Talentos

O avental da Confeiteira

O avental da Confeiteira

Era uma vez uma cidade tristonha. O lugarejo era tão triste que, com o passar dos anos, os moradores foram se entristecendo, emurchecendo, esquecendo das pequenas coisas que sempre deram sabor à vida, como amar, brincar e rir.
Chegou o momento em que ninguém conversava mais. E foram se esquecendo de pronunciar palavras e expressões como “te amo!”, “por favor”, ou mesmo, “tire o dedo do nariz”.
A falta de recordações era tanta, que até o nome das pessoas foi sendo deslembrado pelos moradores da cidade.
Como todo mundo precisa se comunicar, os habitantes passaram a se chamar pelas profissões em que trabalhavam. Assim, na cidade não havia mais Marias e Joões, existia apenas a Professora, o Mágico, o Sapateiro. Até o nome das crianças se perderam e elas passaram a ser apelidadas de Pequenos e ou Pequenas. Assim a filha da Professora era chamada de Pequena Professora, o filho do Mágico era conhecido por Pequeno Mágico.
Até a criatividade para inventar nomes para os bichos de estimação acabou e eles se tornaram o cachorro, o gato, o passarinho, a tartaruga, pois as pessoas da cidade estavam só preocupadas em trabalhar e trabalhar e trabalhar.
E assim as pessoas e animais foram vivendo, e na casa da Lavadeira não foi diferente.
– Pequena Lavadeira! Desce para me ajudar. – e o som da voz materna tirou a menina dos devaneios infantis. – Venha Pequena!
Ao descer do último degrau da escada, correndo e pulando como toda criança, a menina tropeçou em uma imensa trouxa de roupas que a mãe lavaria e passaria e dobraria – uma trabalheira!
Depois de se aprumar novamente, a Pequena Lavadeira tratou de desatar o nó que unia as pontas de um grande lençol florido que formava a trouxa e um perfume adocicado flutuou no ar.
– Gostoso! – murmurou.
– Ah! O cheiro vem das roupas. Esta trouxa é da Confeiteira.
– É perfumosa com os perfumes mais perfumosos que meu nariz já se perfumou.
Com o avental da Confeiteira nas mãos, Pequena percebeu que além do cheiro, o pedaço de tecido tinha tatuado em suas tramas as cores e formas mais lindas que o olhar infantil poderia ver.
Então, mãe e filha inebriadas pelo aroma e imagens que escapuliram do embrulho, sentaram no degrau da escada e começaram a ler as histórias contadas pelo avental da Confeiteira.
– Mãe, uma mancha pinica meu dedo e a outra não. – Pequena, encantada com o as manchas, deslizou suavemente os dedinhos sobre os respingos brancos do avental.
– A manchinha que arranha a pontinha dos seus dedinhos é feita de cristais de açúcar e a outra feita de floquinhos de farinha de trigo. E veja, manchinha branca de cristal brilha como um lindo raio de sol acarinhando o orvalho da manhã, a outra mancha é da cor das nuvens, como uma nuvem de saboroso algodão doce.
E a lavadeira, percebendo o encantamento da cria, deixou para lavar mais tarde a trouxa de roupas e dirigiu-se com a filha à cozinha da minúscula casa. Ali mãe e filha começaram a brincar com os ingredientes culinários conforme apareciam na história contada nas teias do tecido do avental da Confeiteira.
– Vou colocar dois punhados de farinha de trigo e um punhado de açúcar na peneira.
Rapidamente a filha perguntou: – Quanto é um punhado? É mais ou menos que uma “mãozada”?
– Um punhado? Ora! É uma mão cheia de qualquer coisa.
Mas a resposta não convenceu a menina que continuou a perguntar: – Da minha mão ou da sua? – e mostrou à mãe a diferença de tamanho entre elas.
E a mãe sabendo que a filha não desistiria de receber informações precisas disse: – Vamos usar uma caneca? E despejou punhado de trigo na caneca espalhando uma breve névoa no ar.
Em meio a sorrisos e brincadeiras, as duas perceberam que um punhado da mão da mãe correspondia a uma caneca, e assim foram medindo os ingredientes.
Libertando por entre as pontas dos dedos pequenos fragmentos de açúcar gritou:
– Veja! Criei uma tempestade de neve fininha e brilhante dentro da tigela.
E a Pequena Lavadeira ficou hipnotizada pelo sorriso largo e sonoro da mãe, sorriso quase sempre abafado por silêncios e tristezas.
Apontando para uma mancha alourada no avental, a Lavadeira falou: – mocinha, esta mancha amarela veio da gema de um ovo, e colocou sobre a mesa um aramado em formato de galinha com alguns poucos ovos dentro.
E as miúdas mãos, com cuidado extremado, pinçaram um ovo e quebraram a casca sobre a farinha e o açúcar: “– É um lindo e redondinho sol entre nuvens brancas e fofinhas”.
– Olhe! Tem outra marca amarelada, quase dourada. Decifrando esta outra manchinha, digo que a doceira usou manteiga na receita, vamos colocar uma colherada grande, assim nosso quitute ficará fofinho como um macio travesseiro em noite de sonhos.
– Mãe! Afobada repetiu o chamado: – Mãe! O perfume vem da manteiga? – perguntou Pequena enquanto encostava a ponta do nariz na mancha.
