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Jaguari
Em meio aos canaviais um pássaro cantava, mas eu não podia vê-lo. Ignorava que espécie de pássaro era aquela. Desde criança ouvia o cantar, e até o imitava distraidamente, correndo pelo gramado e sujando o vestido de crochê que minha mãe havia feito com tanto capricho. Depois ela diria: que menina impossível, mais cinco minutos e tinha nascido homem! Não me reconheço nas fotografias daquele tempo em que nem podia escolher o que vestir. Meus cabelos chegavam ao meio das costas, com uma franja lisa que me dava um aspecto de boneca chinesa. Prefiro-os curtos como agora, fáceis de cuidar, os ombros livres para sentir o frescor da brisa.
O sol ardia em meus olhos naquela manhã estranha. Os canaviais ao longo do rio Jaguari eram infinitos; sustentavam a cidade feia e miserável. Fazia falta a caminhonete velha do pai, acostumada com o trajeto; meu carro podia quebrar com os buracos abertos pela chuva recente. Também fazia falta a companhia de Bruna. Eu me sentia só, perdida nas estradas de minha infância; agora eram outras plantações, embora a terra fosse a mesma, acompanhando o velho rio que eu também ouvia, mas não podia ver. Não tinha medo. Ao menos, não reconhecia como medo aquela sensação remota de pesadelo, que atribuía a uma imaginação incansável. Mal recordava o trajeto, quase sempre percorrido à noite, quando a lua chamava mais atenção do que a paisagem. Era loucura. Mas precisava recompor o passado, lembrar o que realmente acontecera naquela noite longínqua.
Até onde sei, nunca houve um mês de abril na região com o ar tão quente e abafado. Mas o cheiro do canavial continuava o mesmo, doce e enjoativo, apesar da poeira que os pneus levantavam. Como era o nome do rancho? Eu tinha lembranças nebulosas do barraco beirando as águas, das muriçocas e da lamparina, tudo rústico e improvisado. Fiz a viagem para resolver um assunto do inventário de meu pai. Conversando com minha irmã, optamos pela venda da casa onde passamos a infância, e que não tinha utilidade para nenhuma de nós. Bruna ficou no apartamento, na cidade que nos acolheu. Faz quase vinte anos que escapamos para longe dos olhares curiosos daqueles que nos chamam de pecadoras.
Eu podia jurar que a porteira antes do mata-burros era de madeira, e não de ferro. Será que trocaram? Estaria no caminho certo? O rancho tinha piso de cimento polido e paredes de madeira. Havia uma pinguela para atravessar o rio. Minha mãe não gostava de ir para lá. E menos ainda minha irmã perfeitinha; dizia que o lugar lhe dava arrepios. Então éramos sempre eu, o tio e o pai. Fazendo silêncio para não espantar os peixes. No meio da noite, a lamparina a gás mal clareava o caminho da beira do rio até o rancho. O tio andava muito bonzinho comigo, me dando atenção, chamando para ver as garças mergulhando na água em busca de alimento. E eu sentia um mal-estar, uma repulsa - ou será que imaginei isso depois? A memória falha me atribuindo uma intuição que nem havia existido? Havia uma pedra onde eu ficava sentada, bem ali onde o rio fazia a curva, os pés quase tocando a água. A chama da lamparina estremecia com a brisa. Eu estava com nove anos. E quando o pai entrou na casa, a noite ficou mais escura; o que realmente aconteceu? O tio veio chegando, encostando, botou a mão na minha coxa, sussurrou alguma coisa, o que era? Não me lembro. Tinha pesadelos, mas seriam precisos? De onde vinha a vergonha que senti depois, a sensação de que todo o mundo me olhava diferente? Não me lembro, nunca quis me lembrar. Mas os sonhos foram ficando recorrentes, e não chorei quando meu pai morreu. Que raio de pai é esse, que não esteve por perto quando mais precisei?
Talvez, quando encontrar o lugar exato, eu consiga ordenar os objetos espalhados no quarto de minha memória, separar a realidade da imaginação. Minha tia foi embora com outro, na calada da noite. Tachada de biscate pela família, um escândalo. O tio era irmão mais novo da minha mãe. Nas noites silenciosas eu sinto falta de Bruna. Amo a delicadeza de suas mãos, a sua forma de compreender sem que eu precise falar. Minha mãe sempre foi um tanto superficial. Das muitas camadas, ela só vê as aparências. Me solidarizo com a tia biscate; somos tão diferentes e ao mesmo tempo iguais, as duas proscritas, motivos de falatório entre os parentes, que não sabem a metade do que passamos. Até que ela aguentou muita coisa. Aquele traste do seu marido vivia envolvido com mulheres, e nunca vi ninguém falando dele. Era o caçula da família, podia tudo.
