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O homem e o toldo
Um dia comum. Exceto por um detalhe. Um detalhe humano, masculino, pardo, magro, de talvez uns trinta e três anos e, aparentemente, sem teto.
Era a época mais fria daquele ano. Dentro de casa estava muito frio. Dentro de nossas roupas e debaixo de nossos cobertores estava frio. Os agasalhos não pareciam suficientes.
Naquele dia, falei com meu marido sobre o homem que parecia estar dormindo na calçada do prédio em frente ao nosso, há alguns dias. "Vem cá comigo na varanda observar. Ele não parece um mendigo, nem parece bêbado. Parece um homem despejado de algum lugar, sem dinheiro ou trabalho", eu lhe disse. A janta que sobrou decidimos dar a ele. Meu esposo colocou o agasalho, atravessou a rua e lhe entregou o potinho com uma sopa quente e nova de ervilha, e
uma colher. O homem disse “obrigado!”.
Todos os dias, antes de dormir, eu o observava entre as cortinas da minha varanda. Observava
seu comportamento na rua fria e sem ninguém. Analisei a maneira como escolheu aquele lugar, como elegeu sua nova moradia. Eu o analisava diariamente.
Dormia sob a marquise estreita do prédio residencial, e chovia quase diariamente naquela época. Quanto tempo demoraria até os moradores daquele prédio tirarem ele de lá? Isso me preocupava...
A rua era calma, bem localizada. Ele estava à vista de todos, e isso provavelmente foi pensado por ele, porque lhe dava uma gota de segurança no rio de medo que deve ser viver na rua. Dormia exatamente debaixo do poste, bem iluminado, sem parecer ter nada mesmo a esconder.
Tudo o que possuía estava dentro de um carrinho de supermercado, muito quebrado, que ele empurrava o dia inteiro e para todo lugar. Passou a ser comum eu avistar o homem nas ruas da cidade. Ele andava para pontos distantes, empurrando suas posses no carrinho de supermercado, catando latinhas e mexendo no
lixo dos prédios.
Ele trabalhava. Sobrevivia. Se alimentava do que achava nos sacos de lixo. As poucas latinhas talvez lhe rendessem centavos. Não lhe rendiam sequer um prato de comida ao dia. Mas era um trabalho, e isso é potente. Pensei que sem propósito diário, facilmente recorreria à bebida, drogas, roubos, ou pior.
As pessoas deixavam, às vezes, doações... mas de que adiantaria se nada fosse feito para tirá-lo dali para um teto?
À noite, debaixo do poste, abria um caderninho, anotava algo, o fechava e devolvia à sua mochila no carrinho de supermercado. Noutros dias, se esforçava para passar uma linha por uma agulha, sob a luz do poste, depois guardava as pequenezas numa mochila velha.
Ao dormir, forrava uma coberta fina no chão sob a marquise, alinhava o carrinho de supermercado para bloquear inutilmente a ventania, e se cobria com um pano até a cabeça. Ele ganhou outra coberta quentinha, para que a próxima noite fosse menos difícil... Mas de que adiantaria se nada fosse feito para tirá-lo dali para um teto?
Dois meses se passaram, e meu vizinho novo seguia firme sua rotina de sobrevivência. Mas, passou a fumar. Mas parecia lícito. O carrinho com tudo o que possuía ficava, agora, estacionado na rua, próximo à calçada, enquanto seguia catando latas e remexendo lixos pela cidade.
Aquele carrinho representava sua moradia, um lugar para onde voltar. Passei do lado dele certa ocasião, e tal como arrumamos nossos pertences em nossos armários em casa, ele arrumou os dele naquele carrinho... era muito pouco. Era nada. Alguém havia deixado uns pães no carrinho para quando voltasse. Mas de que adiantaria se ele permanecesse na rua?
O homem trocou a marquise por um toldo velho, na calçada escura de um imóvel vazio, ao lado do meu prédio. Passou a dormir lá. Acreditei que o homem fora convidado a sair da calçada do prédio onde estava abrigado antes. Restou-lhe abrigar-se sob o toldo azul do lugar escuro, escondido e sem ninguém.
Ao sair de casa certo dia, havia uma gritaria na vizinhança. Algo diferente aconteceu. Um rapaz
da vizinhança exaltado chegou a parar o carro da policia que passava. Ele disse algo aos policiais e o carro seguiu. Tive que perguntar ao rapaz o que aconteceu. Ele disse que uma moça da rua recorreu nervosa a ele dizendo que o homem do toldo tentou assediá-la. O rapaz disse que foi até ele e brigaram. O homem sem-teto havia saído correndo falando palavras de agressão descontrole.
Meu cérebro questionou tudo o que meus ouvidos escutaram. Era o mesmo homem?
Aquele homem não mais habitou o toldo desde aquele dia. E todo o "nada" que existia dele foi
recolhido e provavelmente foi para o lixo, de onde boa parte realmente saiu.
O toldo foi retirado do imóvel, para garantir que não serviria de abrigo a mais ninguém.
O homem que analisei por dois meses e o homem acusado, sem dúvida, eram o mesmo.
O que eu nunca vou ter certeza é se o homem sóbrio que disse “obrigado”, costurou e até escreveu, debaixo do poste, ainda existe.
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Inspiração
Um evento real na minha calçada me inspirou.
Sobre a obra
Narro descrevendo fatos reais tais como ocorreram, imprimindo minhas emoções e impressões neles.
Sobre o autor
Mãe de dois. Colega mineira que trabalha no Espírito Santo há anos. Gosto de escrever.
Autor(a): HELOISA GOMES SOARES DE SOUZA (Heloísa Gomes Soares)
APCEF/ES