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Mensagem nebulosa
Naquele dia, os céus não estavam para brincadeira. Um vento forte que vinha do Vale das Nuvens modificara a paisagem tantas vezes que já não se podia prever o tempo. Nenhuma gota de chuva caía, tampouco o sol despertava de vez. As folhas das árvores mais altas tentavam se sustentar como podiam e os cafezais derrubavam os frutos mais fracos.
Pardal, um pacato agricultor do distrito, observava o fenômeno admirado. Herdeiro de uma tradição familiar, ele profetizava através das nuvens. Nunca presenciou tamanho furor nebuloso. Elas queriam dizer algo urgente, mas eram tantas formas e vozes que nem a recorrência das mensagens bastava. As frases mais repetidas eram “nos ajudem” e “se salve”.
Agoniado, o agricultor recorreu ao livro do seu avô Benedito, conhecido como o colecionador de nuvens por tantas gravuras que desenhava e guardava naquele volume. O antigo profeta popular da região descreveu todos os padrões de comunicação das nuvens. Com isso, conseguiu orientar agricultores e governantes sobre os períodos de chuva, ventania e seca, permitindo que se protegessem e aproveitassem melhor os recursos naturais. Benedito havia confiado sua obra ao neto desde cedo, pois o menino era inteligente e interessado pelas coisas da natureza.
Mas Pardal foi além, acrescentando algumas observações e melhorias à coletânea de escritos do avô; nada que desabonasse o caráter de obra de referência. Alguns padrões já não se repetiam e outros surgiram, de acordo com as recentes mudanças climáticas do planeta. No entanto, não se manifestava pública ou politicamente sobre esses temas, porque tinha medo dos poderosos, principalmente do Coronel Salustiano.
Após percorrer as páginas amassadas do livro, rejeitando diversas instruções e formulando algumas teorias, Pardal descartou tudo e voltou seu olhar para o céu, a fonte ancestral de todos os dons, especialmente daquele preservado por sua família. De repente, todas as nuvens haviam desaparecido e um forte sol começou a lhe queimar a pele.
Nesse momento, lembrou-se do padrão apocalíptico, que seu avô mal entendeu, mas profetizou nas últimas páginas do livro: “quando uma grande confusão acontecer no céu e as nuvens mais altas se juntarem com as nuvens mais baixas, todas tentando dizer algo, pedindo socorro, fique atento. Quando todas sumirem de uma só vez, leia o que o sol escrever na areia branca do Rio Pequeno”.
Então Pardal decidiu ir até o rio. Desceu pela trilha de terra batida, encontrando os capangas do Coronel Salustiano bebendo cachaça por ali. Aquilo é gente ruim, pensou. Traziam todo o necessário para derrubar a mata e fazer a coivara, entrando mais um pouco nas áreas protegidas. Não falou nada, mas percebeu uma encarada ameaçadora de um dos homens.
A descida proporcionava um panorama da devastação do lugar. Onde a vista alcançava só se via pasto, cercas, estradas e construções. A mata nativa era cada vez mais escassa e os animais sumiram quase todos. Só a área de proteção permanente resistia, mas sempre ameaçada pela ganância de fazendeiros e caçadores.
Chegando ao rio, procurou a faixa de areia branca. Não havia qualquer sinal dos supostos escritos solares. Na cabeça de Pardal, ressoavam as mensagens “nos ajude” e “se salve”, que ouvira havia pouco. Um porrete desceu zunindo e lhe rachou o crânio. O sangue manchou as águas do rio. Com os olhos fixos e cheios de lágrimas, leu nas sombras dos grãos de areia: “estamos perdendo a batalha; avisamos o quanto pudemos; demos todos os sinais, mas ainda há quem prefira matar o que resta do planeta. O futuro não é nebuloso, mas pode ser catastrófico”.
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Inspiração
Decidi fazer um alerta sobre as mudanças climáticas, seus efeitos sobre o planeta e as consequências para a existência humana.
Sobre a obra
A técnica do conto envolve criar uma atmosfera rica para atingir um clímax ao final.
Sobre o autor
Escrevo há alguns anos e tenho algumas obras publicadas em coletâneas e revistas de literatura.
Autor(a): JEREMIAS REIS COMARU (JEREMIAS COMARU)
APCEF/CE
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