O canto do pássaro vai ficando mais distante. Será que estou indo na direção certa? Tenho boas lembranças de meu pai quando eu era criança, antes de tudo acontecer. Fazíamos desenhos juntos, a mão grande e a mão pequena contornadas no papel. Ele me explicava com paciência: Laurinha, é assim que coloca a isca no anzol. Depois eu não quis mais pescar, já estava grande. Como se pescaria fosse coisa de criança. Ninguém se importava o bastante para notar que eu andava diferente.
Os pesadelos mudam de lugar. Às vezes é uma praça mal iluminada, outras um barracão abandonado, e sempre um homem sem rosto me perseguindo. Não odeio os homens; o que me causa repulsa é a violência. Tenho pânico quando alguém me atira uma ofensa: você precisa é de macho, gosta de mulher porque não sabe o que é bom. Amo meus sobrinhos, os dois meninos de minha irmã perfeitinha. Eles me aceitam como sou; não enxergam a tia Laura e a tia Bruna diferentes dos outros casais da família. Entediada, minha mãe dizia para a vizinha: minha filha mais nova tem esse problema. Que problema? Só porque nasci com uma personalidade que não se ajusta ao que esperam de mim. Tentei resistir ao meu primeiro amor, uma colega da escola, que acabou se casando com um menino que ela namorava. Isso foi antes, muito antes de Bruna chegar naquela festa e arrebatar meus pensamentos.
Olho para os canaviais e não me vejo. Não pertenço a esta cidade. Nem a esta família. Não derramei uma lágrima no velório de meu pai. Como vou fingir algo que não sinto? Minha irmã perfeitinha se acabou de chorar, dando um espetáculo para todo mundo ver. Como se ela se importasse tanto assim. A diferença entre nós é que eu vivo de acordo com o que penso.
Depois de uma curva, apareceu o rio. Meu coração batia depressa. Desci do carro e segui por uma picada aberta em meio ao matagal. A sensação de pesadelo já não era remota. Debaixo do sol, minha visão escurecia. Com dificuldade, percebi umas ruínas meio escondidas pela vegetação. Me aproximei. Em alguns pontos, o piso de cimento polido se conservara intacto. Podia distinguir o local onde ficara a cozinha, e ao lado os dois pequenos quartos que no passado abrigaram vários beliches. Era estranho; o rancho parecia menor. Ou, quem sabe, era eu que havia crescido. Me veio uma sede intensa. Busquei uma sombra: onde estavam as árvores do passado? Hoje pareciam outras; eu não as reconhecia. Um pouco adiante, avistei a pedra onde costumava me sentar durante as pescarias. As águas do Jaguari haviam baixado, não chegavam até ela, que também parecia menor agora: uma rocha cinzenta, comum. Não havia nada sinistro debaixo do sol escaldante.
O rancho não existia mais. Nem a Laurinha dos cabelos lisos, da franja de boneca chinesa. Fazia sete anos que o tio havia morrido num acidente de carro. Vinha bêbado, saindo de um baile, e a culpa era da tia que o deixara por outro: bebia de desgosto. Eu sentia raiva, muita raiva, quando ouvia minha mãe comentar. E aquela noite? Tudo continuava envolto em névoa. Mas a raiva foi se movendo, revirando as pedras no meu peito, e caí de joelhos no mato, finalmente chorando a morte de meu pai. Compreendendo que ele nunca havia desconfiado de nada, e que à sua maneira tinha amado essa filha que parecia um moleque, a companheira de pescarias e diversões. Ah, meu paizinho, por que deixamos crescer esse muro entre nós? Por que não te disse o suficiente que eu te amo? Se um de nós tivesse estendido a mão para o outro, será que você conseguiria me compreender? Voltei lentamente para o carro, a boca seca, uma coceira nas pernas, a claridade ofuscando meus olhos agora inchados pelas lágrimas abençoadas.
Por que era essencial relembrar os detalhes? Tudo estava perdido para sempre, as paredes do rancho transformadas em ruínas, como poderia recompor o que eu fui? Eu apenas sou. E a vida estava ali para viver, quem sabe, muitos anos felizes ao lado de Bruna, fazendo algum bem, deixando um legado para a sociedade, mesmo que a maioria me apontasse o dedo e chamasse de pecadora. Mesmo que não compreendessem que meu amor era puro e santo, assim como o deles, quem sabe muito mais do que o deles.
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Inspiração
O conto foi escrito a partir de um relato de uma pessoa próxima, que me causou indignação. Infelizmente, muitas meninas passam por situações de abuso na própria família, e passam anos sem contar para ninguém.
Sobre a obra
Depois de vinte anos de ausência, Laura retorna à sua cidade natal para resolver pendências do inventário do pai. Tem recordações confusas de um acontecimento traumático num.rancho de pescaria às margens do Rio Jaguari. Decide procurar o rancho, na tentativa de fazer as pazes com o passado.
Sobre o autor
Atualmente, tenho quatro romances e um livro de crônicas publicados, além de diversos trabalhos premiados em concursos literários, abordando os problemas sociais enfrentados pelas mulheres brasileiras.
Autor(a): JENNY ALEXANDRA RUGERONI (Jenny Rugeroni )
APCEF/SP