Ancestralidade: genética, costumes, vivências e aprendizados

Ancestralidade: genética, costumes, vivências e aprendizados

Nasci por mãos de parteiras, Laurinda e Vicência. Nas horas próximas a minha chegada, e minha mãe sem forças, meu pai recorreu a um médico na cidade vizinha. Ao chegar, aplicou-lhe injeção de forças e, após dois dias de sofrimento, vim ao mundo, de olhos acesos e cor de jabuticaba.
Era o recurso da época, parteiras, dada a pouca assistência médica no interior. Laurinda não conheci, mas sou grata pelas horas, tantas, com minha mãe. Vicência, cresci tomando-a por madrinha, bem como a sua filha Dilma, assim mamãe me ensinou. Morena, lábios grossos e um lindo sorriso. Ela me punha no colo e dizia que eu era sua filha. Ao encostar minha cabeça sentia seu calor, seu cheiro e seu corpo opulento. Esta cena ocorria sempre que eu ia a Pereiro.
Outras memórias afetivas existem, dos queridos e queridas que me antecederam, ou de minha ancestralidade. As amigas de mamãe: Josélia Morais, professora, a quem me habituei a chamar de comadre Josélia. Maria Moreira, leitora, memória viva da história dos conterrâneos, e Socorro Pinheiro, sua parceira no trabalho no comércio.
Meus avós, maternos e paternos, respectivamente, discorro de vivência em período de férias.
Fim de tarde o ônibus chegava à cidade. Vovô Aderson se dirigia para casa. Eu corria para encontrá-lo no caminho. Moreno, alto e cabelos lisos. Caboclo, feições indígenas. Ofício? O que pudesse tirar o sustento: pedreiro, carpinteiro, sapateiro, barbeiro e luthier (fazedor de violão). As três últimas prevaleceram e as que o vi desempenhar.
Vovó Almerinda, morena e cabelos lisos. Traços indígenas mais evidentes que os de meu avô. Suas roupas: vestido de pala e solto pelo corpo. Como as demais mulheres de sua época: dona de casa e costureira. De poucas palavras, um sorriso, às vezes. Um semblante triste. Na cozinha, a pouca opção para a refeição me traz à lembrança a farofa escaldada com cebola roxa e uma carne cozida. O fogão a lenha, onde se detinha por horas, não só cozinhava o alimento, mas sua história: Filhos criados, 7, filhos infantes perdidos, 7.
Vovô Izaltino, pele branca, baixo, cabelos de neve. Agricultor. Postava-se à janela, na lateral da casa, no sítio, para olhar o entardecer, o infinito, após comer um prato de arroz vermelho por janta. A lida do lavrador começa cedo.
Vovó Mariinha, branca, pequena, cabelos gris encaracolados. Eu a avistava na janela da cozinha, ainda distante, quando cortava caminho pelos terrenos, de parentes, que antecediam o seu. Eu passava por cercas de arame farpado ou por cancelas.
Dela tenho mais memórias afetivas que de meu avô. Também dona de casa e costureira. Algo nos tornava mais próximas, sermos canhotas. Com ela aprendi a manusear utensílios universais para destros. A exemplo, o abridor de latas. O destro usa-o em direção ao seu corpo, nós o usamos para a frente.
O fogão a lenha sempre aceso. Aquecia a cozinha, onde a conversa fluía, ou para manter um torrão em brasa para acender seu cigarro de palha, ou cozer os sequilhos, “bulins” de goma, formados no corte por uma carretilha: instrumento de marcar tecido, com haste de madeira e círculo de metal com pontas dentadas.
Suas vestes eram um casaco e saia. Às vezes, um casaco de frio com bolsos. Lépida, acocorava-se à porta para fumar. Ajustava a saia e lá estava a pequena.
Outro avô-torto era Mundinho Dantas. Primo de meu avô, ajudou a criar a família. Alto, branco e voz rouca. Passava o dia no sítio e à tarde ia para a cidade, para a casa das irmãs. Era repentista, em versos. Sua conversa era regada a rimas e comparações.
Por fim, meus genitores.
Papai, Idalécio, pele bastante branca e cabelos castanhos. Entre seus irmãos, uns louros e uma ruiva. Como seus antecessores, agricultor, no começo de sua vida laboral. Arrimo de família. Por um período, operário, na construção de Brasília. Era o que reservava aos que ousavam sair de sua terra natal, em busca de recurso e com pouco estudo, pois na cidade não havia mais que o 4º ano primário. Posteriormente, um 5º ano, denominado admissão ao ginásio.
Largando a agricultura, arrumou emprego público, Correios e por fim IAPAS, área administrativa da Previdência.
Meu companheiro de ônibus durante meu período de estudo no 2º grau, hoje, ensino médio.
Assim nos proporcionou o alimento, a escola (mais no ensino público que no privado) e algumas vaidades: uma roupa, um perfume, um relógio...
Mamãe, Elizabete(Beta), pele um pouco morena, cabelos lisos, outrora pretos. Como suas antecessoras, dona de casa e costureira. Gerava o seu ganho e o complemento na renda familiar. A máquina de costura, linhas, agulhas e tesouras tiveram seu papel e em mamãe deixei encerrar. Apenas contemplo-as.
Por minha mãe fui alfabetizada. Aos 5 anos, ela me desvendou as palavras, cópias e ditados e as quatro operações matemáticas. Mesma orientação deu aos meus dois irmãos.
Suas mãos artrosadas contam muito de sua labuta.
Estes tornaram possíveis a minha existência e a minha essência. Agradeço a tantos outros parentes que me emprestaram a genética, costumes, vivências e aprendizados, que no andar, no falar e no cantar dizem a minha origem e dizem quem sou.
Sou parte do uso de recursos extraídos da terra, alimentos, ervas e cascas de árvore cozidas, para cura de algo que nos tenha acometido.
Nas artes, sou a música, o canto, e a pintura. Sou a palavra e o resgate para os que me sucederem.

Junho/2023

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Inspiração

A inspiração, para descrever o meu caminho de volta, surgiu da leitura do livro virtual Guerreiras da Ancestralidade do Coletivo Mulherio das Letras indígenas, ANMIGA – Articulação Nacional Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade. Agosto/2022.

Sobre a obra

Trata de minha ancestralidade e do percurso feito até me transformar no ser que sou e características que me definem.

Sobre o autor

Escrevo por prazer, sem compromisso, porém descrevo o que me chega às retinas ou pelo que sinto.

Autor(a): REGINA CARLA CAMPOS (Regina Carla)

APCEF/CE


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