Talentos

Genocídio

— Nossa raça é perseguida há séculos. Nós não somos bem-vindos na maioria dos países, pois consideram que somos representantes do mal e nos tratam como praga. Já tentaram nos exterminar, mas nós resistimos. Somos fortes e mostramos que temos nosso lugar nesse mundo. Contudo, não podemos aceitar essa perseguição. Temos que reagir. Buscar um mundo melhor para que nossos filhos possam crescer e procriar. Para tanto, devemos encontrar os meios que forem necessários para lutar contra aqueles que querem nos destruir. Os nossos piores inimigos: os humanos.
— Anubis, eu não aguento mais ouvir esse discurso...
— Ainda não terminei! Outros podem querer ouvir.
— Mas só estamos você e eu.
— Silencio! Como eu dizia, os humanos criaram diversos tipos de veneno para nos exterminar. Poluíram as fontes de água limpa, impedindo que nossas fêmeas tenham local para pôr os ovos. E atualmente fazem campanha para acabar com qualquer poça de água limpa. Tudo para impedir a nossa procriação. Isso é genocídio! Não há outra solução. A única saída é a guerra. Temos que eliminá-los.
— Terminou?
— Sim.
— Agora posso dizer: você está louco! Os humanos dominam o planeta há milênios. Inventaram milhares de coisas e acabaram com tudo que os ameaça. Como poderemos eliminá-los?
— Com doenças! Dengue, febre amarela...
— Os humanos já sofreram com moléstias no passado, mas hoje estão bem preparados. Venceram várias epidemias. Não devemos entrar nessa briga, Anubis. Seria estupidez. Vamos investir nosso tempo focando no ciclo reprodutivo. Querer eliminar os humanos é perda de tempo.
— Como perda de tempo, Horus? Eles declararam guerra contra nós. Não podemos simplesmente fingir que nada está acontecendo. Você viu a barbárie que estão fazendo esterilizando machos da nossa espécie? Tudo para impedir nossa reprodução. O nosso povo está em sério risco. Eu serão eles ou seremos nós.
— Anubis, eles só querem se proteger de doenças que levamos até eles. É tudo graças à pensamentos radicais como o seu. Também temos nossa culpa...
— É sobre isso que quero falar...
— Nossa culpa?
— Não. Sobre doenças! Vamos transmitir dois novos vírus para combate aos humanos: Chikungunya e o Zika. Vamos atacá-los no nascimento, como fazem conosco.
— Horus, se levarmos doenças a eles, a situação só vai piorar. Temos que buscar a paz. Graças aos humanos, nosso povo pôde sair do Egito e se espalhar pelo mundo. Devemos isso a eles e a suas invenções. Temos que ser aliados. Eles são uma espécie superior...
— Besteira. Com essas “maravilhosas invenções” eles causaram um desiquilíbrio ecológico, superaquecimento global, destruíram mais de 20% da floresta amazônica e nos últimos 500, exterminaram mais de 700 espécies animais. É isso que estão fazendo. Estão extinguindo espécies. E podemos ser os próximos. Todos os Aedes Aegypti devem se juntar e infectar o máximo de humanos. Esse planeta será muito melhor sem eles.
— Isso é insanidade! Os humanos vão declarar alerta global. Eles são muito poderosos. Aí sim nossa espécie será exterminada!
— Pobre Horus. Você superestima os humanos. Eles são preguiçosos. Dormem oito horas por dia... e nos menosprezam pelo nosso tamanho, como se eles fossem os gigantes da Terra. Além disso, atuamos em países quentes, de terceiro mundo, onde eles costumam ser mais relapsos... Não vai ser tão difícil. Quando perceberem, estarão condenados.
— Se não levarmos doenças, passaremos despercebidos pelos humanos e poderemos conviver pacificamente, como os pernilongos.
— Não nos compare àquela espécie ridícula! Pensamos de forma muito diferente, Horus. Com esse seu pensamento nossa espécie está condenada.
— Anubis, tenha empatia com os humanos. Você precisa entender a situação deles antes de julgar. Acontece que, na sociedade humana, alguns poucos representantes da espécie possuem a maior parte dos recursos. Isso faz com que a maior parte da população tenha dificuldades em conseguir o que necessita, seja alimentos, condições de saúde ou educação. O modelo utilizado por eles permitiu as grandes invenções e transformações que conhecemos, mas não é nem um pouco igualitário. Aliás, é muito cruel. Principalmente aqui nos trópicos, as desigualdades costumam ser maiores. Quem mais sofreria com um possível ataque desse tipo seriam os humanos mais humildes e desinstruídos. Não os grandes responsáveis pelos problemas que você citou. A luta desses seres pela sobrevivência costuma ser mal interpretada como crueldade. No fundo não são seres ruins. Eles nascem bons, mas são corrompidos pela sociedade em que vivem. Mas acredito que eles estejam evoluindo. A informação está chegando ao alcance da maioria. Demorou, mas estão entendendo que eles precisam do planeta e não o contrário. Em breve estarão aptos a viver de forma pacífica entre eles mesmo e com as outras espécies. Com o conhecimento científico dos humanos, somado a uma pequena dose de bom senso que ainda lhes falta, teremos um planeta bem melhor.
— É, eu não tinha analisado por esse lado. Pode ser que você esteja certo e devamos dar um voto de confiança para essa espécie. Um mundo em que todas as espécies se respeitam seria realmente maravilhoso...Opa, tem alguém entrando. Vamos nos esconder.
— Não se preocupe, é apenas uma criança. Como eu te disso, eles nascem bons e... Não, não, não. Ahhhhh!
***
— Gabriel, o que você faz no banheiro com essa raquete?
— Olha, mãe. Matei dois pernilongos de uma vez.
— Que nojo, menino!

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Inspiração

A ideia surgiu quando foi descoberto que os Aedes Aegypti estavam transmitindo novas doenças aos seres humanos. Pensei em criar um texto mostrando que tudo havia sido planejado pela espécie e que eles teriam discussões (sobre a espécie humana) muito semelhantes às que as vezes nós também temos.

Sobre a obra

Tentei fazer um texto bem humorado sobre um assunto sério. O desafio foi contar uma história sem usar narrador, apenas com diálogos, e deixá-la compreensível aos leitores.

Sobre o autor

Gosto de criar histórias e situações inusitadas e o incentivo do concurso contribui bastante para estimular minha criatividade

Autor(a): EMERSON DE SOUZA ALBUQUERQUE (Emerson Albuquerque)

APCEF/DF