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Histórias da neta - impertinências e ousadias
Não sei, ao certo, como funcionavam as avós de antigamente.
A única que tive, minha vó Olívia, era de uma dureza assustadora. Nunca ousei abraços longos, nem ganhei colo ou beijinhos .
Lembro da mão estendida, para a benção curta. "Deus te abençoe". Ou: "Deus te faça feliz".
E era isso.
O cheiro, talco e alfazema. O cabelo ralo, penteado para trás, sempre molhado por banho recente. Os vestidos simples, impecavelmente limpos e engomados.
Olhos escuros, miúdos e frios, algo distantes. Parecia viver em solidão constante, num mundo outro, onde não se tinha permissão de entrada.
Gostaria eu de ter tido uma avó Benta, com suas histórias, férias num sítio, casa com varanda.
Mas a minha, coitada, teve vida dura, enviuvou cedo, não tinha filho varão com idade e estudo para herdar o Cartório do marido , ficou desprovida e com 11 filhos para criar. Endureceu, pela vida e a dor de distribuir os rebentos entre parentes mais abastados.
Já eu, com vida mais amena e bom emprego, ganhei, ainda, netos adoráveis. Hoje, falarei dela, a menina. E, sim, moro num sítio, numa casa que ela ama e sempre diz: "vovó, eu queria morar aqui, com você."
Penso nas memórias que terá de mim. Tudo indica que marquei uns pontinhos a favor das futuras boas lembranças. Trabalho firme para isso.
Trata-se, a neta, de criaturinha impertinente, bem humorada, brilhante. Tenho a sensação de estar com meu pai. O mesmo jeito algo debochado, a predileção por doces, a resistência a qualquer refeição que envolva saladas e legumes.
Eclética, como ele era.
Então, se interessou por chás de ervas do quintal. Aprendeu sobre hortelã para curar males do estômago, que bochechar sálvia alivia aftas. Ama a compota de goiaba, o pesto de rúcula e a feijoada. Sobre os pastéis de nata, jura que são os únicos que aprecia, os da avó.
Apaixonou-se pelo peixinho da horta, afinal o que não fica delicioso frito?
Quer saber de tudo. Costurar, bordar, fazer velas e perfumes.
Aliás, sempre exibiu com orgulho as roupas feitas pela avó - eu, esclareço, pois há outra, a materna.
Encanta-se: "vó, você é muito tecnológica", ao observar os eletrodomésticos variados, na cozinha.
Tivemos nossos arranca-rabos, sim. Até que entendi que o papel da avó é mimar e ... inspirar. Educar, cabe aos pais.
Foi assim que eu, percebendo uma crescente atração por itens, digamos, do mercado de luxo, decidi levar um papo reto.
Ora, como assim? Gastou toda a mesada do mês num único gloss labial? Uma menina de classe média desejando perfume Dior? Opa. Tudo isso, pensei. Não o disse, a princípio.
E lá fomos as duas a uma loja que vende contratipos. Que são "inspirações ", para não dizer falsificações ou imitações - seria grosseiro - de fragrâncias famosas.
Ela ficou deslumbrada. Achou a tão desejada Miss Dior! E um frasco luxuoso, rosa e dourado, por menos de 2 dólares.
De quebra, me mostrou que eu procurava Mademoiselle Chanel, mas a etiqueta estava apenas com a palavra Coco. "Vovó, é essa!".
Aí, o assombro foi meu. Que danadinha!
Entendido que não cabe a nós, meros mortais, alimentarmos esse mercado de luxo que só acessamos para pequenos itens, caros para nosso orçamento, seduzidos que somos pela indústria do desejo, dei por cumprida essa missão. Eu, orgulhosa da forma divertida que usei para falar de tema tão desagradável.
De vez em quando, eu a provoco para aprender como se locomover na cidade. Dirigindo, pergunto: "Lara, em que quadra estamos?". A resposta, logo conto. Porque foi a mesma para a pergunta: " O que você está achando do Governo Lula?"
Para ambas, retrucou: "Sei lá, vó, sou criança ". E acrescentou, à segunda: " Mas observei que ele está retomando nossas relações internacionais, que tinham sido abandonadas pelo Bolsonaro ".
Ela tem 12 anos. Não é adorável?
Aliás, quando bem pequena, ouvindo no rádio do carro a notícia da prisão, comentou : "Vó, querem sufocar ele. Como fizeram com Tiradentes ". Lembro que fui às lágrimas.
Escreveria páginas sobre nossas conversas. Paro por aqui.
Não antes de registrar que tive treinamento para avó. Minha mãe foi avó amorosa, daquelas perfeitas, de comidinhas e presentinhos. A neta, a minha, a conheceu e, desde bebezinha, a adorava. A chamava de bisa. Quando ela partiu e toquei no assunto, aliás, no mesmo dia da historia do Tiradentes, Lara me disse: "Eu sei, vó . Meu pai me explicou que ela morreu. Você também vai morrer, né, vó?". E, antes que eu respondesse: "Vó, será que quando eu morrer , eu vou encontrar com a bisa?"
Só pude responder a verdade: " Não sei, Lara".
E não sei mesmo.
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Inspiração
Gosto de crônicas. Contar fatos com algum humor. A neta me inspira e suas histórias, impertinências adoráveis, sempre rendem registros que pretendo, quem sabe, reunir num livro dedicado a ela e a nossa convivência. Fazem sucesso, talvez devido à generosidade dos amigos.
Sobre a obra
A crônica, tal como a escrevo, não passa, no meu caso, de meros relatos fiéis do cotidiano.
Despretensiosa, até porque me falta a passagem pela academia, que temei recusar, sabe-se lá se por preguiça ou irreverência.
A busca é pelo registro, em si. E algum entretenimento para quem me lê. Um feito divertido, mas sempre é também, político
Sobre o autor
Escrever sempre foi algo que me pareceu atraente e fácil, desde a infância. Talvez por ter sido leitora voraz. Sonho com um País de leitores e leitoras. Nestes tempos de redes sociais, de msg curtas, com neologismos de gosto duvidoso, proliferação de vídeos, bons textos são cada vez mais raros. Mas... desejáveis.
Autor(a): TANIA CRISTINA BARROS DE AGUIAR (Naesperança)
APCEF/DF