uma pessoa que tinha passado a perna no meu filho em um negócio de compra de um aparelho de som. Sonho é doido mesmo. Eu não tinha dinheiro nem pra comprar um quilo de carne. Bom, aí como sonho é tudo o contrário resolvido jogar na dezena do cachorro. Fiz dois jogos com final 17 e 18. No outro dia eu estava acompanhando o resultado pela rádio e lembro que no quinto prêmio não levei nada, no quarto lembro que deu final 29 e 30, Camelo. No terceiro não lembro e no segundo também não lembro. Aí olhei pra minha esposa já sem esperança. Mas quando cantaram o resultado do primeiro prêmio foi 1017 e 2018. Deu na cabeça. Comemorei muito, dei pulos de alegria, abracei minha patroa e pensei na hora, (...) é coisa mandada.

_No mesmo dia fui no bar pra receber o dinheiro, mas pagavam em cheque. Aí o dono do bar olhou pra mim e disse que eu poderia pegar o que quisesse e marcar pra pagar depois. O bar ficou quieto e o pessoal que estava lá dentro tudo me olhou. Deu uns 5 mil reais se for contar hoje. Peguei o cheque e fui no banco. Descontei o valor e peguei aquele dinheiro e comprei um presente pro meu filho nas lojas CEM. Passei no mercado e fiz uma compra e paguei conta de luz e água atrasadas. O resto não me lembro, mas lembro de como o pessoal me olhou no buteco. Parecia que eu era importante”.

Ficou bem evidente como o visitante se emocionou ao contar aquela história. Os olhos verdes ficaram lacrimejando. Ele fez uma longa pausa pra disfarçar a comoção.

A maneira como ele falava dos valores e demonstrava a empolgação com o sonho de ficar rico com um grande prêmio em sua vida, e uma vontade de sair de uma vida de privação. Mas não acho que seja só isso. O jogo até pode ser um distrativo, no entanto acho que existe algo além naquelas histórias de jogo, fé misturada com superstição.

Aí eu já tava meio que indo embora para o trabalho, e fiz menção de me despedir, mas nosso visitante começou outra fala.

_Em 74, Lembro que fiz um jogo na antiga loteria esportiva. Fiz só 9 pontos, mas aí era necessário 12 pontos né? Como o cartão era furado para marcar as apostas eu acabei furando os outros três resultados e mostrei o cartão para o meu cunhado que era bem boca aberta. Aí ele foi logo espalhando a notícia na rua. Aí não demorou muito pras pessoas chegarem pra pegar na minha mão. Me abraçarem, me deram tapa nas costas. Lembro que chegaram até a comprar carne e bebida pra fazer um churrasco. Chegou pessoa que eu nem conversava direito pra me dar parabéns. Olha me senti importante aquele dia (gargalhada). Depois que descobriram a verdade a coisa ficou feia rapaz. Quase apanhei sô (outra gargalhada).

Acabei por entrar no clima e comecei a rir também. Por fim, fui me despedir do contador de história e ele ficou sério com nunca e me disse.

“ _Mas eu sei que é tudo mandando, eu acredito muito e sempre tive proteção que não me faltou nada.”

Aí nosso proseador abriu a carteira e mostrou um pequeno retrato com a imagem de Jesus Cristo.

“_então, acredito muito Nele, ele sempre manda coisas pra mim”. Aí ele ficou em silêncio e seus olhos ficaram mareados novamente.

Fiquei sem saber o que dizer também, aproveitei a deixa, apertei sua mão e saí para trabalhar. Mas apesar de ter me despedido daquele homem e suas anedotas, sua expressão, seu rosto exótico que ficava vívido, cujos olhos brilhavam quando ele falava e contatava seus causos, ficaram comigo.

Não consegui me despedir daquelas lembranças.
Na minha opinião até poderiam ser exageradas, mas realmente não indicava se tratar de inverdades.

Havia uma camada de profundidade por cima daqueles contos empolgantes sobre jogos, dinheiro e fé. Era uma vontade de ganhar dinheiro, mas não me parecia algo egoísta ou uma obsessão descontrolada.

Acho que no fim nosso contista se sentia importante toda vez que pegava seus prêmios. Podia ser o dinheiro achado na rua, podia ser o prêmio do jogo do bicho. O se sentir especial, o lugar de destaque que aqueles eventos lhe garantiam eram relacionados com sua fé. Como se existisse alguém sempre olhando por ele. Que apesar de suas privações, falta de oportunidades e até más escolhas na vida, ele não havia sido esquecido.

Ele estava sempre sendo presenteado com “coisas mandadas”, essa mística do desconhecido trazia sentido e alegria em sua vida. Acredito que todos nós temos um pouco da mística do nosso contista. Algo que nos conforta e auxilia a encontrar sentido no que não pode ser explicado. A obra reflete a busca humana por sentido e esperança em meio às dificuldades. O pintor, com suas histórias sobre sorte e fé, simboliza resiliência. Elementos como misticismo do cotidiano, oralidade popular, busca por reconhecimento e fé como refúgio dão profundidade, conectando o leitor à universalidade da esperança.


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Inspiração

A busca humana por sentido e esperança em meio às dificuldades. O pintor, com suas histórias sobre sorte e fé, simboliza resiliência. Elementos como misticismo do cotidiano, oralidade popular, busca por reconhecimento e fé como refúgio dão profundidade, conectando o leitor à universalidade da esperança.

Sobre a obra

A narrativa utiliza linguagem coloquial, descrições vívidas, monólogos internos e estrutura de "causo popular". Alterna ritmo entre ação e reflexão, incorpora humor e ironia, e explora temas recorrentes como fé, sorte e dinheiro. Tento criar uma tensão entre o real e o fantástico, gerando reflexão filosófica.

Sobre o autor

Eu amo contar histórias do cotidiano, revelando a beleza nas pessoas e cenas comuns que nos inspiram e dão mais cor à vida. Através da música, literatura e fotografia, transformo momentos simples em narrativas que emocionam e trazem novos significados ao dia a dia.

Autor(a): FABRICIO SILVA LIMA (Fabrício Lima)

APCEF/MS


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