– Boa pergunta. Acho que quando crescer você será confeiteira e não lavadeira.
Com admiração e amor abraçou a filha e respondeu a interrogação.
– A manteiga traz maciez ao doce. E com delicadeza tocou o rosto da filha. Já o perfume que está adocicando a nossa respiração quando tocamos o avental, vem da baunilha a fragrância que sentimos. Então, voltando à receita, vamos colocar três ou quatro gotinhas de essência de baunilha.
De repente Pequena achou um pedacinho de castanha grudado no pano e gritou de alegria: – Achei pedrinhas iguais as do nosso jardim!
– São lasquinhas de castanhas.
– UAU! Que gostosura!
– Temos ainda duas ou três guardadas da época do Natal, vamos picá-las para juntar à massa. Nossos biscoitos ficarão mais gostosos e bonitos.
– HUUUUM!
E a quatro mãos e muitas brincadeiras, mãe e filha misturaram e trabalharam os ingredientes até ficar como massinha de modelar, lisinha e uniforme. Depois de descansar por meia hora e enquanto o forno era aquecido e a forma untada, a massa foi estendida sobre a mesa enfarinhada. Com o rolo deslizando para todos os lados como criança brincando de pega-pega ela ficou fina e uniforme, pronta para ser cortada nos mais diversos formatos: bonecos, flores, estrelas, coraçõezinhos.
Brincando com os diversos formatos criados, a menina percebeu que era possível contar historinhas com os biscoitos: – Veja mamãe, o boneco está colhendo flores no jardim.
– E a boneca está admirando as estrelas no céu azul da toalha de mesa.
E pegando dois coraçõezinhos, disse com ternura: – Aqui está nossa história, dois corações que sempre vão cantarolar no mesmo ritmo.
E mãe e filha se abraçaram e os corações se tocaram para nunca se separar.
Finalmente a mãe colocou com cuidado a forma cheia de biscoitos no forno quente.
O perfume dos biscoitos assando foi como uma brisa que nasce das flores após uma chuva de gotas de pedacinhos do céu.
– Como vamos colorir os biscoitos?
– Vamos ler o avental da Confeiteira. Oh! Sinta o doce perfume de chocolate.
– HUUUM! A mancha parece o focinho de um cachorrinho chamado Choco, que late, late, late.
E chocolate derretido foi deitado sobre algumas bolachas que ainda foram salpicadas de bolinhas coloridas, outras ganharam geleia de framboesa, e até melado foi usado na brincadeira de colorir os biscoitos.
A pequena confeiteira escreveu palavras mágicas em cada bolacha, “gratidão” de letras de chocolate, “amizade” de geleia, “amor” amor de glacê.
Conforme as bolachinhas foram ganhando aromas e cores de alegria, a casa ganhou vida e a vida das moradoras ganhou alegria.
Depois de horas decifrando o mistério escondido nas tramas do avental da Confeiteira e fazendo deliciosos biscoitos e rindo para as pequenas alegrias da vida, mãe e filha perceberam que tinham assado e enfeitado dezenas e dezenas de biscoitos.
– O que faremos com tantas bolachinhas? São muitas para apenas duas bocas as devorarem.
– Ora, ora, mamãe! Podemos juntar em pacotinhos e vamos distribuí-las. Assim cada um pode contar a história que carrega no coração.
E assim a Lavadeira e sua filha, a Pequena, bateram de porta em porta. No início elas ouviam apenas um tímido murmúrio de agradecimento – Obrigado! – Frase que vinha acompanhada de um sorriso sem prática de sorrir.
Depois, dois ou três moradores falaram do doce. – Hum! Ou... – Gostoso!
De bolacha em bolacha, de conversa em conversa, a cidade voltou a ser povoada por Marias e Joões, felizes moradores da agora cidade feliz, e assim os moradores recordaram como é bom conversar e rir e brincar, relembraram o sabor do amor para nunca mais esquecer.

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Inspiração

A vida nos presenteia com uma infinidade de sensações e sentimentos que, às vezes, a correria do cotidiano não nos permite saborear. Nesta história eu tento mostrar a importância dos momentos singelos, o valor das pequenas conversas, a riqueza dos sabores da vida. O avental da Confeiteira é uma ode à amizade e ao amor universal.

Sobre a obra

É um conto no qual busco por meio de palavras aguçar a imaginação do leitor quanto ao aroma e sabores e colorido dos ingredientes gastronômicos, bem como provocar os leitores à viver uma experiência culinária com quem se ama. Ao mesmo tempo, o texto mostra a importância de nos aproximarmos das pessoas, de conversarmos e agradecermos pela vida.

Sobre o autor

Amo registrar em palavras ou imagens as histórias que a vida nos conta. Com a aposentadoria meu olhar ao redor mudou e hoje percebo pequenos detalhes, minúsculas narrativas da natureza e dos seres, que tento reproduzir por meio de textos literários, fotografias, desenhos.
Sobre meu talento? Respondam vocês se tenho algum talento.Gratidão!

Autor(a): LILIAN DEISE DE ANDRADE GUINSKI (Lilian Guinski)

APCEF/PR